Pesquisadores alertam para “epidemia silenciosa” de dependência química em idosos

Fortalecer políticas públicas de literacia em dependência química pode ajudar os idosos a buscar apoio adequado e tomar decisões mais seguras sobre o uso de substâncias químicas

Pesquisadores da USP publicaram, na seção Cartas ao Editor do World Journal of Psychiatry, um texto abordando a dependência química entre idosos, tema classificado pelo Painel Internacional de Controle de Narcóticos (INCB/2021) como uma “epidemia silenciosa”. A carta aponta para o aumento do consumo de álcool, maconha, analgésicos, tranquilizantes e outros medicamentos em pessoas acima de 60 anos, e defende a necessidade de fortalecer políticas públicas em “literacia em dependência química” – termo que diz respeito à capacidade dos idosos de acessar informações, compreender riscos e tomar decisões assertivas sobre o uso de substâncias químicas.

Cartas ao Editor são um formato tradicional em revistas científicas que convidam especialistas a comentar e analisar artigos publicados com o objetivo de manter o debate em aberto, estimular novas pesquisas e promover o diálogo entre autores, leitores e a comunidade acadêmica. Os autores da carta Empoderando adultos mais velhos: aprimorando a alfabetização sobre dependência química para lidar com vulnerabilidades específicas são o psicólogo e pesquisador Kae Leopoldo, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP e pesquisador do Instituto Perdizes do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, e o médico psiquiatra João Maurício Castaldelli Maia, também pesquisador do Instituto Perdizes do HC e professor da FMUSP.

Os pesquisadores analisaram artigos de instituições internacionais que trataram de diferentes aspectos da dependência química em idosos. Entre os temas abordados estão os impactos do uso de substâncias na saúde física e mental, o papel da literacia em saúde nessa faixa etária, o crescimento do consumo de drogas nos últimos anos e os efeitos da cannabis sobre a saúde dos idosos dentre outros.

Kae Leopoldo ressalta a necessidade urgente de políticas públicas voltadas à literacia química, um conceito derivado da alfabetização ou literacia em saúde, diante do envelhecimento populacional. Ele alerta que “os idosos são um grupo de risco para diversos problemas de saúde, e o aumento do consumo de drogas nessa faixa etária já é considerado uma epidemia mundial”.

Um dos artigos que mais chamaram a atenção dos pesquisadores da USP foi O papel mediador da alfabetização em saúde na relação entre isolamento social e sofrimento psicológico entre idosos pré-frágeis, assinado por três pesquisadores da Universidade de Huzhou, na China.

O estudo aponta que a fragilidade se tornou um problema relevante de saúde pública e que o aumento do número de idosos frágeis tem ampliado a demanda por serviços de atendimento psicológico nas comunidades.

O trabalho destaca ainda que o isolamento social entre idosos pré-frágeis pode agravar o sofrimento psicológico, o que pode elevar o consumo de substâncias químicas.

Participaram da pesquisa 254 “idosos pré-frageis com sinais como fraqueza muscular, perda de peso e lentidão na marcha, mas que ainda não atingiram um estado de fragilidade completo, que implica uma combinação mais significativas desses sintomas e maior vulnerabilidade”, explica o pesquisador.

Entre os resultados, o estudo indica que o isolamento social está negativamente associado à alfabetização em saúde, que por sua vez está ligada ao sofrimento psicológico nesse grupo vulnerável. Também aponta que a literacia em saúde atua como fator mediador dessa relação. De acordo com os autores, além de incentivar conexões sociais, é essencial investir em medidas de educação em saúde para reduzir os impactos do isolamento e proteger o bem-estar psicológico dessa população.

Aumento do consumo de Cannabis

Outro artigo comentado com destaque pelos pesquisadores trata da tendência crescente do uso de cannabis entre pessoas com mais de 60 anos em diversas regiões do mundo. “Embora muitas vezes utilizada para aliviar dor ou insônia, a substância pode agravar problemas de saúde, sobretudo quando associada a outros medicamentos”, alerta Kae Leopoldo.

O artigo Impactos da cannabis medicinal e não medicinal na saúde de idosos: resultados de uma revisão de escopo da literatura é de autoria de pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa do Canadá. O trabalho fez uma revisão de 134 estudos a partir de mais de 31 mil citações, com foco nos efeitos da cannabis medicinal e recreativa em adultos mais velhos.

O estudo indica que a legalização da substância em alguns países impulsionou seu consumo entre idosos e destaca que mudanças físicas e cognitivas relacionadas à idade podem alterar seus efeitos nesse grupo em comparação aos mais jovens. Os resultados mostram que os efeitos terapêuticos da cannabis medicinal são inconsistentes, com alguns estudos sugerindo benefícios em casos específicos — como câncer em estágio terminal ou demência —, mas a maioria apontando mais riscos do que vantagens.

“Fortalecer a literacia em dependência química pode ajudar os idosos a buscar apoio adequado e tomar decisões mais seguras sobre o uso de substâncias” – Kae Leopoldo

Entre os efeitos adversos associados ao uso da substância estão maior incidência de depressão, ansiedade, comprometimento cognitivo, uso problemático de substâncias, acidentes, lesões e aumento da procura por serviços de saúde. Os autores ressaltam que muitos estudos são pequenos e carecem de metodologias consistentes para avaliar danos, o que reforça a necessidade de mais pesquisas sobre o tema. Segundo o psicólogo, “muitos idosos desconhecem os riscos associados à dependência química, o que os deixa despreparados para lidar com a complexidade do uso de substâncias e seus efeitos”, explica.

Entre as estratégias sugeridas na carta estão campanhas de educação em saúde adaptadas, realizadas em centros comunitários, unidades de atenção primária e também em plataformas digitais. Essas ações devem priorizar três frentes: conscientizar sobre interações entre medicamentos e substâncias como álcool, cannabis e opioides; orientar sobre o uso seguro de drogas terapêuticas, como a maconha medicinal, reforçando que, na maioria dos casos, a prática mais segura é a abstinência; e promover a desestigmatização, criando espaços sem julgamentos para que idosos possam expor preocupações e buscar ajuda.

Instituto Perdizes

Os pesquisadores Kae Leopoldo e João Maurício Castaldelli Maia integram a equipe do Instituto Perdizes, que faz parte do complexo hospitalar do HC. O grupo está se estruturando para realizar pesquisas sobre literacia química em idosos. O instituto abriga o Centro de Álcool e Drogas, voltado à assistência, ensino, pesquisa e reinserção social de pessoas com uso problemático de substâncias, oferecendo hospital-dia e atendimento ambulatorial. Além disso, dispõe de 80 leitos destinados a pacientes em recuperação que ainda necessitam de internação breve.

A carta Empoderando adultos mais velhos: aprimorando a alfabetização sobre dependência química para lidar com vulnerabilidades específicas está disponível on-line e pode ser lida neste link.

Mais informações: Kae Leopoldo, kae.leopoldo@usp.br, e João Maurício Castaldelli-Maia, jmcmaia2gmail.com

FONTE: Jornal da USP

Estudo da USP aponta alternativas inovadoras contra leucemias agressivas

As leucemias agudas, doenças agressivas do sangue que ainda apresentam altos índices de resistência e recaída, ganharam novas perspectivas de tratamento a partir de uma pesquisa desenvolvida no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. O trabalho de doutorado do biomédico Hugo Passos Vicari investigou diferentes abordagens — de compostos sintéticos inéditos ao reposicionamento de medicamentos já aprovados para outros tipos de câncer — tendo como alvo os microtúbulos, estruturas essenciais para a divisão celular. Os resultados podem indicar caminhos promissores para pacientes que não respondem às terapias convencionais.

Os microtúbulos foram escolhidos como foco do estudo por funcionarem como uma espécie de “esqueleto” da célula. “Eles permitem que a célula se mova e se divida. A ideia é interromper esse processo. Ao atacar essa estrutura, conseguimos bloquear a proliferação e induzir a morte celular”, explica Vicari. Para alcançar esse objetivo, a pesquisa seguiu três linhas complementares: analisar proteínas associadas aos microtúbulos como potenciais alvos terapêuticos, testar o reposicionamento de fármacos e desenvolver novas moléculas de ação inédita contra a leucemia.

Na primeira abordagem, o grupo avaliou a proteína Stathmin 1 (STMN1) – reguladora da dinâmica dos microtúbulos – em amostras de medula óssea de pacientes com leucemia promielocítica aguda, um dos subtipos da Leucemia Mieloide Aguda. A STMN1 mostrou-se altamente expressa em células leucêmicas e associada à proliferação celular. Quando silenciada, reduziu a capacidade das células de formar colônias, sugerindo que pode atuar como biomarcador e alvo terapêutico.

“Atacar a Stathmin 1 é promissor porque essa proteína está presente principalmente em células tumorais, o que abre perspectivas de maior seletividade”, ressalta João Agostinho Machado Neto, orientador da pesquisa e professor do Departamento de Farmacologia do ICB.

