Doença de chagas, parasita causador sequestra proteína essencial no núcleo de célula infectada

Doença de chagas, pela primeira vez em mais de 110 anos, a ciência consegue evidências de uma relação complexa e íntima entre o protozoário Trypanosoma cruzi e o núcleo da célula hospedeira

Mais de um século após de ter sido descrita pela ciência e com cerca de 7 milhões de pessoas infectadas atualmente no mundo, cientistas conseguem resultados importantes que podem ajudar no controle da doença de Chagas. A equipe liderada pela professora Munira M. A. Baqui, do Departamento de Biologia Celular e Molecular e Bioagentes Patogênicos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, descobriu que o Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença, toma o controle de uma proteína essencial no núcleo da célula infectada para favorecer a continuidade do seu ciclo de vida no hospedeiro.

Foto: Camila Gachet de Castro/Arquivo pessoal

Essa é a primeira vez, garantem os pesquisadores, que se obtém “evidências de uma relação complexa e íntima entre T. cruzi e o núcleo da célula hospedeira durante a infecção”. O grupo observou que o parasita sequestra a proteína U2AF35, essencial para o início do processamento do RNA –  o que impacta diretamente nos RNAs maduros da célula hospedeira e em suas funções.

A invasão e manipulação das células do organismo infectado é uma estratégia comum dos protozoários, mas, segundo a professora Munira, até hoje pouco se sabe o que ocorre no núcleo e, principalmente, como fica a “regulação da atividade transcricional da célula hospedeira quando infectada pelo T. cruzi”.

Entrada do parasita (P) na célula (C), microscopia de varredura – Foto: Camila Gachet de Castro/Arquivo pessoal

Os resultados do estudo foram obtidos durante a pesquisa de doutorado de Camila Gachet de Castro, sob orientação da professora Munira, e publicados pela Frontiers in Cellular and Infection Microbiology. Os autores deixaram evidente que o T. cruzi pode alterar funções nucleares complexas como a modulação da transcrição e splicing do RNA, molécula essencial para a manutenção das funções biológicas da célula. Conta a professora que o parasita causador da doença de Chagas consegue “alterar a expressão das proteínas que são importantes para copiar informações do DNA, diminuindo a atividade dessas proteínas e afetando as novas que seriam geradas ao final do processo”.

O processo envolve uma complexa maquinaria molecular chamada spliceossomo, formada por um conjunto de proteínas que existe nas células responsáveis pelo processamento do RNA. Ao final do processo de splicing, se tem o RNA maduro que será traduzido em proteínas com diversas funções na célula.

Para a pesquisa, os autores estudaram células em cultura infectadas com o T. cruzi, através de ensaios celulares, bioquímicos e de biologia molecular em que puderam acompanhar as mudanças que ocorriam nas proteínas nucleares das células infectadas.

Esperança para controle da doença de chagas negligenciada

A descoberta da equipe da USP deve ser comemorada pela comunidade científica, pois abre caminho para novos tratamentos de uma doença tropical silenciosa e negligenciada. “Os medicamentos existentes são poucos, causam muitos efeitos colaterais e não funcionam em todas as fases da doença”, informa a pesquisadora.

Na verdade, a doença de Chagas só tem cura na fase inicial, que, em geral, passa despercebida e continua fazendo vítimas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) são relatados 30 mil novos casos por ano de pessoas infectadas com o parasita.

Descoberta em 1909 pelo médico sanitarista brasileiro Carlos Chagas, a doença é endêmica em 21 países do continente americano, com destaque para o Brasil, Argentina, Bolívia, Colômbia e México. No Brasil, é a quarta causa de morte entre as infecções parasitárias, conforme dados do boletim especial do Ministério da Saúde de abril do ano passado.

Com o peso da negligência, afetando regiões mais pobres do planeta, a doença de Chagas só possui tratamento curativo em suas primeiras fases, até 12 semanas após a infecção, e ainda conta com o agravante de não apresentar nenhum sintoma em muitas pessoas, que só vão descobrir a doença décadas depois em um exame de rotina ou ao apresentarem comprometimento mais grave, como o do coração.

Diante do quadro de vulnerabilidade social e falta de opção de medicamento, os achados da pesquisa podem “auxiliar no descobrimento de novas vias celulares usadas pelo parasita que ainda não se conheciam”, informa Munira, antevendo novas e mais efetivas formas de tratamento para a doença. De toda forma, a professora adianta que “mais pesquisas são necessárias para descobrir vias específicas que o parasita utiliza e entender o seu ciclo intracelular”.

Mais informações: e-mail munira@fmrp.usp.br, com a professora Munira Baqui

Por Rita Stella

FONTE: Jornal da USP

Pequena proteína reduz níveis de açúcar, gera patente e pode ser aliada no combate à diabete

Sintetizado a partir de substância produzida no sangue, o peptídeo Ric4 reduz níveis de açúcar no organismo, e, futuramente, poderá ser usado em medicamentos para controle da diabete

Uma pequena proteína cuja origem são as células do corpo humano pode ter um grande papel no controle da diabete. Em pesquisa com participação do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, cientistas descobriram que o peptídeo Ric4, sintetizado a partir de uma proteína produzida pelas células sanguíneas, aumentou a sensibilidade à insulina e reduziu a glicemia, ou seja, o nível de açúcar no sangue. Os estudos sobre a estrutura e as propriedades do Ric4, realizados em animais, geraram uma patente que, no futuro, poderá dar origem a medicamentos para tratar a diabete, e que sirvam de alternativa à terapia com insulina.

