Perda auditiva é associada a declínio cognitivo mais acelerado

Dados do contexto brasileiro, coletados em estudo de longa duração, reforçam relação entre escutar pior e sofrer perdas cognitivas. Pesquisadoras enfatizam necessidade de prevenção da perda auditiva, especialmente na meia-idade

Escutar pior com o passar dos anos é comum. A partir dos 40, por exemplo, nossa audição já começa a ficar menos afiada para frequências mais altas, que são os sons mais agudos. Aos 60 anos, em média 12% da população já terá tido uma perda importante, número que cresce para 58% aos 90. Nem por isso a perda auditiva deve ser considerada algo trivial, já que é fator de risco para outros problemas de saúde, inclusive demência. Uma pesquisa liderada pela USP amplia com dados da população brasileira um corpo de evidências cada vez mais forte sobre a associação desta perda ao declínio cognitivo, alertando que os sistemas de saúde precisam investir na prevenção.

A pesquisa foi feita com dados do Elsa-Brasil, um estudo que acompanha os participantes em diferentes momentos por vários anos. As avaliações incluíram 805 pessoas com idades iniciais de 34 a 74 anos e foram realizadas em três momentos ao longo de oito anos (2008/2010, 2012/14 e 2017/19). Todos passaram por audiometria e também por testes de desempenho cognitivo envolvendo memória, fluência verbal e função executiva, que inclui diversos processos como o raciocínio e solução de problemas. Também foram coletadas informações sobre estado de saúde e variáveis sociodemográficas como idade, sexo, raça e educação.

Após o tratamento estatístico, isolando as variáveis de saúde e estilo de vida, os dados confirmaram que houve declínio cognitivo global mais acentuado relacionado à perda auditiva. Os resultados foram publicados em artigo no Journal of Alzheimer’s Disease, trazendo como primeira autora a fonoaudióloga Alessandra Samelli, professora da Faculdade de Medicina (FM) da USP.

Alessandra destaca como um dos pontos fortes do estudo o fato de ter sido feito o chamado acompanhamento longitudinal. “Esse tipo de acompanhamento ao longo do tempo gera evidências mais robustas.” Também autora do trabalho e professora da FMUSP, a médica Claudia Suemoto ressalta que a pesquisa, além de trazer dados do contexto nacional, realizou testes de audiometria, uma maneira objetiva de medir problemas de audição – ao contrário de estudos anteriores que coletaram o dado por entrevista, ou seja, perguntando à pessoa se ela sente que a audição piorou.

Redução nos casos de demência para cada fator de risco eliminado

A Comissão Lancet sobre prevenção, intervenção e tratamento da demência mostra os fatores de risco e indica que quase metade de todos os casos de demência no mundo poderiam ser prevenidos ou retardados ao controlar 14 fatores modificáveis Gráfico adaptado de The Lancet, Vol. 404, No. 10452. Disponível em https://www.thelancet.com/infographics-do/dementia-risk

 

Prevenção da perda

De acordo com Alessandra Samelli, os mecanismos que levam à associação entre perda auditiva e declínio cognitivo ainda precisam ser mais bem elucidados, mas os dados existentes são suficientes para incentivar um foco maior na prevenção, principalmente para grupos mais vulneráveis.

“Por exemplo, alguém que trabalhou a vida toda em ambiente com ruído e não usou adequadamente os equipamentos de proteção auditiva, muito provavelmente vai ter uma perda auditiva maior. Uma pessoa com problemas cardiovasculares também tem maiores chances de apresentar perda auditiva, pois estas doenças podem prejudicar o sistema auditivo, podendo resultar em uma queda maior da audição. Ou alguém que ao longo da vida usou muitos medicamentos que são tóxicos ao ouvido”, diz ela, acrescentando entre hábitos nocivos – e que podem ser modificados – utilizar fones de ouvido com som alto – o que às vezes começa ainda na adolescência. “Se você diminui ou impede que esses fatores de risco aconteçam, pode diminuir a probabilidade de a pessoa ter o declínio cognitivo”, completa a fonoaudióloga.