Outra vertente investigou o uso de medicamentos já existentes. O Paclitaxel, quimioterápico empregado contra tumores sólidos, demonstrou eficácia em células de leucemia promielocítica aguda resistentes ao tratamento padrão com ácido All-Trans Retinoico (Atra). O achado indica que o fármaco pode oferecer alternativas para pacientes que não respondem às terapias atuais.

A pesquisa também avaliou a Eribulina, aprovada para o tratamento do câncer de mama, mas inédita em estudos sobre leucemias. Em um painel abrangente de linhagens de leucemia mieloide aguda e leucemia linfoblástica aguda, o fármaco apresentou alta toxicidade contra células leucêmicas e baixa toxicidade em células normais, sugerindo boa margem de segurança. Além disso, foram identificados biomarcadores de resposta — como MDR1, PI3K/AKT e NF-κB — que podem auxiliar na seleção de pacientes em futuros ensaios clínicos.

A Eribulina causa anormalidades mitóticas que induzem a apoptose em células sanguíneas malignas. A resistência à eribulina está associada a marcadores específicos, como NF-kB, p-AKT e glicoproteína-P. O Elacridar, um inibidor da glicoproteína-P, potencializa os efeitos antineoplásicos da eribulina, sugerindo que o tratamento combinado pode superar a resistência à eribulina – Imagem: Hugo Vicari/extraída do artigo

Molécula inédita

Outro resultado relevante foi a combinação da Eribulina com o Elacridar – inibidor do transporte de substâncias utilizado para aumentar a disponibilidade e concentração intracelular de medicamentos contra o câncer. A combinação potencializou os efeitos e superou mecanismos de resistência, um dos maiores obstáculos no tratamento das leucemias. “O fato de a Eribulina já ser aprovada em humanos é muito relevante. Sua segurança e dosagem já são conhecidas, o que pode acelerar ensaios clínicos em leucemias agudas”, destaca Machado Neto.

A etapa mais inovadora surgiu em colaboração com o Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O grupo sintetizou o composto C2E1, da classe dos ciclopenta[β]indóis, nunca antes testado em modelos de leucemia. Os resultados foram considerados surpreendentes: o C2E1 apresentou elevada citotoxicidade contra células de leucemia aguda (mieloide e linfoide), induzindo apoptose, bloqueio do ciclo celular e redução da formação de colônias, além de baixa toxicidade para células normais.

Outro diferencial é que o composto parece não apresentar resistência cruzada com outros medicamentos que atuam sobre microtúbulos, o que amplia suas possibilidades de uso em pacientes refratários às terapias disponíveis. “Esse composto pode representar uma alternativa terapêutica promissora, já que conseguiu eliminar células malignas preservando as saudáveis — característica essencial no desenvolvimento de quimioterápicos”, conclui Vicari.

Além de revelar novos caminhos terapêuticos, a pesquisa recebeu destaque nacional ao ser agraciada com o Prêmio Capes de Tese 2025, na área de Farmacologia. Para Vicari, a premiação representa “um reconhecimento importante não só do esforço individual, mas também do trabalho coletivo desenvolvido no laboratório”. Machado Neto acrescenta que a conquista “reflete a qualidade e dedicação da equipe, e motiva a continuar avançando no desenvolvimento de novas estratégias contra as leucemias”.

A tese Investigação do potencial antineoplásico de novos fármacos que modulam a dinâmica de microtúbulos em leucemias agudas está disponível no Banco de Teses da USP e pode ser lida neste link.

* Da Assessoria de Comunicação do ICB-USP. Adaptado para o Jornal da USP

FONTE: Jornal da USP

Adoçantes artificiais são associados ao declínio cognitivo acelerado

Entre os mais de 12 mil participantes do estudo, acompanhados por oito anos, quem relatou consumir as maiores quantidades de adoçantes teve uma taxa 62% maior de declínio cognitivo global

Estudo feito no Brasil sugere que o consumo regular de adoçantes artificiais de baixa ou nenhuma caloria pode acelerar o declínio cognitivo, afetando a memória e a fluência verbal ao longo do tempo. A pesquisa, conduzida por cientistas da USP e publicada na revista científica Neurology, acompanhou mais de 12 mil pessoas por oito anos, trazendo alguns dos resultados mais abrangentes até agora sobre os possíveis efeitos em longo prazo desses substitutos do açúcar na saúde do cérebro.

O estudo encontrou uma associação significativa entre maior consumo dos adoçantes aspartame, sacarina, acessulfame-K, eritritol, sorbitol e xilitol a um declínio mais rápido na cognição global, prejudicando particularmente os domínios da memória e da fluência verbal. Os participantes que consumiram as maiores quantidades de adoçantes em geral apresentaram uma taxa 62% maior de declínio cognitivo global em comparação àqueles com consumo mais baixo. Quando divididos por tipo de adoçante, somente a tagatose, entre os que foram avaliados, não apresentou nenhuma ligação com o declínio cognitivo na análise geral.

“O consumo de adoçantes está associado a um declínio mais rápido do que aquele que já é esperado pelo passar do tempo”, explica ao Jornal da USP Claudia Suemoto, autora da pesquisa, referindo-se à perda sutil e progressiva da cognição que ocorre naturalmente com o envelhecimento, mas que parece ser acelerada pelos adoçantes.

Uma restrição da pesquisa é que ela não incluiu a sucralose, adoçante bastante usado atualmente, mas que não estava entre os mais consumidos no Brasil nos anos do estudo, que começou em 2008. Apesar disso, outros estudos também já levantaram problemas semelhantes sobre a sucralose.

Também é apresentado pelos pesquisadores como uma limitação o fato de os dados da dieta serem autorrelatados, o que, mesmo com uso de questionários validados por especialistas, pode trazer distorção. Eles mencionam ainda a impossibilidade de descartar todos os fatores de confusão residuais, como hábitos simultâneos que afetam a saúde ou mudanças na dieta ao longo do tempo.

Mesmo assim, com seu grande número de participantes e qualidade das avaliações, o estudo representa um avanço significativo na compreensão dos possíveis efeitos em longo prazo dos adoçantes artificiais na função cognitiva.

E fortalece o alerta por mais investigações: sabemos que o consumo de açúcar em excesso está bastante relacionado a uma piora na saúde cognitiva, mas não está claro se os adoçantes artificiais são uma alternativa adequada. “Já tínhamos evidências sugerindo que eles poderiam ser prejudiciais, [estando] relacionados às doenças cardiovasculares e câncer, e agora temos mais uma relacionada à cognição. Acho que essa é a mensagem”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP.

Uma pergunta antiga

Coordenadora do Laboratório de Envelhecimento na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Claudia Suemoto conta que uma das motivações da pesquisa foi pessoal. “Eu consumia muito adoçante, gosto de refrigerante zero, e adoçava meu café com adoçante. Sempre tive essa dúvida sobre a relação entre adoçantes e o declínio cognitivo, e essa hipótese me chamou mais atenção na época em que a gente fez o trabalho sobre ultraprocessados, do qual este é uma continuidade”. Ao levantar a literatura científica a respeito, os pesquisadores encontraram, além dos estudos em modelo animal, trabalhos com poucos participantes, e quiseram fazer uma análise com resultados mais significativos.

Nesta pesquisa foram usados dados do Elsa Brasil (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto). O estudo longitudinal é um tipo de pesquisa que acompanha os mesmos indivíduos ao longo do tempo, avaliados periodicamente, para verificar mudanças em variáveis específicas. “Além de uma grande quantidade de participantes, o Elsa Brasil tem um questionário de dieta excelente e nos permite pesquisar quase tudo, buscando entender se um efeito é importante ou não”, diz a neurocientista ao Jornal da USP.

A estratégia escolhida foi dividir os participantes – todos com mais de 35 anos – em três grupos, dos que tinham consumo mais intenso de adoçantes artificiais até os que consumiam muito pouco ou não consumiam. Após um acompanhamento de oito anos, os participantes nos dois grupos de mais alto consumo apresentaram taxas 35% e 62% maiores de declínio cognitivo global; e 110% e 173% maiores de declínio da fluência verbal, respectivamente. Os maiores consumidores também tiveram uma taxa de declínio de memória 32% mais alta que os demais.

Como explicar os resultados?

Possíveis mecanismos para a associação observada podem ser neurotoxicidade e neuroinflamação provocadas por metabólitos (produtos resultantes da degradação) dos adoçantes artificiais. Ainda que estudos em modelo animal não gerem respostas conclusivas para seres humanos, eles trazem alguns indícios e apontam em que caminho continuar pesquisando.

Neste caso, estudos anteriores em roedores mostraram que o aspartame, por exemplo, pode ser metabolizado em compostos neurotóxicos, levando à neuroinflamação (mediada pela micróglia, tipo de célula nervosa que atua na imunidade) e ao declínio cognitivo.

Alguns estudos em animais também apontam para o potencial dos adoçantes de alterar a microbiota intestinal, o que pode impactar a tolerância à glicose e afetar a integridade da barreira hematoencefálica, uma estrutura que envolve e protege o sistema nervoso central de agressores, sejam moléculas ou microrganismos.

“Nossas descobertas sugerem a possibilidade de danos a longo prazo do consumo de adoçantes, particularmente adoçantes artificiais e álcoois de açúcar, para a função cognitiva”, escrevem os pesquisadores.

