Glicose alta estimula acúmulo de células nos vasos e aumenta risco de trombose

Uma pesquisa de cientistas do Cepid Redoxoma, sediado no Instituto de Química (IQ) da USP, revelou novos mecanismos pelos quais a hiperglicemia provoca a trombose. Os pesquisadores identificaram uma proteína que, em situações onde há excesso de glicose no sangue, favorece o acúmulo de plaquetas (células sanguíneas) na parede dos vasos, levando à formação de trombos, coágulos que obstruem o fluxo sanguíneo. O estudo pode levar a estratégias direcionadas para prevenir disfunção cardiovascular em pessoas com diabetes ou naquelas que apresentam hiperglicemia prolongada. Os resultados estão em artigo publicado no Journal of Thrombosis and Haemostasis.

“A principal causa de morte na população brasileira e em vários outros países latino-americanos são eventos isquêmicos, doenças cardiovasculares, como infarto e AVC isquêmico, nos quais a trombose arterial é o evento causal precipitante. Essas doenças podem ser desencadeadas por uma série de fatores de risco, como hiperglicemia, dislipidemia e hipertensão”, afirmou Renato Gaspar, que realizou a pesquisa durante o pós-doutorado, sob a supervisão de Francisco Rafael Martins Laurindo, do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e do Cepid Redoxoma. Atualmente, Gaspar é professor do Departamento de Medicina Translacional da Universidade de Campinas (Unicamp). “Desses fatores, a hiperglicemia parece se associar de maneira muito importante com as doenças cardiovasculares. Então, a relevância do problema que a gente aborda parte desse ponto”.

A hiperglicemia ocorre quando há um excesso de glicose (açúcar) no sangue e é uma das manifestações do diabetes. Em um artigo publicado em 2022 na revista Plos One, os pesquisadores mostraram que, no Brasil, entre 2005 e 2017, a hiperglicemia foi o fator de risco que mais se associou a mortes por doenças cardiovasculares em comparação a outros fatores modificáveis. Condições de hiperglicemia prolongada estão associadas ao aumento do risco de trombose, ao provocar disfunção endotelial, que promove adesão plaquetária e a formação de trombos, ou coágulos sanguíneos. O endotélio é o revestimento interno dos vasos sanguíneos e plaquetas são células produzidas pela medula óssea que circulam na corrente sanguínea e ajudam o sangue a coagular.

Agora, os pesquisadores mostraram que, na hiperglicemia, a proteína dissulfeto isomerase A1 peri/epicelular (pecPDI) endotelial regula a interação entre as plaquetas e o endotélio, por meio de proteínas relacionadas à adesão e de alterações na biofísica da membrana endotelial. “Mostramos uma via da PDI na célula endotelial que é mediadora da trombose no diabetes em condições de hiperglicemia, envolvendo um mecanismo molecular específico, que foi identificado,” afirma Laurindo. A PDI é uma enzima do retículo endoplasmático, estrutura da célula que sintetiza proteínas e lipídios, também encontrada no meio extracelular, na forma de pecPDI, em vários tipos de células, incluindo plaquetas e células endoteliais. Estudos vêm demonstrando que a pecPDI regula a trombose em vários modelos.

Modificações

Para investigar a relação das plaquetas com o endotélio na hiperglicemia, os pesquisadores criaram um modelo com células endoteliais da veia umbilical humana (HUVECs) cultivadas em diferentes concentrações de glicose. Produziram assim células normoglicêmicas, com níveis normais de glicose, e hiperglicêmicas, com excesso de glicose. A contribuição da proteína dissulfeto isomerase A1 (PDI) foi avaliada usando inibidores de PDI de célula inteira ou de pecPDI. Inicialmente, as células foram incubadas com plaquetas coletadas de pessoas saudáveis. Nas células hiperglicêmicas, as plaquetas aderiram quase três vezes mais do que nas normoglicêmicas. Como a inibição da PDI anulou esse efeito, os pesquisadores concluíram que o processo é regulado pela pecPDI do endotélio.

Para entender melhor o resultado, os cientistas investigaram processos biofísicos, como o remodelamento do citoesqueleto das células endoteliais, e viram que as células hiperglicêmicas tinham fibras mais bem estruturadas do que as células não hiperglicêmicas. Também mediram a produção de peróxido de hidrogênio (H202), substância mediadora da reorganização da adesão celular. Neste caso, as células hiperglicêmicas geraram duas vezes H202.