Claudia Suemoto é outra a bater na tecla da prevenção, e lembra que os estudos têm mostrado que a perda auditiva mais importante para o declínio cognitivo é a que ocorre na meia-idade, dos 40 aos 65. “A perda numa pessoa de 70 ou 80 anos também é importante, claro. Mas dados consistentes de estudos prévios apontam que realmente a meia-idade seria uma janela importante, ou seja, o que poderia influenciar mais o declínio cognitivo é você ter começado a perder a audição na meia-idade, e não a perda que você já teve lá na frente.” Para ela, colocar o aparelho auditivo nos idosos, apesar de importante por outros aspectos, talvez não seja um meio tão eficaz de prevenir a perda cognitiva.

Menos input e mais isolamento

Uma das hipóteses mais aceitas sobre porque a perda auditiva influencia na perda cognitiva é a diminuição de estímulos ao cérebro. “Você pode pensar no cérebro como um computador que tem suas fontes de entrada, ou input. No computador são o teclado, a câmera, o microfone. E o cérebro tem suas fontes de entrada de estímulos: auditivo, visual, tátil. Então quando você tira uma fonte, principalmente a auditiva, acaba estimulando menos o cérebro e isso é um problema”, diz a médica.

“Primeiro, há menos coisa chegando fazendo com que seu cérebro trabalhe, acione a comunicação entre os neurônios. Temos estudos com ressonância magnética funcional mostrando que a pessoa que ouve menos tem áreas mais dormentes, menos ativas no cérebro, como a da linguagem.”

Além disso, explica Claudia, “secundariamente, a pessoa que ouve menos tende a se isolar, a interagir menos. Consequentemente a pessoa é menos requisitada, ela se expressa menos, porque não é capaz de entender ou funcionar num nível esperado em termos auditivos”.

Perda cognitiva: outros fatores

Especialista em envelhecimento cerebral, Claudia Suemoto conta que os dados do Elsa têm sido úteis para vários estudos que investigam fatores associados ao desenvolvimento das demências.

“Já fizemos vários estudos sobre dieta, relacionando, por exemplo, o consumo de ultraprocessados à perda cognitiva e também à depressão. E mostramos ainda em dois trabalhos a associação de problemas cardiovasculares, como aterosclerose, ao declínio cognitivo, além de fazer outras pesquisas com dados do Elsa que não se referem ao aspecto cognitivo.

O artigo Hearing loss and cognitive decline in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil) during eight years of follow-up pode ser lido aqui. Para saber mais sobre o Elsa Brasil, acesse o site.

Mais informações: e-mail alesamelli@usp.br., com Alessandra Samelli; e cksuemoto@usp.br, com Claudia Suemoto

FONTE: Jornal da USP

Estimulação neural potencializa o treinamento motor em pacientes com Parkinson

Testes mostram que a estimulação neural ajuda a melhorar a atividade neurológica e o equilíbrio de indivíduos com Parkinson

A doença de Parkinson é um distúrbio neurológico, crônico e progressivo que prejudica o sistema nervoso central, danificando a movimentação e o equilíbrio. Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que 8,5 milhões de pessoas no mundo sofriam com a doença, um número alarmante que aumenta a cada ano. Portanto, o desafio dos pesquisadores é encontrar novos tratamentos que ajudem a melhorar a qualidade e a expectativa de vida dos indivíduos com Parkinson.

Um estudo da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE), conduzido por Núbia Ribeiro da Conceição e orientado pelo professor Luis Augusto Teixeira, avaliou os efeitos da Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua (ETCC) em diferentes intensidades no cerebelo de voluntários com a doença. Trata-se de um tratamento não farmacológico, técnica não invasiva e indolor que utiliza correntes elétricas de baixa potência para aumentar a atividade cerebral.

Ao aplicar o tratamento em pessoas com a doença de Parkinson, os pesquisadores verificaram ganhos de equilíbrio corporal e a ativação do córtex pré-frontal em múltiplas sessões de treinamento de estabilidade combinadas com estimulação transcraniana no cerebelo (ECTCC). O experimento resultou em melhorias do equilíbrio em situações desafiadoras e melhor utilização do córtex cerebral no controle da postura. A conclusão foi que a adição da ECTCC a exercícios motores potencializou os ganhos no desempenho motor em pacientes com a doença.