Para mudanças nas recomendações por parte de órgãos e associações de saúde, porém, Claudia Suemoto acredita que mais pesquisas são necessárias, principalmente ensaios clínicos – em que os participantes são avaliados em condições mais bem controladas. Ela pede cautela também com a interpretação dos números, assim como os de qualquer pesquisa: “Qualquer risco relativo, quando eu divido um coeficiente por outro, vai resultar nesses números grandes”, pondera ao Jornal da USP.

Mesmo assim, considerando que outros estudos como esse encontraram resultados semelhantes, além do fato de os adoçantes artificiais serem ingredientes de alimentos ultraprocessados – já associados a problemas cognitivos em outras pesquisas –, ela opina que seu uso regular deve ser repensado.

Apesar de não ser considerado neste estudo, o consumo de sucralose já foi associado em outras pesquisas à diminuição do desempenho da memória e da função executiva, também possivelmente ligada a alterações do microbioma, neuroinflamação e neurotoxicidade dos metabólitos do adoçante.

Quanto à tagatose, que não apresentou associação com o declínio cognitivo no estudo, vale o mesmo raciocínio: ainda não dá para afirmar que “tudo bem, pode consumir à vontade”.

“É uma evidência que precisa ser corroborada por outras antes de mudarmos as políticas públicas, como aparecer alguma informação na embalagem, por exemplo”, diz Claudia Suemoto.

Aditivos cosméticos

Renata Levy também desaconselha o uso de adoçantes. A professora da FMUSP não participou deste estudo, mas tem larga produção científica em epidemiologia nutricional, em particular no tema ultraprocessados, e comentou os resultados a pedido do Jornal da USP. “Não apenas eu [desaconselho], mas também a Organização Mundial da Saúde, que em 2023 publicou a diretriz WHO Guideline on the use of non-sugar sweeteners. No documento, a OMS não recomenda o uso de adoçantes sem açúcar para controle de peso corporal ou redução do risco de doenças crônicas, como diabetes tipo 2 e as cardiovasculares, em adultos e crianças. A única exceção é para pessoas com diabetes, nas quais o uso pode ter indicação específica.”

Ela lembra que, segundo a classificação Nova, alimentos que contêm aditivos cosméticos são considerados ultraprocessados. “Esses aditivos são incluídos nos alimentos não para conservação, mas para modificar atributos sensoriais do produto. Os adoçantes se enquadram nesse grupo. Esses compostos contribuem para tornar os alimentos hiperestimulantes e podem interferir nos mecanismos naturais de saciedade e regulação do apetite. Muitos deles são classificados como xenobióticos, ou seja, substâncias estranhas ao metabolismo humano”, detalha.

Mesmo os chamados “naturais” recebem a classificação de ultraprocessados. “Ainda que alguns adoçantes tenham origem natural, como a estévia, eles são isolados e concentrados por meio de processamento industrial e adicionados a produtos nos quais não estariam presentes naturalmente.”

Para a professora, o estudo atual é extremamente relevante para a saúde pública e usa uma metodologia confiável. “O estudo de seguimento é dos delineamentos mais adequados para investigar esse tipo de associação.” Ela comenta ainda que uma das maiores dificuldades para estudar o efeito nocivo dos edulcorantes é quantificá-los com precisão nos alimentos. “Essa informação não está disponível nas tabelas de composição de alimentos nem nos rótulos. E a quantidade varia entre produtos e até entre marcas de um mesmo produto”, pontua, ao explicar que essa informação é crucial para que se possa gerar evidências mais robustas. “Isso reforça a necessidade de maior transparência na rotulagem e de bases de dados mais completas”, defende.

Domínios da cognição

Neste estudo, o desempenho nos vários aspectos foi avaliado individualmente, para depois se calcular uma pontuação de cognição global, que é o índice considerado de maior importância. “A cognição é formada por diversos domínios, e quando você tem um problema em vários, o impacto é maior”, explica Claudia Suemoto.

Os testes cognitivos estimaram capacidades como memória episódica (de recordar eventos e experiências específicas, incluindo detalhes como o que, onde e quando); fluência verbal (de gerar palavras dentro de uma categoria ou que começam com uma letra específica); e função executiva (de direcionar comportamentos a objetivos, envolvendo flexibilidade mental e velocidade de processamento para tomada de decisões).

Isolando as variáveis

Todo estudo observacional como este, que busca isolar o consumo de algum item e associá-lo a um desfecho como declínio cognitivo, que tem diversos determinantes, esbarra em confundidores que o tratamento estatístico dos dados procura mitigar.

Claudia Suemoto simplifica com um exemplo. “Digamos que eu queira saber se álcool contribui para o desenvolvimento do câncer de pulmão. Se eu não fizer um controle para o fator tabagismo, vou achar uma relação errada. Porque, normalmente, entre quem consome mais álcool também estão os que fumam bastante. E o tabagismo é um fator de risco conhecido para câncer de pulmão.”

Nesta pesquisa, em relação ao consumo de adoçantes, foram consideradas variáveis sociodemográficas (idade, sexo, renda, raça e educação), de estilo de vida (atividade física, tabagismo, consumo de álcool e padrão de dieta) e clínicas (índice de massa corporal, diabetes, hipertensão, doença cardiovascular e depressão).

Dietas saudáveis (por exemplo, a dieta mediterrânea, a Dash – focada em reduzir a hipertensão – ou a Mind, que é uma combinação das duas primeiras) aparecem como fator de proteção para o declínio cognitivo e demência, enquanto obesidade e diabetes são fatores de risco. Mas o diabetes é sem dúvida o maior confundidor. “Quem tem diabetes já tem indicação de tomar adoçante. Ao mesmo tempo, o diabetes é um fator de risco conhecido para declínio cognitivo”, observa a professora ao Jornal da USP, enfatizando a complexidade da relação.

Feitos os ajustes, a obesidade e o padrão da dieta não modificaram a associação entre o consumo de adoçantes e o declínio cognitivo, mas o diabetes sim: em indivíduos sem diabetes, o maior consumo de adoçantes foi ligado a um declínio mais rápido na fluência verbal e na cognição global. Já para os participantes com diabetes, a ingestão de adoçantes mais alta foi associada a um declínio mais rápido, tanto na memória quanto na cognição global.

Em nota, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (ABIAD) – instituição que representa a indústria de adoçantes no Brasil – informou que acompanha com atenção a publicação do estudo divulgado na revista Neurology.

O comunicado e a resposta da pesquisadora podem ser lidos na íntegra clicando aqui.

O artigo Association Between Consumption of Low- and No-Calorie Artificial Sweeteners and Cognitive Decline pode ser acessado neste link.

Mais informações: cksuemoto@usp.br, com Claudia Suemoto

*Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Olhar para a saúde mental pode tornar tratamento de dor crônica mais efetivo

Pesquisadores definem sugestões de manejo clínico para melhorar a condução dos casos de dor crônica não oncológica

O tratamento de dor crônica não oncológica (DCNO) explora pouco, ou não explora, fatores além dos orgânicos, como a saúde mental e a relação médico-paciente, antes de indicar intervenções invasivas. É o que sugerem pesquisadores da USP, Centro Universitário São Camilo e Hospital do Exército, que definiram uma lista de dez recomendações para a condução de casos de dor crônica refratária – aquela que não responde aos tratamentos.

João Solano, psiquiatra e primeiro autor do trabalho, atuou na Equipe de Controle da Dor na Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, onde teve contato próximo com pacientes com a condição. A esquipe busca, através de uma proposta multidisciplinar, evitar a cronificação da dor. O artigo, recém-publicado na revista O Mundo da Saúde, resume a sua experiência e dos demais autores no trabalho assistencial.

“Observamos que muitos dos pacientes tinham determinantes não físicos da dor e que se esses fatores não fossem abordados, eles poderiam vir a não melhorar nunca, mesmo que medidas invasivas modernas e mais caras fossem implementadas” – João Solano

O trabalho destaca que, para a Associação Internacional de Estudos da Dor (Iasp), “dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada a dano real ou potencial ao tecido”. A ideia de ser “semelhante àquela associada a dano potencial” abre espaço para contemplar o medo do paciente que antecede os potenciais riscos que podem vir a se tornar uma dor.

“Na maioria das vezes o que o paciente mais teme não é o dano real, mas aquilo que ele imagina que seja perigoso ao seu próprio corpo. A fantasia de ele vier a sofrer algo insuportável”, explica Solano.

Para ser considerada uma dor crônica não oncológica, a dor deve durar mais do que três meses e não estar relacionada a processos de câncer. O psiquiatra aponta que, em geral, a dor oncológica persiste por menos tempo, enquanto a não oncológica costuma afetar a qualidade de vida dos pacientes por anos.

Os profissionais notaram que os quadros de dor crônica podem ter sua  origem em fatores não orgânicos, ligados com a vida psíquica ou a vida psicossocial do paciente. A suspeita dos pesquisadores é que, caso essas outras vertentes da dor não sejam exploradas, o risco de cronificação seja ainda maior. Segundo eles, é frequente que fatores psicológicos ou psiquiátricos contribuam para a piora dos casos.