A etapa seguinte foi investigar se a reorganização do citoesqueleto afetava a rigidez das membranas celulares, pois plaquetas tendem a aderir às superfícies mais rígidas. Com o uso de microscopia de força atômica, comprovaram que as células hiperglicêmicas eram mais rígidas que as normoglicêmicas. Os estudos de microscopia de força atômica foram realizados em colaboração com o grupo da pesquisadora Luciana Magalhães Rebelo Alencar, do Departamento de Física da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). “Foi importante no trabalho abordar aspectos bioquímicos e biofísicos. Eu acho que a gente quase nunca pensa na biofísica, por exemplo, na rigidez de proteínas. Mostrar que a PDI de alguma forma regula essa rigidez na célula endotelial talvez abra uma forma de pensar um pouco além da bioquímica”, afirma Gaspar.

Células normais e hiperglicêmicas com e sem inibidores da proteína pecPDI, que anula o aumento da adesão plaquetária no revestimento dos vasos sanguíneos; células foram incubadas com plasma rico em plaquetas isoladas de doadores saudáveis e as setas indicam agregados plaquetários densos  – Imagem: Reprodução/CEPID Redoxoma

As imagens obtidas por microscopia também mostraram a formação de prolongamentos das células, com vesículas extracelulares que pareciam se separar dos prolongamentos. Essa observação levou os pesquisadores a investigar o conjunto de proteínas secretadas pelas células, o secretoma, para saber se estavam liberando proteínas que pudessem aumentar a adesão plaquetária. “A ideia desse experimento era detectar proteínas que estariam exclusivamente expressas ou presentes em células hiperglicêmicas, e não nos controles ou naquelas tratadas com os inibidores da PDI”, explica o pesquisador do InCor.

Para isso, realizaram estudos de proteômica, identificando as proteínas presentes nas células, em colaboração com o grupo da pesquisadora Graziella Eliza Ronsein, do Instituto de Química (IQ) da USP e do Cepid Redoxoma. No secretoma, encontraram 947 proteínas, das quais selecionaram oito com papel na adesão celular. Eles então diminuíram a expressão gênica de três dessas proteínas usando a ferramenta de RNA de interferência e chegaram a duas proteínas, a SLC3A2 e a LAMC1, como moduladoras da adesão plaquetária. A SLC3A2 é uma proteína ligada à membrana e LAMC1 é a subunidade gama da laminina, um componente-chave da matriz extracelular.

A conclusão foi que a exposição à hiperglicemia induziu a secreção de proteínas específicas relacionadas à adesão e que a inibição da PDI e da pecPDI impediu que as células endoteliais secretassem essas proteínas. A PDI é uma proteína envolvida na formação de trombos. Em estudos anteriores independentes, tanto Gaspar quanto Laurindo mostraram a relação da PDI com a NADPH oxidase 1 (Nox 1) em diferentes situações, inclusive na adesão plaquetária. As Noxs são enzimas que catalisam a redução do oxigênio molecular e participam da geração de outros oxidantes.

Segundo os pesquisadores, já existem ensaios clínicos com inibidores da pecPDI, com foco em doenças como anemia falciforme e trombose associada ao câncer. “Nosso trabalho adiciona a perspectiva de tratamento de uma nova doença, o diabetes. Talvez a gente possa olhar para a prevenção secundária de isquemia no diabetes,” afirmou Gaspar.

Para Laurindo, a perspectiva de que possam existir inibidores específicos da trombose no diabetes inclui não apenas a PDI, mas também as proteínas SLC3A2 e LAMC1 (laminina). “Inibir a LAMC1 é um pouco mais complicado, porque ela é uma proteína que tem várias funções, mas a SLC3A2 seria um alvo potencial e não tem nada na literatura sobre a inibição dessa proteína como um antitrombótico.”

O artigo Endothelial protein disulfide isomerase A1 enhances membrane stiffness and platelet-endothelium interaction in hyperglycemia via SLC3A2 and LAMC1, de Renato S. Gaspar, Álefe Roger Silva França, Percillia Victoria Santos Oliveira, Joel Félix Silva Diniz-Filho, Livia Teixeira, Iuri Cordeiro Valadão, Victor Debbas, Clenilton Costa dos Santos, Mariana Pereira Massafera, Silvina Odete Bustos, Luciana Magalhães Rebelo Alencar, Graziella Eliza Ronsein e Francisco R. M. Laurindo, pode ser lido aqui.