Os resultados do trabalho são mostrados em artigo publicado no site da revista científica Pharmaceuticals, no último dia 16 de dezembro. A diabete tipo 2 acontece quando o corpo desenvolve resistência à insulina, responsável por processar o açúcar no organismo e levá-lo às células, o que aumenta a concentração de açúcar na corrente sanguínea.

“Há alguns anos, nosso laboratório desenvolveu um teste em modelo animal que encontrou alterações em um grupo de peptídeos intracelulares (InPeps), que são pequenas proteínas produzidas no interior das células, normalmente a partir de proteínas maiores”, explica ao Jornal da USP o professor Emer Ferro, do ICB, coordenador do estudo. “Os animais testados apresentaram maior sensibilidade à insulina e, consequentemente, maior captação de glicose e glicemia reduzida. Nossa hipótese era de que isso aconteceu devido às alterações nos níveis de InPeps.”

Emer Suavinho Ferro – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Em seguida, os pesquisadores sintetizaram quimicamente em laboratório quatro peptídeos, que foram denominados Ric1, Ric2 e Ric3 e Ric4. “O Ric 1 e o Ric2 foram identificados no músculo gastrocnêmio (batata da perna) e são derivados da proteína troponina I; o Ric3 foi encontrado no tecido adiposo epididimal (na região do púbis), produzido a partir da proteína de ligação acil-CoA, e o Ric4 é derivado da subunidade alfa da hemoglobina, proteína existente no sangue”, descreve o professor. “Nosso objetivo foi identificar se algum desses peptídeos poderia reproduzir farmacologicamente a maior sensibilidade à insulina e à glicemia reduzida observada nos animais.”

Captação de Glicose

“Caso isso acontecesse, poderíamos identificar um novo peptídeo que poderia ser usado no tratamento de pacientes diagnosticados com pré-diabete ou diabete tipo 2, que possuem elevados níveis de glicose e não respondem à insulina”, relata Ferro. “Foram realizados testes de viabilidade celular em cultura de células, de avaliação do efeito dos peptídeos nos níveis de expressão de proteínas específicas (Western Blotting), de estabilidade enzimática, de expressão gênica (PCR), de captação de glicose em tecidos animais e culturas de células de camundongos, e de tolerância e transporte de glicose, em células e modelos animais.”

Pesquisas sobre a estrutura e as propriedades do peptídeo Ric4 e seus derivados geraram uma patente que pode ser aproveitada futuramente na pesquisa e criação de  novos medicamentos para tratar a diabete tipo 2, e que sirvam de alternativa à terapia com insulina; na imagem, profissional da saúde medindo glicose de paciente – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

A pesquisa verificou que dois derivados do peptídeo Ric4 (Ric4-2 e Ric4-15) possuem ação hipoglicemiante, isto é, induzem a captação de glicose e reduzem a glicemia em animais após administração oral. “As análises sugerem que o peptídeo se liga ao receptor de insulina para induzir a captação de glicose, de forma independente da insulina, esta última também um peptídeo, aumentando sua sensibilidade”, aponta o professor do ICB. “Modificações estruturais do Ric4 natural, que geraram o Ric4-2 e o Ric4-15, reduziram sua degradação por enzimas digestivas, sem prejudicar a ação farmacológica. Em resumo, peptídeos como o Ric4 podem exercer ação similar à insulina e podem ser úteis no tratamento de pacientes com diabete tipo 2.”

De acordo com Ferro, apesar da significância biológica e farmacológica, as possíveis aplicações clínicas do Ric4 ainda merecem mais investigações. “O estudo indica que pacientes com pré-diabete ou diabete tipo 2, que têm hiperglicemia resistente à insulina, poderiam ser tratados com Ric4 ou com seus análogos, Ric4-2 e Ric4-15. Porém, ensaios adicionais precisam ser realizados para avaliar a potência do peptídeo em reduzir a glicemia de portadores de diabete tipo 2”, destaca Ferro. “Nosso trabalho reforça a perspectiva que os peptídeos podem manter sua atividade farmacológica após administração oral, ‘quebrando’ o dogma que dentro do corpo eles são imediatamente degradados por enzimas digestivas.”

Além da publicação do artigo, um pedido de patente do peptídeo Ric4 foi depositado junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) pela Agência USP de Inovação (Auspin) e pela INOVA, Agência de Inovação da Unicamp. “Embora o pedido tenha sido depositado em maio de 2018, nenhuma empresa até o momento se interessou em licenciar a patente do Ric4 para desenvolvimento de um fármaco alternativo à insulina para o tratamento da diabete tipo 2”, conclui o professor.

O trabalho teve a participação dos pesquisadores Renée Silva, Ricardo Llanos, Rosangela Eichler e do professor Emer Ferro, do Departamento de Farmacologia do ICB,  do pesquisador Thiago Oliveira e do professor William Festuccia, do Departamento de Fisiologia do ICB, e do professor Fabio Gozzo, do Instituto de Química da Unicamp.

Mais informações: e-mail eferro@usp.br, com o professor Emer Ferro

Por: Júlio Bernardes

Arte: Ana Júlia

FONTE: Jornal da USP