Condução do tratamento

As sugestões do estudo incluem: ouvir a história completa do caso; revisar os medicamentos utilizados; identificar e delimitar os possíveis benefícios da relação médico e paciente; manter boa comunicação entre a equipe; avaliar os sentimentos dos profissionais e indicar o paciente para avaliação psicológica e psiquiátrica.

Para Solano, a medicina atual, altamente auxiliada pela tecnologia, busca por origens exclusivamente orgânicas e constatáveis da dor, que sejam modificáveis ou potencialmente modificáveis por intervenções corporais.

O psiquiatra aponta que espera-se uma efetividade dos procedimentos invasivos maior do que o que se tem observado com os resultados. “Temos visto que, muitas vezes, esses procedimentos [invasivos] têm uma efetividade bem aquém do esperado. Muitos pacientes têm suas dores cronificadas a despeito da aplicação dessas medidas”, explica.

Para o artigo foi feita uma busca sistemática que avaliou se a saúde mental e a relação médico-paciente estão sendo abordadas no cenário de tratamentos dos pacientes diagnosticados com DCNO. O resultado foi de acordo com o que era esperado e revelou que estes temas têm sido pouco debatidos. Para as avaliações foram considerados 14 artigos das bases de dados Medline, PubMed, Lilacs e Cochrane Library.

Solano aponta que pacientes com casos complexos eram encaminhados para uma avaliação psiquiátrica com ele. Foi durante esse processo que o médico percebeu que eles não tinham passado por anamneses completas.

A anamnese é uma entrevista clínica realizada pelo profissional da área da saúde com o seu paciente. Para os pesquisadores, entender as possíveis raízes emocionais de um problema é fundamental para escolher a melhor forma de condução do caso.

As entrevistas podem ser classificadas como subjetivas, quando feitas diretamente com o paciente, ou objetivas, feitas com alguém próximo. O contato com um terceiro pode impulsionar a descoberta de novos cenários, como, por exemplo, a falta de completa adesão ao tratamento farmacológico.

“Para que a medicina decida se um tratamento farmacológico não está sendo efetivo e torne o paciente elegível para uma medida invasiva, é muito importante saber primeiro se o paciente vinha usando as medicações corretamente ou não”, destaca Solano.

Um artigo de Karlowicz e Bodalska, publicado em 2023 e analisado na revisão, apontou que mais de um terço dos pacientes, usuários crônicos de analgésicos, relataram que seus médicos não colheram sua história médica durante a consulta e tratamento.

Para o psiquiatra, se os médicos ficarem centrados apenas nas possíveis causas físicas da dor, não irão “descobrir o que precisa ser descoberto a respeito da dor daquele paciente”. O artigo busca sugerir mudanças para que as experiências dos pacientes sejam levadas em consideração.

Outro artigo avaliado, produzido por Emilie Pedreira (2023), identificou que a não adesão ao tratamento de paciente com DCNO pode chegar a 53% no Brasil. Para Solano, essa indicação mostra a necessidade de uma anamnese objetiva, que pode ajudar a identificar o que leva os pacientes a não se adaptarem aos tratamentos.

Há casos em que os pacientes percebem os fatores não físicos que os afetam antes de seus médicos, o que o desmotiva a dar continuidade no tratamento. “Se o doente percebe que só sente dor quando está ansioso, ele tem um registro, ainda que não consciente, de que tomar remédios para tratar unicamente causas orgânicas da sua dor pode não ser tão efetivo. Então passa a não levar o tratamento a sério”, exemplifica o psiquiatra.

Essa baixa adesão ao tratamento causa insatisfação de ambas as partes na relação médico-paciente. Ao descobrir que o doente não segue a terapia corretamente, o médico passa a também não investir completamente naquele atendimento, o que causa ainda mais frustração ao doente, criando um ciclo vicioso.

“Se o médico não estiver vigilante para perceber quais são as reações emocionais que ele tem diante do seu paciente, a situação tende a escalar e se complicar cada vez mais. Isso é um tijolinho neste grande estado de inefetividade terapêutica que, muitas vezes, a gente vê nas clínicas de dor” – João Solano

Ganhos secundários e terciários

Durante a pesquisa, os profissionais apontaram os ganhos secundários, quando o paciente se beneficia a partir de sua condição, e os terciários, quando é o médico quem se beneficia dessa condição.

Para eles, o primeiro caso pode estar associado ao contentamento do paciente, que encontrou uma zona de conforto, enquanto o segundo caso está relacionado aos benefícios da instituição ou da equipe em encaminhar o doente para intervenções invasivas.

O psiquiatra exemplifica que há pacientes que conseguem mais atenção de seus familiares ou que se afastam de suas responsabilidades. Estes fatores precisam ser levantados antes que o profissional o encaminhe para a intervenção cirúrgica.

Ele ainda destaca casos em que o quadro permite a obtenção de drogas nas quais o paciente pode estar viciado. É o exemplo de drogas facilmente indutoras de dependências, em que o paciente não tem mais estímulo para melhorar a sua dor, uma vez que é graças à ela que pode conseguir receitas de opiáceos.

Os ganhos terciários aparecem quando intervenções cirúrgicas ou invasivas são recomendadas mesmo quando outras opções de tratamento poderiam ter sido usadas e não foram. Assim, o tratamento deixa de atender a este critério ético. No contexto do artigo, os pesquisadores apontam que os médicos, ao deixarem de lado fatores psíquicos para centrarem a sua atenção somente nos aspectos físicos, podem estar inconscientemente inspirados pela obtenção de ganhos terciários.

O trabalho completo pode ser acessado neste link.

Mais informações: joaopaulocsolano@uol.com.br, com João Paulo Consentino Solano

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Pomada com própolis vermelha é testada para cicatrização de queimaduras

Experimentos iniciais em células e animais mostraram que pomada orgânica à base de própolis vermelha pode acelerar processo de cura, fechando feridas de forma rápida

Uma pomada feita a partir da própolis vermelha pode representar um avanço na cicatrização rápida de queimaduras. Um estudo da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP desenvolveu e testou o produto em cultura de células e animais. Os resultados mostraram que graças aos componentes químicos do princípio ativo, a formulação tem potencial para auxiliar vítimas dessas lesões.

A própolis vermelha é um produto típico do Nordeste brasileiro. Neste caso, a utilizada para a pomada tem como origem a cidade de Maceió, capital de Alagoas. A substância é produzida por abelhas (Apis mellifera) que retiram resina vermelha da planta nativa rabo-de-bugio.

Lauriene Luiza de Souza Munhoz, biomédica e autora do trabalho, explica que existem outras própolis no mercado, que são usuais nas práticas do campo da saúde, mas revela que o estudo foi pioneiro na aplicação desta em específico para produtos de pele.

A pesquisadora aponta, em entrevista ao Jornal da USP, que as queimaduras possuem um tratamento difícil e pouco eficaz, e, em geral, apresentam alguma inconstância na cicatrização. Sua ideia era criar um produto inovador e natural que tivesse a capacidade de curar cicatrizes complexas.

“Os produtos disponíveis na área da saúde ainda não garantem uma cicatrização completa, em geral, deixam alguma irregularidade. A ideia era trazer um produto não só inovador, mas que seja eficaz”, completa Lauriene.

Formulação da pomada

A composição química da própolis vermelha contribui para uma cicatrização mais acelerada. A alta concentração de compostos fenólicos, flavonoides e outros bioativos com propriedades antioxidantes, antimicrobianas e anti-inflamatórias permitem auxiliar as células a se proliferarem e assimilarem melhor o processo de fechamento da ferida.

Assim, o potencial da própolis vermelha em ser um ator eficaz na cicatrização já era esperado, explica Daniele dos Santos Martins, professora da FZEA e orientadora da pesquisa.

Além do produto, foi utilizado como veículo – material base, onde é diluído o princípio ativo – o emulsificante Olivem 1000, uma substância orgânica comercializada, criada a partir do óleo de oliva.

Os pesquisadores optaram por um produto que não influenciasse as respostas do princípio ativo. Entretanto, usar um item comercial serviu como garantia do funcionamento da própolis vermelha, que foi incorporada ao veículo. “Os resultados que encontramos realmente são da própolis. Nós nos certificamos que foi a própolis quem teve esses achados e não tem a ver com o veículo usado”, garante a professora.

Em relação a outros produtos já disponíveis no mercado, a biomédica aponta vantagens como a cicatrização acelerada e a formulação natural da pomada com própolis vermelha. Segundo ela, essa composição diminui os riscos de alergias.

Daniele destaca também que outros fatores são contemplados. Por exemplo, se em um eventual uso por animais, eles lamberem, ou ainda, se crianças por acidente levarem o produto à boca, não haverá graves problemas.

Avaliações

Para avaliar a queimadura no modo experimental, somente a lesão de 2º grau – quando a derme e a epiderme são atingidas – foi testada. Segundo as pesquisadoras, primeiro foram realizados testes in vitro e posteriormente in vivo, em ratos Wistar. Nos testes da pomada em si, foram realizadas análises físico-químicas e bacteriológicas.

A legislação exige testes acelerados de 90 dias em que os pesquisadores devem deixar o produtos sob estresse térmico e estresse mecânico. Esses testes simulam o tempo de estocagem e transporte, além de temperaturas altas e baixas, ajudando a entender a durabilidade do produto e como ele vai se comportar no dia a dia.

A partir dessa etapa, pode-se comprovar que a formulação é estável, por não ter mudado seu PH e cor, não ter tido separação de fase e não ter perdido a viscosidade. “Ela [a pomada] se manteve dentro dos parâmetros iniciais durante esse período, entre esses estresses que a gente submeteu à formulação”, explica Lauriene.

Durante os experimentos in vitro, foram realizados testes que demonstraram o potencial de cicatrização da própolis por meio da migração e proliferação celular, resultando na contração e redução do espaço entre as bordas da área lesada. Após o sucesso nessa etapa, os pesquisadores passaram a realizar os testes in vivo, em que faziam a comparação em animais do grupo de controle – sem tratamento nenhum – e em outro grupo com a formulação da pomada.

No grupo controle, os resultados foram negativos, enquanto o grupo com a própolis vermelha obteve resultados positivos em relação ao tempo de cura e uniformidade na cicatrização, comprovando a eficácia do princípio ativo.

“Nossos resultados mostram que a pomada formulada propiciou a melhor cicatrização, mantendo a borda da ferida regular”, explica a professora. Segundo ela, além de a pomada ser eficiente, também deixa a cicatriz com um aspecto visualmente agradável.

Daniele acredita que isso seja um ganho principalmente para o estado mental de vítimas com queimaduras visíveis. “Muitos pacientes têm que fazer um acompanhamento psicológico, porque, dependendo de onde a queimadura fica, a pessoa não quer mostrar, opta por cobrir. Conseguir um produto que deixa uma cicatriz de queimadura mais homogênea evitaria esse constrangimento.”

Em relação ao uso em queimaduras, os pesquisadores entendem que os testes já apontam para a eficácia da formulação. Segundo a professora, novos testes foram iniciados com a incorporação da pomada a um biomaterial contendo células-tronco para compreender se os seus resultados também se aplicam em outros tipos de cicatrização.

O produto orgânico se destaca pela cicatrização rápida e uniforme – Foto: cedida pela pesquisadora

Influência do sexo

A pomada se mostrou eficaz para machos e fêmeas, mas diferenças no tempo e organização da cicatrização foram observados. Os pesquisadores deram preferência em mesclar o sexo dos roedores durantes os testes, o que demonstrou a diferença na ação em cada um dos organismos.

Segundo a professora, a literatura já fazia alguns apontamentos sobre essa tendência que está relacionada, possivelmente, aos hormônios. Porém a comprovação foi inesperada para os avaliadores dos testes.

A biomédica explica que a cicatrização em machos é mais rápida, porém nas fêmeas, mesmo que mais lenta, as células migram mais corretamente, formando um tecido mais bem organizado. “No macho, o processo foi um pouco mais rápido, mas a estrutura da pele não ficou tão bem organizada quanto a da fêmea”, completa .

O artigo Red propolis cream and its therapeutic potential for skin lesions caused by burns está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: lauremunhoz@usp.br, com Lauriene Luiza de Souza Munhoz, e daniele@usp.br, com Daniele dos Santos Martins

*Estagiária sob orientação de Tabita Said

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Tratamento com luz elimina bactéria causadora de pneumonia resistente

Testado em laboratório, método emprega luz e corante para liberar partículas que destroem a bactéria Klebsiella pneumoniae, comum em hospitais

Pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP desenvolveram um tratamento inovador para a pneumonia causada por bactérias resistentes a antibióticos, um dos maiores problemas atuais da saúde mundial. A técnica usa luz e um corante para liberar partículas que eliminam a bactéria Klebsiella pneumoniae, causadora de infecções hospitalares. O método teve sua eficácia demonstrada em testes de laboratório, primeiro passo rumo a seu uso clínico.

O trabalho foi realizado em colaboração com cientistas do Departamento de Engenharia Biomédica da Texas A&M University, nos Estados Unidos, e do Departamento de Química da Universidade de Coimbra, em Portugal. Os resultados do estudo são apresentados em artigo da revista científica internacional Pathogens.

Segundo a pesquisadora Fernanda Alves, do IFSC, que realiza estudos na Texas A&M University, a cada 15 segundos, aproximadamente, uma pessoa morre de pneumonia no mundo. “Isso acontece, principalmente, porque os antibióticos já não são eficazes contra muitas bactérias super-resistentes”, ressalta. “Nesse cenário, a terapia fotodinâmica surge como uma alternativa promissora no combate às infecções.”

Entre os agentes mais perigosos da pneumonia resistente está a bactéria Klebsiella pneumoniae, comum em hospitais. O método estudado é conhecido como terapia fotodinâmica (TFD). Primeiro, aplica-se um corante especial no organismo, seguindo-se à aplicação de uma luz sobre a região infectada. A combinação faz com que o corante libere partículas capazes de destruir as bactérias sem prejudicar as células humanas.

Nos testes em laboratório, a técnica conseguiu eliminar totalmente a bactéria, mas havia um problema: dentro dos pulmões existe uma camada natural chamada surfactante pulmonar, que protege os alvéolos durante a respiração. Essa camada acabava “aprisionando” o corante e diminuindo a eficácia do tratamento.

Para superar esse desafio, os cientistas combinaram o corante com uma substância chamada Gantrez, um tipo de polímero seguro para uso médico, que funciona como um “carregador”, ajudando o corante a atravessar a barreira natural dos pulmões e a alcançar as bactérias. Com essa combinação, o número de microrganismos foi reduzido em milhares de vezes, mesmo na presença da barreira pulmonar. Ou seja, a técnica mostrou que pode funcionar também em condições mais próximas da realidade do corpo humano.

“Cada passo para tornar o método clinicamente aplicável traz novos desafios. O mais recente foi vencer a barreira natural dos pulmões: o surfactante”, destaca Fernanda Alves. “Com a adição do Gantrez ao tratamento, conseguimos resultados muito animadores, que nos deixam esperançosos para as próximas etapas, primeiro em modelos animais e, depois, em estudos clínicos.”

Embora os testes ainda estejam na fase de laboratório, os resultados trazem esperança. Se confirmada em estudos com animais e, depois, com pacientes, a terapia poderá se tornar uma alternativa aos antibióticos em casos de pneumonias graves e resistentes. Segundo os autores do estudo, esse é um passo importante no combate às chamadas “superbactérias”, que já representam uma das maiores ameaças à saúde pública no século 21.

O trabalho é assinado por Fernanda Alves, Isabelle Almeida de Lima, Lorraine Gabriele Fiuza e Natalia Mayumi Imada, do IFSC e da Texas A&M University, Zoe Arnaut, da Universidade de Coimbra, e Vanderlei Salvador Bagnato, professor do IFSC e da Texas A&M University.

Pulicado na revista científica Pathogens, o artigo Optimizing Photosensitizer Delivery for Effective Photodynamic Inactivation of Klebsiella pneumoniae Under Lung Surfactant Conditions pode ser acessado neste link.

*Rui Sintra, da Assessoria de Comunicação do IFSC. Adaptado por Júlio Bernardes

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Nanovacinas contra o câncer: panorama, problemas e desafios

Um artigo de revisão, produzido por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, traçou um panorama sobre as nanovacinas contra o câncer, abordagem que utiliza a nanotecnologia para ativar o sistema imunológico contra tumores.

A diversidade de estratégias adotadas para desenhar as nanovacinas, incluindo os tipos de antígenos, nanocarreadores, suas funções e a incorporação de adjuvantes, é abordada pelos pesquisadores. Os achados do trabalho podem orientar futuras pesquisas e contribuir para o avanço dessa terapia na luta contra a doença.

“O desenvolvimento de vacinas para câncer já existe há décadas, mas muitos problemas vêm sendo enfrentados, como a baixa imunogenicidade [capacidade de uma substância ativar uma resposta imune]”, afirma Gabriel de Camargo Zaccariotto, primeiro autor do artigo, ao Jornal da USP. “Mas, com o avanço da nanotecnologia, as coisas mudaram. Agora colocamos um antígeno dentro da nanopartícula e conseguimos fazer com que ela chegue aonde a gente quer [no caso, nas células do sistema imune] para que elas processem esses antígenos e reconheçam as células do câncer.”

As nanovacinas geralmente são compostas de três elementos fundamentais e cada um deles desempenha um papel importante para a formação da resposta imunológica.

 Os antígenos, considerados um dos componentes-chave da fórmula, estimulam o sistema imunológico a reconhecer e desencadear uma resposta contra alvos específicos. No caso do câncer, eles podem ser originados do próprio tumor, ou ainda de mRNA, peptídeos sintéticos e DNA.

Os adjuvantes são os responsáveis por aumentar a resposta imune aos antígenos, levando a uma maior eficácia da vacina. O terceiro componente são os nanocarreadores, veículos de entrega que encapsulam antígenos e/ou adjuvantes, protegendo-os da degradação, facilitando sua liberação controlada e promovendo sua entrega direcionada a células ou tecidos específicos. Eles podem ser de lipídios, polímeros ou materiais inorgânicos, cada um oferecendo vantagens diferentes em termos de estabilidade, biocompatibilidade e personalização.

Esquema de ação das vacinas no corpo humano – Fonte: Retirado do artigo

Prevenir e tratar

As nanovacinas podem ser do tipo preventivas ou terapêuticas. As preventivas visam interromper o crescimento e a proliferação tumoral antes que eles se manifestem clinicamente. Já as terapêuticas são projetadas para tratar tumores existentes, sensibilizando o sistema imunológico para reconhecer e destruir células cancerígenas. “Estamos acostumados com as vacinas preventivas, como as que protegem contra a covid-19”, explica Valtencir Zucolotto, coordenador do GNano e orientador da pesquisa. “Para o câncer, os estudos, em sua maioria, são para o desenvolvimento de vacinas terapêuticas, que estimulam o sistema imunológico a atacar aquele alvo.”

O câncer é considerado uma das mais complexas doenças existentes e, apesar dos avanços em diagnóstico e tratamento, ele ainda representa um desafio para a medicina devido à sua capacidade de escapar do sistema de defesa e à sua resistência aos tratamentos convencionais.

Em geral, a terapia do câncer é baseada na retirada do tumor seguida de quimioterapia e radioterapia, mas esses tratamentos podem ser muito debilitantes, além de proporcionar melhoras modestas na sobrevida do paciente.

Por isso, as imunoterapias, como as vacinas contra o câncer, surgiram como um novo paradigma, aproveitando a capacidade do sistema imunológico de atacar as células cancerígenas. De acordo com o estudo, uma grande vantagem dessa abordagem é a sua versatilidade: ela pode ser adaptada para diferentes tipos de câncer, estágios da doença e diferentes pacientes.

“Isso se tornou uma revolução industrial, não é mais uma revolução científica nem tecnológica”, comemora Valtencir Zucolotto, ao relembrar que esses avanços foram possíveis com a produção da vacina de RNA da Pfizer e da Moderna contra a covid-19.

Futuro

Ensaios clínicos em andamento vêm demonstrando que as nanovacinas podem aumentar significativamente a eficácia de outros tratamentos, como os inibidores de checkpoint imunológico (classe de medicamentos utilizados em vários tipos de câncer, visando às vias regulatórias do sistema imunológico, conhecidas como checkpoints). Neste caso, houve redução nos riscos de metástase, recorrência da doença e morte entre os pacientes.

Apesar de inovadora e revolucionária, a aplicação das nanovacinas ainda enfrenta muitos desafios. Poucas formulações já chegaram à fase de testes clínicos avançados e nenhuma foi aprovada até o momento para uso comercial em pacientes com câncer.

Outro ponto importante abordado pelos cientistas no artigo é a logística para fabricação. “Diferente do que a gente conhece [vacinas já prontas, disponíveis em postos de saúde e clínicas], essa [nanovacina] é fabricada de acordo com o tumor do paciente”, explica Gabriel Zaccariotto. “Temos que fazer a biópsia do tumor, levá-la ao laboratório, fazer o sequenciamento genético e produzir a vacina. O processo todo pode demorar até nove semanas e isso significa um longo período para um paciente oncológico.”

Principais desafios na produção de nanovacinas contra o câncer – Infográfico: retirado do artigo

Zucolotto é coordenador do GNano, um laboratório que estuda a nanotecnologia aplicada à saúde e ao agronegócio. “Produzimos, na parte de diagnóstico, testes rápidos como os da covid-19, que vendem na farmácia”, explica Zucolotto, que também está à frente do Centro de Nanotecnologia Aplicada ao Câncer e Doenças Raras, sediado no IFSC. “Recentemente desenvolvemos uma patente, um teste específico para tuberculose. É algo inédito e muito importante.”

Na área terapêutica, Zucolotto explica ao Jornal da USP o que o grupo vem desenvolvendo: “Criamos uma nanopartícula, que é uma partícula mil vezes menor do que uma célula humana, mil vezes menor do que a espessura de um fio de cabelo. Fabricamos essa nanopartícula e dentro dessa partícula colocamos, por exemplo, um fármaco, um remédio que é muito usado, por exemplo, para glioblastoma (tumor cerebral agressivo), o padrão ouro para tratamento quimioterápico”.

Já no agronegócio, há vários alunos estudando métodos para utilização de defensivos de maneira controlada. “Em vez de aplicar aquele monte de defensivo agrícola, nutrientes ou fertilizantes – em que enfrentamos problemas de segurança, contaminação –, colocamos esses defensivos dentro dessas nanocápsulas, que os entregam para as plantas.”  Para isso, o grupo faz parcerias com empresas nacionais e multinacionais.

Zucolotto diz que, mais recentemente, o grupo está aplicando a nanotecnologia para silenciamento genético para câncer. “Os principais são pâncreas, pulmão e glioblastoma”, relata.  Já Zaccariotto segue com seu projeto de doutorado, desenvolvendo nanopartículas naturais provenientes de microalgas, para tratamento do glioblastoma. “Não necessariamente para desenvolver uma resposta imune contra o glioblastoma, mas para afetar o tumor diretamente e fazer com que ele se torne menos agressivo”, completa o pesquisador.

*Com informações da Assessoria de Comunicação do IFSC

FONTE: Jornal da USP

Novo medicamento traz resultados inéditos no tratamento da hipertensão arterial pulmonar

Um novo tratamento pode melhorar a vida de pacientes com hipertensão arterial pulmonar (HAP), doença rara e progressiva que afeta os vasos sanguíneos dos pulmões. Um ensaio clínico mostrou que o medicamento sotatercept reduziu em 76% o risco de morte, hospitalização ou necessidade de transplante em pacientes com quadros avançados da doença. Os resultados foram considerados tão expressivos, na eficácia do ativo em comparação ao placebo, que o estudo foi interrompido na análise interina (antes do término formal), para que todos participantes recebessem o medicamento.

Aplicado por injeção subcutânea a cada três semanas, o sotatercept atua diretamente nas artérias pulmonares, reduzindo a espessura das paredes dos vasos e facilitando a circulação do sangue entre o coração e os pulmões. Com isso, alivia a sobrecarga sobre o ventrículo direito, que costuma ser forçado a trabalhar mais em pacientes com HAP. Um total de 172 pacientes participaram do ensaio, divididos entre o grupo sotatercept e placebo.

“É muito difícil desenvolver um medicamento que funcione mesmo quando o paciente já toma todas as opções terapêuticas existentes. Para fazer efeito em cima dos outros, ele precisa ter um impacto muito grande — e foi o que vimos com o sotatercept”, observa Rogério Souza, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), em entrevista ao Jornal da USP. Junto a outros 15 pesquisadores da Europa e dos EUA, ele é coautor do estudo publicado no The New England Journal of Medicine e tem acompanhado o desenvolvimento do fármaco desde sua concepção, em 2018.

Sem cura e com alto índice de mortalidade, os sintomas da HAP costumam ser inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico. A dispneia relacionada aos esforços é o sintoma mais frequente. Outras manifestações incluem: fadiga, síncope, dor torácica e palpitações. Sua origem pode ser desconhecida (idiopática), hereditária, induzida por drogas e toxinas, ou pode estar associada a outras condições, como esclerose sistêmica, insuficiências cardíacas congênitas, hipertensão portal e infecção por HIV.

 

“Demora-se muito para fazer o diagnóstico de hipertensão arterial pulmonar porque as pessoas, inclusive a população médica, têm pouco conhecimento a respeito”

Tratamento até aqui

Embora o nome possa remeter à conhecida pressão alta, a hipertensão arterial pulmonar tem origem e evolução distintas da forma sistêmica. A HAP é uma síndrome caracterizada por um aumento progressivo na resistência vascular pulmonar, resultante de circulação restrita na artéria pulmonar, o que leva à sobrecarga e falência do ventrículo direito.

Souza explica que, como o sangue encontra resistência para circular pelos pulmões, o sistema circulatório fica comprometido. “Muitas vezes o diagnóstico demora porque se pensa em asma, doença pulmonar obstrutiva crônica [DPOC], insuficiência cardíaca, e não em HAP. A própria comunidade médica conhece pouco a doença”, adiciona. A condição tem alta mortalidade, sobretudo nos pacientes classificados como de alto risco, grupo-alvo do estudo.

Durante anos, o tratamento se baseou em vasodilatadores pulmonares que agem em vias específicas, como os antagonistas de endotelina (ambrisentana, bosentana e macitentan), inibidores da fosfodiesterase (sildenafila e tadalafila) e prostanóides. “Mas essas opções tinham impacto limitado. E os remédios de pressão sistêmica não servem para a HAP porque baixam a pressão do corpo inteiro, o que seria perigoso”, reforça o professor.

Apesar dos riscos envolvidos, os pesquisadores decidiram testar o sotatercept justamente em pacientes que já usavam todos os tratamentos possíveis e ainda assim se mantinham em condição crítica. A eficácia observada foi tamanha que a análise interina — feita no meio do estudo para avaliar segurança — acabou antecipando o fim da pesquisa. “Não seria mais ético manter pacientes graves em placebo, principalmente sabendo que o medicamento já estava disponível em outros países”, explica Souza. A partir de então, todos os participantes passaram a receber o fármaco.

A hipertensão pulmonar é definida como aumento da pressão média da artéria pulmonar acima de 25 mmHg em repouso ou > 30 mmHg durante o exercício. Os vasos dos pulmões tendem a trabalhar com pressões mais baixas — cerca de 20/10 mmHg – Foto: Freepik

Medicamento biológico

O sotatercept pertence à classe dos medicamentos biológicos, ou seja, produzidos a partir de substâncias derivadas de organismos vivos. Ele age equilibrando as vias de sinalização que controlam o crescimento celular nas paredes dos vasos sanguíneos pulmonares. “Ele [sotatercept] não é uma molécula sintética que vai se ligar em alguma parte do nosso corpo. Ele interage como parte nossa, então tem um comportamento biológico, mas com metade sintética.” Segundo Souza, essa estrutura híbrida permite que o remédio tenha maior especificidade de ação.

Como medicamento em teste, o sotatercept apresentou efeitos colaterais, os mais comuns sendo aumento da hemoglobina, leve elevação da pressão sistêmica e sangramentos nasais (epistaxis). Casos de telangiectasias (pequenos vasos visíveis na pele) também foram observados, evidenciando o impacto vascular da droga.

No Brasil, o sotatercept já foi registrado pela Anvisa, mas ainda depende de etapas adicionais para ser incorporado ao SUS. “Quanto mais falarmos sobre doenças como a HAP, maior a chance de que os gestores de saúde compreendam sua gravidade e priorizem políticas públicas adequadas. Nosso papel, como universidade, é justamente trazer luz a essas condições que, embora raras, não podem ser negligenciadas”, afirma.

O artigo Sotatercept in Patients with Pulmonary Arterial Hypertension at High Risk for Death pode ser acessado neste link.

Mais informações: rogerio.souza@hc.fm.usp.br, com Rogério Souza.

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FOTO: Jornal da USP

Pitaya fermentada com probióticos ativa gene que previne inflamações no intestino

Estudo em células abre possibilidades para o uso de alimentos fermentados na regulação da saúde celular por caminhos até então não descritos

A polpa da pitaya vermelha fermentada com as cepas probióticas Lacticaseibacillus paracasei subsp. paracasei F-19 e Bifidobacterium animalis subsp. lactis BB-12 aumentou duas vezes a expressão do gene responsável pela regulação do processo celular conhecido como autofagia – Foto: Frederico Banana/Wikimedia

Conhecida por seus benefícios à saúde, a pitaya vermelha tem despertado o interesse da comunidade científica pelo seu potencial terapêutico. Rica em compostos antioxidantes, como a betacianina e a rutina, que possuem propriedades anti-inflamatórias, a fruta vem sendo estudada por seu possível uso coadjuvante no tratamento de doenças inflamatórias do intestino. Uma pesquisa da USP identificou que a polpa da pitaya vermelha fermentada com probióticos é capaz de ativar o gene ATG16L1, responsável pela regulação da autofagia – processo biológico de “limpeza” celular que remove componentes danificados e ajuda a prevenir inflamações, especialmente no intestino.

A pesquisa foi realizada na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP em parceria com o Food Research Center (FoRC) e utilizou as cepas probióticas Lacticaseibacillus paracasei F-19 e Bifidobacterium animalis BB-12. O resultado foi um aumento de duas vezes na expressão do gene ATG16L1 em células de câncer do cólon cultivadas em laboratório.

De acordo com a autora do estudo, Juliana Yumi Suzuki, essa ativação da autofagia é essencial não só para manter a saúde celular, mas também para ajudar na prevenção de doenças inflamatórias intestinais, como a retrocolite ulcerativa e a doença de Crohn. “Além disso, o processo retarda o envelhecimento celular”, afirma.

Mecanismo alternativo de ativação do gene independe da vitamina D

Um dos achados mais importantes da pesquisa foi a constatação de que a ativação do gene ATG16L1, responsável pela autofagia, ocorreu sem necessidade da participação do receptor de vitamina D, o VDR, que é uma proteína geralmente envolvida nesse tipo de regulação. Juliana explica que, até então, acreditava-se que o VDR fosse essencial para a ativação desse gene, mas os experimentos revelaram um novo mecanismo de ação dos alimentos fermentados.

Segundo o estudo, embora seja mais conhecido por sua atuação na saúde dos ossos, o receptor da vitamina D (VDR) também desempenha papéis importantes no organismo, como regular o sistema imunológico, controlar a multiplicação das células, manter a integridade da barreira do intestino e ajudar a equilibrar a microbiota intestinal. Juliana diz que “o receptor VDR, presente em quase todas as células do organismo — especialmente no intestino delgado e no cólon —, atua como um receptor nuclear e funciona como um ‘interruptor genético’ que regula a expressão de genes quando ativado por alguns tipos de moléculas”. “Por estar amplamente distribuído no organismo, o VDR desempenha diversas funções biológicas, muitas ainda não totalmente compreendidas. Entre seus papéis conhecidos, está a regulação de genes ligados à autofagia, o processo de limpeza celular que remove componentes danificados e ajuda a controlar inflamações”, diz.

“Essa descoberta é relevante, pois abre possibilidades para o uso de alimentos fermentados na regulação da saúde celular por caminhos até então não descritos”, destaca a pesquisadora, que defendeu tese na FCF sob orientação da professora Susana Marta Isay Saad. Os resultados foram publicados na revista científica Food Bioscience.

A escolha de células de câncer colorretal humano nos experimentos foi estratégica, relata a professora Susana, orientadora do estudo. Ela diz que a linhagem HCT-116, embora derivada de tumor de cólon, é amplamente utilizada em pesquisas sobre saúde intestinal, inclusive em estudos que não têm relação direta com o câncer. “As células HCT-116 são um modelo importante porque expressam naturalmente o receptor de vitamina D (VDR), que é o foco principal da investigação”, afirma. Por serem originadas do cólon humano, essas células permitem avaliar como o intestino responde a processos inflamatórios e ajudam a compreender as vias de sinalização envolvidas nesses mecanismos.

Propriedades anti-inflamatórias

De acordo a pesquisa, a pitaya vermelha se destaca por ser rica em betacianinas — pigmentos naturais que dão à fruta sua coloração rosa-avermelhada intensa — e em rutina, um tipo de flavonoide. Estudos anteriores já haviam mostrado que o extrato da fruta reduz lesões no cólon e diminui marcadores inflamatórios em modelos experimentais. Além disso, os probióticos usados no estudo são conhecidos por melhorar a composição da microbiota intestinal e fortalecer o sistema imunológico.

Outro trabalho demonstrou que algumas cepas probióticas também estimulam a expressão do VDR. No entanto, no caso da pitaya fermentada com  F-19 e BB12 a ativação do VDR não ocorreu. Uma das hipóteses, segundo Juliana, é que a rutina presente na fruta não foi convertida em quercetina, composto que normalmente ativa o VDR.

“Outra possibilidade é que a própria fermentação tenha gerado substâncias capazes de inibir ou bloquear esse receptor”, diz, completando que “ainda não se compreende totalmente como esses microrganismos modulam a sinalização do VDR e contribuem para a redução de processos inflamatórios, tema que segue em estudo”.

Entre os resultados, Juliana diz que a descoberta científica mais relevante foi a constatação de que a polpa de pitaya fermentada tanto com os probióticos F-19 quanto BB-12 aumentou a ativação do gene ATG16L1, independentemente do receptor de vitamina D (VDR).

“O resultado revela um mecanismo alternativo e inédito de controle da autofagia, o que abre novas possibilidades para o uso de alimentos fermentados na promoção da saúde celular”, relata a pesquisadora.

Aroma floral de rosas

Além dos efeitos da polpa fermentada, a pesquisadora também analisou os compostos químicos da fruta antes e depois da fermentação. Em comparação com a polpa in natura, as versões fermentadas apresentaram níveis mais elevados de betacianina — pigmento com propriedades antioxidantes — e maior estabilidade desse composto por até 28 dias de armazenamento, o que contribui para a conservação e valor nutricional do produto. Adicionalmente, a fermentação com a cepa F-19 também gerou alterações bioquímicas na formulação, formando o 2-feniletanol, um composto orgânico com propriedades antifúngicas, antimicrobianas e aroma floral suave, semelhante ao de rosas. Segundo a pesquisadora, esse composto pode ser empregado amplamente em indústrias cosméticas, farmacêuticas e alimentícias.

Ainda sobre a aplicabilidade da pesquisa, a professora Susana destaca que os resultados são promissores e podem, no futuro, impulsionar o desenvolvimento de alimentos ou produtos funcionais com alto valor nutritivo, capazes de oferecer os mesmos benefícios observados nos testes laboratoriais. Segundo ela, o estudo também considerou o uso de probióticos em diferentes matrizes alimentares, incluindo opções de origem vegetal. Com isso, ampliam-se as possibilidades de consumo para públicos como veganos, flexitarianos (alimentação predominantemente vegetariana) e pessoas com alergia à proteína do leite.

O artigo Gene expression analysis and metabolomics of red pitaya fermented with probiotic strains: Implications for vitamin D receptor and inflammatory pathways foi publicado na Food Bioscience em junho de 2025.

Mais informações: suzuki.jyumi@gmail.com, com Juliana Yumi Suzuki,  e susaad@usp.br, com Susana Saad

*Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Cranberry em leite fermentado mostra potencial contra infecção urinária

Nova formulação combina os benefícios dos probióticos com os compostos bioativos do cranberry

Pesquisadores da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) e da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), ambas da USP, desenvolveram um leite fermentado probiótico enriquecido com suco de cranberry com potencial para prevenir infecções do trato urinário. A formulação combina os benefícios de bactérias probióticas, presentes no leite fermentado, com os compostos bioativos da cranberry, fruta pesquisada por sua ação na prevenção de infecções urinárias — condição que afeta cerca de 150 milhões de pessoas anualmente no mundo.

Testes laboratoriais indicaram a presença significativa de proantocianidinas, especialmente do tipo A – substância associada à redução da aderência de bactérias como Escherichia coli (E. coli) à parede do trato urinário – e cepas de Lactobacillus acidophilus, conhecidas por contribuir para o equilíbrio da flora intestinal. Em testes de aceitação, a formulação com 5% de suco de cranberry foi a mais bem avaliada pelos consumidores em sabor e intenção de compra.

De acordo com a autora da pesquisa, Karina de Fátima Bimbatti, o tratamento padrão da doença, em casos agudos, envolve antibióticos. No entanto, ela explica que o uso excessivo ou inadequado desses medicamentos tem contribuído para o aumento da resistência bacteriana, o que tem levado cientistas a buscarem alternativas naturais para prevenir reincidência da doença. “A infecção urinária é provocada pela presença de bactérias na urina que atingem a bexiga e outras estruturas do trato urinário. Agravado o quadro, evolui para pielonefrite (infecção renal). O problema é considerado recorrente quando o paciente apresenta mais de dois episódios em seis meses ou mais de três ao longo de um ano”, diz.Em uma revisão sistemática, na qual foram reunidos resultados de outras pesquisas publicadas, Karina encontrou vários achados demonstrando que o extrato de cranberry tinha ação antimicrobiana, não apenas contra a Escherichia coli — principal causadora da infecção urinária —, mas também contra outras bactérias, como Staphylococcus aureusKlebsiella pneumoniaeSerratia marcescens e Enterococcus faecalis, reforçando o potencial da cranberry na prevenção da doença.

O assunto foi descrito em artigo publicado na revista internacional Food Research International e faz parte da pesquisa de mestrado Desenvolvimento de um leite fermentado probiótico com cranberry com potencial para reduzir infecções no trato urinário, realizada na EERP em conjunto com a FZEA e finalizada em agosto de 2024.

Em um primeiro momento, Karina fez uma pesquisa de mercado on-line com 687 participantes para avaliar a frequência de infecções urinárias, a recorrência dos casos e o interesse do público por produtos funcionais voltados à prevenção. Dos respondentes, 79,9% eram mulheres e metade declarou já ter tido infecção urinária em algum momento da vida; 10,8% relataram sofrer com episódios recorrentes. Os dados confirmaram a maior prevalência da doença entre o público feminino. O levantamento também apontou uma boa receptividade a alternativas naturais: 45,7% dos participantes disseram estar dispostos a pagar R$ 5 ou mais por um produto com propriedades funcionais que auxilie na prevenção do problema.

Análises de compostos bioativos

Antes de ser incorporado ao leite fermentado, o suco concentrado de cranberry foi analisado isoladamente para avaliação de suas propriedades e compostos bioativos. Os resultados indicaram que a cada 100 gramas do produto havia a presença de 117 miligramas de proantocianidinas totais e 16 miligramas do tipo A.

Em seguida, foram desenvolvidas três amostras de leite fermentado: uma sem suco de cranberry (C) e duas com 5% (C1) e 10% (C2) de suco, que foram analisadas durante 28 dias de armazenamento em geladeira, com medições periódicas nos dias 1, 7, 14, 21 e 28 para analisar fatores como acidez, pH, sinérese (liberação de soro), capacidade de retenção de água, umidade, cor e teor de proantocianidinas. Ao final desse período, 116 consumidores participaram de testes para avaliar atributos sensoriais, como sabor, aroma, acidez, viscosidade e cor, além da intenção de compra do produto.

Resultados

Foram avaliadas duas formulações da bebida, uma com 5% e outra com 10% do suco e se constatou que ambas apresentaram bons níveis de proantocianidinas — compostos antioxidantes — e crescimento satisfatório do probiótico Lactobacillus acidophilus. As duas versões também tiveram boa aceitação sensorial entre os consumidores, embora a bebida com 5% de suco fosse considerada a mais promissora para futura comercialização porque ela  apresentou o melhor equilíbrio entre benefícios funcionais, estabilidade do produto e sabor. “Já esperávamos que a versão com 5% fosse mais bem-aceita por ser mais adocicada. Como se trata de um alimento pensado para o consumo diário, o sabor é um fator essencial”, diz Karina.

Quanto ao armazenamento da bebida, logo no primeiro dia de armazenamento foi observada uma queda na viabilidade dos Lactobacillus acidophilus: a formulação sem suco tinha 9,74 log UFC/mL, enquanto as versões com 5% e 10% apresentaram 9,34 e 8,95 log UFC/mL, respectivamente. Após 28 dias, a redução foi mais acentuada na amostra com 10% de cranberry, que caiu para 5,04 log UFC/mL — abaixo do valor mínimo recomendado para produtos probióticos. A versão com 5% manteve melhor estabilidade, com 7,11 log UFC/mL.

Karina explica que, para que um alimento seja considerado probiótico, é necessário que contenha pelo menos 6 log UFC/mL (unidades formadoras de colônia de microrganismos vivos) no momento do consumo, quantidade mínima para que os microrganismos cheguem vivos ao intestino e exerçam seus efeitos benéficos à saúde. De acordo com a pesquisadora, o aumento da concentração de cranberry elevou o teor de proantocianidinas, especialmente as do tipo A, associadas à prevenção de infecções urinárias. No entanto, o pH da bebida caiu com o aumento do suco, comprometendo a viabilidade dos probióticos durante o armazenamento e reduzindo a aceitação sensorial, devido ao sabor mais ácido.

Segundo uma das orientadoras da pesquisa, a professora Carmem Sílvia Favaro Trindade, da FZEA, onde foram feitos todos os testes laboratoriais, o desenvolvimento dessa formulação é inovador, pois representa um avanço na área de saúde preventiva e de alimentos funcionais. Ela destaca que o leite fermentado foi desenvolvido considerando o possível efeito sinérgico de um microrganismo probiótico – com potencial para restaurar o equilíbrio da microbiota urogenital – com o do suco concentrado de cranberry com seus compostos bioativos.Apesar dos resultados promissores em laboratório, a professora Carmem ressalta que a eficácia do produto ainda precisa ser comprovada por meio de ensaios clínicos. Além disso, ela aponta que a viabilidade comercial depende do interesse da indústria em levá-lo para o mercado e torná-lo acessível aos consumidores. A orientadora da pesquisa pela EERP foi a professora Fabiana Faleiros Castro.

Infecção urinária

A Infecção do Trato Urinário é considerada um problema de saúde pública global, com cerca de 150 milhões de novos casos registrados anualmente. Na atenção primária, responde por até 20% das infecções tratadas, enquanto no ambiente hospitalar pode representar até 40% dos casos. Pessoas idosas, imunocomprometidas e sexualmente ativas estão entre os grupos mais vulneráveis à doença, que atinge especialmente as mulheres — devido à menor extensão da uretra feminina, que facilita a entrada de bactérias. A infecção é provocada pela presença de microrganismos na urina, que desencadeiam uma resposta inflamatória no revestimento interno do trato urinário. A bactéria Escherichia coli é apontada como a principal responsável, sendo identificada em até 85% dos casos. A condição de saúde pode se tornar recorrente quando o paciente apresenta mais de dois episódios em um intervalo de seis meses ou mais de três ao longo de um ano.

O artigo Development and evaluation of fermented milk with Lactobacillus acidophilus added to concentrated cranberry (Vaccinium macrocarpon) juice with the potential to minimize the recurrence of urinary tract infections está disponível neste link e a dissertação intitulada Desenvolvimento de um leite fermentado probiótico com cranberry com potencial para reduzir infecções no trato urinário pode ser lida aqui.

Mais informações: Karina de Fátima Bimbatti (autora da pesquisa), ka.bimbatti@gmail.com; Fabiana Faleiros Castro, fabifaleiros@eerp.usp.br; e Carmem Sílvia Favaro Trindade, carmenft@usp.br