*Texto: Maria Célia Wilder, Cepid Redoxoma. Adaptado por Júlio Bernardes e Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

“Relógios cerebrais” indicam que envelhecimento neurológico é maior na América Latina

Método usa dados de ressonância magnética funcional e eletroencefalografia para calcular diferença entre idade cerebral e cronológica, associada a risco de doenças neurodegenerativas

Um grupo de 75 pesquisadores de instituições de 15 países identificaram que desigualdades socioeconômicas, poluição e disparidades de saúde estão associados a uma maior idade cerebral, especialmente nas populações da América Latina e Caribe. A pesquisa, que teve a colaboração da USP, usou o método dos “relógios cerebrais” (do inglês, “brain clocks”) para calcular, com base em dados de eletroencefalograma (EEG) e ressonância magnética funcional (RMf) de mais de 5 mil pacientes, a discrepância com a idade cronológica. Os fatores apontados pelo estudo podem levar a um envelhecimento cerebral acelerado e risco aumentado de doenças neurodegenerativas.

Os resultados da pesquisa são apresentados em artigo publicado no site Nature Medicine, do último dia 26 de agosto. “Especificamente, o estudo buscou quantificar a lacuna de idade cerebral, medindo as discrepâncias com a idade cronológica dos participantes, a fim de entender melhor a saúde do cérebro”, explica ao Jornal da USP a neuropsicóloga Maira Okada de Oliveira, uma das pesquisadoras que assinam o artigo, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Foram analisados pacientes na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru, Cuba, China, Estados Unidos, Escócia, França, Grécia Inglaterra, Irlanda, Itália e Turquia.

O estudo analisou a diversidade e as disparidades no envelhecimento cerebral e na demência em populações geograficamente diversas, usando o conceito de “relógios cerebrais”. “Os ‘relógios cerebrais’ servem como indicadores da saúde cerebral e podem refletir os efeitos de vários fatores, incluindo genética, estilo de vida e influências ambientais no envelhecimento”, relata a pesquisadora.

“O trabalho explorou a influência da diversidade, investigando como fatores geográficos, socioeconômicos, sociodemográficos, sexos e neurodegeneração afetam a lacuna de idade cerebral, especialmente em países da América Latina e do Caribe (LAC) em comparação com países de fora da região”, aponta Maira. “Também criou uma arquitetura de ‘deep learning’ que usa interações de alta ordem entre dados de ressonância magnética funcional (RMf) e eletroencefalograma (EEG) para prever lacunas e ser sensível aos impactos da diversidade”.

“Deep learning” é um tipo de aprendizado de máquina que usa algoritmos para processar e interpretar dados em profundidade. “Esse modelo foi desenvolvido para capturar a diversidade e as disparidades no envelhecimento cerebral e na demência em populações geograficamente diversas”, diz a pesquisadora da USP. “O estudo sugere que, ao integrar dados de diferentes regiões e contextos socioeconômicos, é possível criar ferramentas mais inclusivas e acessíveis para avaliar a saúde cerebral”.

Gráfico mostra como os pesquisadores elaboraram os “relógios cerebrais” baseados em exames de Eletroencefalograma (EEG) e Ressonância Magnética Funcional (RMf) na América Latina e Caribe (LAC) e em outros países fora da região.

 

Fatores de risco

De acordo com a neuropsicóloga, os pesquisadores identificaram fatores de risco associados ao comprometimento cognitivo leve (CCL), à doença de Alzheimer (DA) e à variante comportamental da demência frontotemporal (vcDFT), contribuindo para a caracterização e identificação da disseminação dos processos das doenças. “Esses objetivos visam não apenas aumentar a compreensão do envelhecimento cerebral, mas também fornecer ferramentas que possam ser utilizadas em contextos clínicos para melhorar a detecção e o manejo de doenças neurocognitivas”.

O estudo analisou 5.306 participantes, dos quais 2.953 passaram por ressonância magnética funcional (RMf) e 2.353 por eletroencefalografia (EEG), incluindo 3.509 pessoas saudáveis, 517 com CCL, 828 com DA e 463 com vcDFT. “A pesquisa verificou várias questões, entre elas a lacuna de idade cerebral, calculando a partir dos dados de RMf e EEG, a discrepância com a idade cronológica dos participantes”, descreve Maira. “A aplicação do modelo indica que os participantes da América Latina e Caribe apresentaram idades cerebrais mais velhas em comparação com os de outras regiões”.

“O estudo sugere que desigualdades socioeconômicas, poluição e disparidades de saúde estavam associados a lacunas de idade cerebral aumentadas, especialmente nas populações LAC”, salienta a neuropsicóloga. “Esses fatores podem contribuir para um envelhecimento cerebral acelerado e maior risco de doenças neurodegenerativas”.