O cerebelo como ponto de partida

Em relação ao Parkinson, Conceição afirma que “o papel do cerebelo ganhou mais atenção apenas na última década, com evidência de seu envolvimento em sintomas motores e não motores associados à condição”. O cerebelo está diretamente relacionado à coordenação sensório-motora por vias conectadas ao córtex motor, que passam por regiões cerebrais envolvidas na movimentação e que são prejudicadas pela doença.

Estudos dão mais importância para o cerebelo como chave para o tratamento do Parkinson – Foto: Shutterstock

A pesquisadora afirma que o órgão desempenha um papel crucial no controle motor, na integração sensorial e na coordenação de atividades de diferentes grupos musculares. Portanto, a hipótese levantada foi de que a utilização da estimulação neural, associada a intervenções físicas, aumentaria a conectividade e a ativação das regiões cerebrais responsáveis pelo controle motor, resultando em ganhos de estabilidade do equilíbrio corporal.

Foram recrutadas 46 pessoas de ambos os sexos e com faixa etária entre 50 e 80 anos. Os voluntários foram distribuídos em três grupos: o primeiro recebeu a ECTCC com intensidade de 2mA (miliampère, uma unidade que mede a potência da corrente elétrica, equivalente a um milésimo de ampère); o segundo com 4mA; e o terceiro a ECTCC simulada (sham), isto é, um grupo de controle que não receberia estimulação ativa.

Treinamentos de equilíbrio

Os voluntários fizeram visitas ao laboratório, com análises clínicas e verificação dos critérios de inclusão e também sessões de treinamento e avaliações realizadas antes e depois das sessões de neuroestimulação, que eram associadas ao treinamento de equilíbrio dinâmico. Durante a prática, foram posicionados os eletrodos de estimulação e a touca de neuroimagem, instrumento utilizado para monitorar a atividade neural.

Treinamento pode ter melhorado a utilização da via responsável pela movimentação e a retomada do controle automático da postura – Foto: Núbia Ribeiro da Conceição

Futuro promissor

Para verificar os efeitos progressivos, sessão a sessão, foram realizados testes em superfície maleável que requisitavam controle do equilíbrio estático e dinâmico.

Foram avaliados o controle do equilíbrio corporal através dos dados do centro de pressão coletados pela plataforma de força, além da atividade do córtex pré-frontal durante a execução das tarefas.

Ao final do programa de treinamento, no último dia, a avaliação dos ganhos cumulativos foi realizada com tarefas em superfície rígida, requisitando novamente o controle em postura quieta e dinâmica sobre a plataforma de força.

Após análise dos resultados, a pesquisadora concluiu que a utilização da neuroestimulação durante seis sessões de treinamento de equilíbrio dinâmico potencializou os benefícios da intervenção motora em pessoas com a doença de Parkinson em comparação àqueles que não receberam a estimulação ativa. Destaca-se, ainda, que a ECTCC de 4mA produziu efeitos positivos em maior magnitude e mais rapidamente do que o grupo que recebeu a intensidade de 2mA.

“Acreditamos que a intensidade de 4mA foi mais efetiva em excitar as conexões intracerebelares, tendo em vista que o predomínio de distúrbios posturais e locomotores na doença de Parkinson parecem estar associados a uma conectividade intracerebelar diminuída”, afirma Conceição. A pesquisadora explica que a intensidade de 4mA pode ter promovido maiores ativações e conexões das vias cerebelares ligadas ao córtex motor, ocasionando uma coordenação sensório-motora mais eficaz e fortalecida.

Os dados também indicaram que a ECTCC, associada às intervenções físicas, pode ter melhorado a utilização da via responsável pela movimentação e a retomada do controle automático da postura, uma vez que diminuiu a ativação do córtex pré-frontal, que atua com recursos de atenção e raciocínio para compensar os comprometimentos de controle do equilíbrio ocasionados pela redução da automaticidade. Sendo uma técnica que não causa desconforto ou efeitos adversos significativos, a ECTCC mostrou-se segura e eficiente – uma ferramenta complementar, ajudando em ganhos mais expressivos e de maneira mais rápida.

O trabalho, intitulado Efeitos de múltiplas sessões de estimulação cerebelar transcraniana por corrente contínua durante treinamento de equilíbrio dinâmico sobre ganhos de equilíbrio corporal e ativação cortical em pessoas com doença de Parkinson pode ser acessado na íntegra no Banco de Teses da USP por meio deste link.

*Estagiária sob supervisão de Paula Bassi. Adaptado para o Jornal da USP
Da Seção de Relações Institucionais e Comunicação da EEFE

Cientistas analisam ancestralidade genética da população paulistana

Um estudo do Instituto de Biociências (IB) utilizou uma calculadora científica para investigar a ancestralidade média da população de São Paulo. A publicação apontou uma ancestralidade global média 77,5% europeia, 10,4% africana, 7,4% nativa americano, 4,1% leste asiática, 0,5% sul asiática e 0,1% oceânica. Já a análise por grupos populacionais apontou predominância basca/ibéria (entre 33,9% e 37,9%), albânia/itália/sardenha (entre 22,3% e 26,7%) e do oeste europeu (entre 6,2% e 7,2%).

Apesar da análise ser focada na ancestralidade coletiva, o estudo também fez investigações individuais. Nestes casos, havia presença de múltipla ancestralidade, o que indica um perfil miscigenado da população. As miscigenações mais comuns na amostra são entre europeus, africanos, ameríndios e leste-asiáticos.

Em entrevista ao Jornal da USP, o pesquisador Raphael Amemiya afirmou: “ a população paulistana não é apenas heterogênea [composta por diferentes grupos étnicos, que podem ou não ser isolados um do outro], mas também miscigenada, ou seja, diferentes grupos populacionais podem se expressar no gene de uma só pessoa”. Os Estados Unidos e a Índia são exemplos de países heterogêneos, mas menos miscigenados.

Grupos populacionais Ancestralidade média
Basca/Ibéria 33,9% – 37,9%
Albânia/Itália/Sardenha 22,3% – 26,7%
Oeste da Europa 6,2% – 7,2%
Esan/Yorubá 5,4% – 7,2%
Karitiana/Suruí/Wichí 3,7% – 4,5%
Oriente Médio/Norte da África 3% – 3,8%
Japão 2,9% – 3,7%

Mais dados populacionais

Os estudos de ancestralidade apresentaram avanços nas últimas décadas. Ferramentas de Inteligência Artificial e Machine Learning, como a calculadora utilizada neste estudo, estão cada vez mais autônomas do pesquisador. Uma tendência de estudos é a aproximação da área com outros campos do conhecimento, como a arqueologia e a história. Algumas pesquisas traçam rotas históricas de migração, o que aproxima informações genéticas a achados arqueológicos.

Apesar do progresso recente, esses estudos são uma área em processo de refinamento e ainda percorrem diferentes desafios, como a sub-representação de populações (especialmente de povos nativos, latinoamericanos e africanos) em bancos de dados genéticos. O pesquisador aponta que inferir misturas muito antigas e complexas também é um grande desafio para os cientistas da área.

“A ideia era fazer uma calculadora de fácil uso, com linguagem de programação simples – como o Python – mas que captasse a complexidade dessas amostras foi desafiador”, destaca Miyama.

A frequência alélica identificada por “Genera” é a amostra da população paulistana disponibilizada pelo laboratório. A aproximação desses elementos com os outros grupos demonstra uma provável ascendência e casos de miscigenação – Imagem: reprodução do artigo

Relevância da análise

Os testes genéticos de ancestralidade, além de serem úteis para a pessoa conhecer mais sobre si mesma, também são úteis na área da saúde. Estudos apontam que certos fatores genéticos variações genéticas associados a doenças apresentam frequências variadas em diferentes grupos populacionais. Variantes associadas à diabetes tipo 2, hipertensão, insuficiência renal e câncer de próstata são exemplos.

“Se testes de riscos genéticos forem estabelecidos clinicamente, saber a ancestralidade é importante para uma interpretação mais acurada de risco”

O artigo também chama atenção para o fato de que grande parte dos estudos genéticos são feitos em populações europeias e, por isso, a patogenicidade (capacidade de um agente biológico causar doença) de algumas variantes não é totalmente compreendida em pessoas de fora do continente. O reconhecimento da ancestralidade paulistana direciona os cientistas para a produção de novos estudos e interpretações.

O artigo “Análise da ancestralidade genética da população de São Paulo” está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: raphael.amemiya@usp.br

FONTE: Jornal da USP