Segundo Maira Okada de Oliveira, os pesquisadores recomendam que futuros trabalhos deveriam incluir mais variáveis, como identidade de gênero, status socioeconômico e estratificação étnica, para enriquecer a compreensão do envelhecimento cerebral em populações diversas. “A pesquisa sugere que, ao integrar dados de diferentes regiões e contextos socioeconômicos, é possível criar ferramentas mais inclusivas e acessíveis para avaliar a saúde cerebral”, afirma. “O uso de EEG, que é portátil e mais acessível em comparação com técnicas de imagem como RMf, facilitaria a implementação do modelo em ambientes clínicos, especialmente em regiões com recursos limitados”.

“No futuro, os modelos de lacunas de idade cerebral poderão ser utilizados para estabelecer protocolos globais para o envelhecimento e os transtornos neurocognitivos, permitindo uma abordagem mais personalizada no tratamento e na prevenção dessas condições”, ressalta a pesquisadora. “Essas estratégias contribuirão para a implementação prática dos ‘relógios cerebrais’ na clínica, melhorando a detecção precoce e o manejo de doenças neurodegenerativas”.

O artigo tem como primeiro autor Sebastian Moguilner, da Universidad Adolfo Ibañez (Chile), além de pesquisadores da Universidad de San Andrés (Argentina) e do Massachusetts General Hospital and Harvard Medical School (Estados Unidos). Na USP, o pesquisador principal foi o neurologista Leonel Takada, médico assistente do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FMUSP). Também participaram Renato Anghinah e Luís Almeida Manfrinati, do Centro de Referência em Distúrbios Cognitivos (Ceredic) do HC.

Mais informações: email maira.okada@gmail.com, com Maira Okada de Oliveira

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Pesquisadores buscam melhor atendimento para doença respiratória de alta mortalidade

Programa internacional produzirá indicadores da qualidade do atendimento a pacientes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) nos serviços de saúde da Argentina, Brasil e Peru; doença é quarta causa de morte no continente

Em conjunto com pesquisadores da Universidade de Birmingham (Reino Unido), da Universidad Científica del Sur do Peru e da Universidad de Buenos Aires (Argentina), pesquisadores da USP estão lançando projeto que ajudará a identificar e tratar pacientes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) nesses três países. Trata-se do projeto Breathe Well South America, financiado pelo National Institute for Health and Care Research (NIHR) com o objetivo abordar o acesso deficiente e desigual a cuidados de saúde primários de qualidade para pacientes com DPOC.

A Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica é a quarta causa de morte no continente e afeta desproporcionalmente as pessoas que vivem na pobreza e, mais importante ainda, pelo menos três quartos dos casos permanecem sem diagnóstico, portanto, sem tratamento. Desde o último mês de julho, o programa vem avaliando a qualidade atual dos cuidados primários para DPOC nesses países (Argentina, Peru e Brasil). No território brasileiro, a pesquisa ocorrerá na região do Butantã, no munícipio de São Paulo (SP), e nas cidades de São Bernardo do Campo (SP), Manaus (AM) e Alcântara (MA).

O líder do projeto no Brasil é o professor Paulo Andrade Lotufo, da Faculdade de Medicina (FMUSP) e Superintendente de Saúde da USP. “Os resultados do Breathe Well permitirão melhorar muito o atendimento à população com doenças respiratórias na atenção primária à saúde, com resultados que serão inéditos em populações indígenas e quilombolas”, destaca.

Indicadores

Os investigadores irão então desenvolver um conjunto de indicadores de qualidade da DPOC e uma identificação e via de tratamento para pacientes com DPOC na atenção primária. Eles testarão a viabilidade destes em diferentes ambientes e modelarão a relação custo-eficácia, além do impacto potencial das desigualdades na saúde.

Através destas atividades de capacitação, o programa visa desenvolver uma infraestrutura de investigação sustentável e de líderes, a fim de fornecer investigação sobre DPOC de alta qualidade no futuro. Isto incluirá a formação de indivíduos numa série de competências e métodos genéricos, clínicos e de investigação.

Os investigadores desenvolverão um envolvimento sustentável com membros da comunidade, líderes clínicos e partes interessadas políticas, para garantir que o estudo esteja enraizado nas necessidades locais, nacionais e regionais, com caminhos claros para impactar a saúde e os cuidados de saúde. Irão também colaborar com as partes interessadas em todos os níveis para garantir que os resultados da investigação sejam postos em prática e para explorar oportunidades para estudos futuros.

Mais informações: e-mail cpce@hu.usp.br

*Do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP, adaptado para o Jornal da USP

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP