Estudo da USP aponta alternativas inovadoras contra leucemias agressivas

As leucemias agudas, doenças agressivas do sangue que ainda apresentam altos índices de resistência e recaída, ganharam novas perspectivas de tratamento a partir de uma pesquisa desenvolvida no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. O trabalho de doutorado do biomédico Hugo Passos Vicari investigou diferentes abordagens — de compostos sintéticos inéditos ao reposicionamento de medicamentos já aprovados para outros tipos de câncer — tendo como alvo os microtúbulos, estruturas essenciais para a divisão celular. Os resultados podem indicar caminhos promissores para pacientes que não respondem às terapias convencionais.

Os microtúbulos foram escolhidos como foco do estudo por funcionarem como uma espécie de “esqueleto” da célula. “Eles permitem que a célula se mova e se divida. A ideia é interromper esse processo. Ao atacar essa estrutura, conseguimos bloquear a proliferação e induzir a morte celular”, explica Vicari. Para alcançar esse objetivo, a pesquisa seguiu três linhas complementares: analisar proteínas associadas aos microtúbulos como potenciais alvos terapêuticos, testar o reposicionamento de fármacos e desenvolver novas moléculas de ação inédita contra a leucemia.

Na primeira abordagem, o grupo avaliou a proteína Stathmin 1 (STMN1) – reguladora da dinâmica dos microtúbulos – em amostras de medula óssea de pacientes com leucemia promielocítica aguda, um dos subtipos da Leucemia Mieloide Aguda. A STMN1 mostrou-se altamente expressa em células leucêmicas e associada à proliferação celular. Quando silenciada, reduziu a capacidade das células de formar colônias, sugerindo que pode atuar como biomarcador e alvo terapêutico.

“Atacar a Stathmin 1 é promissor porque essa proteína está presente principalmente em células tumorais, o que abre perspectivas de maior seletividade”, ressalta João Agostinho Machado Neto, orientador da pesquisa e professor do Departamento de Farmacologia do ICB.

Outra vertente investigou o uso de medicamentos já existentes. O Paclitaxel, quimioterápico empregado contra tumores sólidos, demonstrou eficácia em células de leucemia promielocítica aguda resistentes ao tratamento padrão com ácido All-Trans Retinoico (Atra). O achado indica que o fármaco pode oferecer alternativas para pacientes que não respondem às terapias atuais.

A pesquisa também avaliou a Eribulina, aprovada para o tratamento do câncer de mama, mas inédita em estudos sobre leucemias. Em um painel abrangente de linhagens de leucemia mieloide aguda e leucemia linfoblástica aguda, o fármaco apresentou alta toxicidade contra células leucêmicas e baixa toxicidade em células normais, sugerindo boa margem de segurança. Além disso, foram identificados biomarcadores de resposta — como MDR1, PI3K/AKT e NF-κB — que podem auxiliar na seleção de pacientes em futuros ensaios clínicos.

A Eribulina causa anormalidades mitóticas que induzem a apoptose em células sanguíneas malignas. A resistência à eribulina está associada a marcadores específicos, como NF-kB, p-AKT e glicoproteína-P. O Elacridar, um inibidor da glicoproteína-P, potencializa os efeitos antineoplásicos da eribulina, sugerindo que o tratamento combinado pode superar a resistência à eribulina – Imagem: Hugo Vicari/extraída do artigo

Molécula inédita

Outro resultado relevante foi a combinação da Eribulina com o Elacridar – inibidor do transporte de substâncias utilizado para aumentar a disponibilidade e concentração intracelular de medicamentos contra o câncer. A combinação potencializou os efeitos e superou mecanismos de resistência, um dos maiores obstáculos no tratamento das leucemias. “O fato de a Eribulina já ser aprovada em humanos é muito relevante. Sua segurança e dosagem já são conhecidas, o que pode acelerar ensaios clínicos em leucemias agudas”, destaca Machado Neto.

A etapa mais inovadora surgiu em colaboração com o Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O grupo sintetizou o composto C2E1, da classe dos ciclopenta[β]indóis, nunca antes testado em modelos de leucemia. Os resultados foram considerados surpreendentes: o C2E1 apresentou elevada citotoxicidade contra células de leucemia aguda (mieloide e linfoide), induzindo apoptose, bloqueio do ciclo celular e redução da formação de colônias, além de baixa toxicidade para células normais.

Outro diferencial é que o composto parece não apresentar resistência cruzada com outros medicamentos que atuam sobre microtúbulos, o que amplia suas possibilidades de uso em pacientes refratários às terapias disponíveis. “Esse composto pode representar uma alternativa terapêutica promissora, já que conseguiu eliminar células malignas preservando as saudáveis — característica essencial no desenvolvimento de quimioterápicos”, conclui Vicari.

Além de revelar novos caminhos terapêuticos, a pesquisa recebeu destaque nacional ao ser agraciada com o Prêmio Capes de Tese 2025, na área de Farmacologia. Para Vicari, a premiação representa “um reconhecimento importante não só do esforço individual, mas também do trabalho coletivo desenvolvido no laboratório”. Machado Neto acrescenta que a conquista “reflete a qualidade e dedicação da equipe, e motiva a continuar avançando no desenvolvimento de novas estratégias contra as leucemias”.

A tese Investigação do potencial antineoplásico de novos fármacos que modulam a dinâmica de microtúbulos em leucemias agudas está disponível no Banco de Teses da USP e pode ser lida neste link.

* Da Assessoria de Comunicação do ICB-USP. Adaptado para o Jornal da USP

FONTE: Jornal da USP

Adoçantes artificiais são associados ao declínio cognitivo acelerado

Entre os mais de 12 mil participantes do estudo, acompanhados por oito anos, quem relatou consumir as maiores quantidades de adoçantes teve uma taxa 62% maior de declínio cognitivo global

Estudo feito no Brasil sugere que o consumo regular de adoçantes artificiais de baixa ou nenhuma caloria pode acelerar o declínio cognitivo, afetando a memória e a fluência verbal ao longo do tempo. A pesquisa, conduzida por cientistas da USP e publicada na revista científica Neurology, acompanhou mais de 12 mil pessoas por oito anos, trazendo alguns dos resultados mais abrangentes até agora sobre os possíveis efeitos em longo prazo desses substitutos do açúcar na saúde do cérebro.

O estudo encontrou uma associação significativa entre maior consumo dos adoçantes aspartame, sacarina, acessulfame-K, eritritol, sorbitol e xilitol a um declínio mais rápido na cognição global, prejudicando particularmente os domínios da memória e da fluência verbal. Os participantes que consumiram as maiores quantidades de adoçantes em geral apresentaram uma taxa 62% maior de declínio cognitivo global em comparação àqueles com consumo mais baixo. Quando divididos por tipo de adoçante, somente a tagatose, entre os que foram avaliados, não apresentou nenhuma ligação com o declínio cognitivo na análise geral.

“O consumo de adoçantes está associado a um declínio mais rápido do que aquele que já é esperado pelo passar do tempo”, explica ao Jornal da USP Claudia Suemoto, autora da pesquisa, referindo-se à perda sutil e progressiva da cognição que ocorre naturalmente com o envelhecimento, mas que parece ser acelerada pelos adoçantes.

Uma restrição da pesquisa é que ela não incluiu a sucralose, adoçante bastante usado atualmente, mas que não estava entre os mais consumidos no Brasil nos anos do estudo, que começou em 2008. Apesar disso, outros estudos também já levantaram problemas semelhantes sobre a sucralose.

Também é apresentado pelos pesquisadores como uma limitação o fato de os dados da dieta serem autorrelatados, o que, mesmo com uso de questionários validados por especialistas, pode trazer distorção. Eles mencionam ainda a impossibilidade de descartar todos os fatores de confusão residuais, como hábitos simultâneos que afetam a saúde ou mudanças na dieta ao longo do tempo.

Mesmo assim, com seu grande número de participantes e qualidade das avaliações, o estudo representa um avanço significativo na compreensão dos possíveis efeitos em longo prazo dos adoçantes artificiais na função cognitiva.

E fortalece o alerta por mais investigações: sabemos que o consumo de açúcar em excesso está bastante relacionado a uma piora na saúde cognitiva, mas não está claro se os adoçantes artificiais são uma alternativa adequada. “Já tínhamos evidências sugerindo que eles poderiam ser prejudiciais, [estando] relacionados às doenças cardiovasculares e câncer, e agora temos mais uma relacionada à cognição. Acho que essa é a mensagem”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP.

Uma pergunta antiga

Coordenadora do Laboratório de Envelhecimento na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), Claudia Suemoto conta que uma das motivações da pesquisa foi pessoal. “Eu consumia muito adoçante, gosto de refrigerante zero, e adoçava meu café com adoçante. Sempre tive essa dúvida sobre a relação entre adoçantes e o declínio cognitivo, e essa hipótese me chamou mais atenção na época em que a gente fez o trabalho sobre ultraprocessados, do qual este é uma continuidade”. Ao levantar a literatura científica a respeito, os pesquisadores encontraram, além dos estudos em modelo animal, trabalhos com poucos participantes, e quiseram fazer uma análise com resultados mais significativos.

Nesta pesquisa foram usados dados do Elsa Brasil (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto). O estudo longitudinal é um tipo de pesquisa que acompanha os mesmos indivíduos ao longo do tempo, avaliados periodicamente, para verificar mudanças em variáveis específicas. “Além de uma grande quantidade de participantes, o Elsa Brasil tem um questionário de dieta excelente e nos permite pesquisar quase tudo, buscando entender se um efeito é importante ou não”, diz a neurocientista ao Jornal da USP.

A estratégia escolhida foi dividir os participantes – todos com mais de 35 anos – em três grupos, dos que tinham consumo mais intenso de adoçantes artificiais até os que consumiam muito pouco ou não consumiam. Após um acompanhamento de oito anos, os participantes nos dois grupos de mais alto consumo apresentaram taxas 35% e 62% maiores de declínio cognitivo global; e 110% e 173% maiores de declínio da fluência verbal, respectivamente. Os maiores consumidores também tiveram uma taxa de declínio de memória 32% mais alta que os demais.

Como explicar os resultados?

Possíveis mecanismos para a associação observada podem ser neurotoxicidade e neuroinflamação provocadas por metabólitos (produtos resultantes da degradação) dos adoçantes artificiais. Ainda que estudos em modelo animal não gerem respostas conclusivas para seres humanos, eles trazem alguns indícios e apontam em que caminho continuar pesquisando.

Neste caso, estudos anteriores em roedores mostraram que o aspartame, por exemplo, pode ser metabolizado em compostos neurotóxicos, levando à neuroinflamação (mediada pela micróglia, tipo de célula nervosa que atua na imunidade) e ao declínio cognitivo.

Alguns estudos em animais também apontam para o potencial dos adoçantes de alterar a microbiota intestinal, o que pode impactar a tolerância à glicose e afetar a integridade da barreira hematoencefálica, uma estrutura que envolve e protege o sistema nervoso central de agressores, sejam moléculas ou microrganismos.

“Nossas descobertas sugerem a possibilidade de danos a longo prazo do consumo de adoçantes, particularmente adoçantes artificiais e álcoois de açúcar, para a função cognitiva”, escrevem os pesquisadores.

Para mudanças nas recomendações por parte de órgãos e associações de saúde, porém, Claudia Suemoto acredita que mais pesquisas são necessárias, principalmente ensaios clínicos – em que os participantes são avaliados em condições mais bem controladas. Ela pede cautela também com a interpretação dos números, assim como os de qualquer pesquisa: “Qualquer risco relativo, quando eu divido um coeficiente por outro, vai resultar nesses números grandes”, pondera ao Jornal da USP.

Mesmo assim, considerando que outros estudos como esse encontraram resultados semelhantes, além do fato de os adoçantes artificiais serem ingredientes de alimentos ultraprocessados – já associados a problemas cognitivos em outras pesquisas –, ela opina que seu uso regular deve ser repensado.

Apesar de não ser considerado neste estudo, o consumo de sucralose já foi associado em outras pesquisas à diminuição do desempenho da memória e da função executiva, também possivelmente ligada a alterações do microbioma, neuroinflamação e neurotoxicidade dos metabólitos do adoçante.

Quanto à tagatose, que não apresentou associação com o declínio cognitivo no estudo, vale o mesmo raciocínio: ainda não dá para afirmar que “tudo bem, pode consumir à vontade”.

“É uma evidência que precisa ser corroborada por outras antes de mudarmos as políticas públicas, como aparecer alguma informação na embalagem, por exemplo”, diz Claudia Suemoto.

Aditivos cosméticos

Renata Levy também desaconselha o uso de adoçantes. A professora da FMUSP não participou deste estudo, mas tem larga produção científica em epidemiologia nutricional, em particular no tema ultraprocessados, e comentou os resultados a pedido do Jornal da USP. “Não apenas eu [desaconselho], mas também a Organização Mundial da Saúde, que em 2023 publicou a diretriz WHO Guideline on the use of non-sugar sweeteners. No documento, a OMS não recomenda o uso de adoçantes sem açúcar para controle de peso corporal ou redução do risco de doenças crônicas, como diabetes tipo 2 e as cardiovasculares, em adultos e crianças. A única exceção é para pessoas com diabetes, nas quais o uso pode ter indicação específica.”

Ela lembra que, segundo a classificação Nova, alimentos que contêm aditivos cosméticos são considerados ultraprocessados. “Esses aditivos são incluídos nos alimentos não para conservação, mas para modificar atributos sensoriais do produto. Os adoçantes se enquadram nesse grupo. Esses compostos contribuem para tornar os alimentos hiperestimulantes e podem interferir nos mecanismos naturais de saciedade e regulação do apetite. Muitos deles são classificados como xenobióticos, ou seja, substâncias estranhas ao metabolismo humano”, detalha.

Mesmo os chamados “naturais” recebem a classificação de ultraprocessados. “Ainda que alguns adoçantes tenham origem natural, como a estévia, eles são isolados e concentrados por meio de processamento industrial e adicionados a produtos nos quais não estariam presentes naturalmente.”

Para a professora, o estudo atual é extremamente relevante para a saúde pública e usa uma metodologia confiável. “O estudo de seguimento é dos delineamentos mais adequados para investigar esse tipo de associação.” Ela comenta ainda que uma das maiores dificuldades para estudar o efeito nocivo dos edulcorantes é quantificá-los com precisão nos alimentos. “Essa informação não está disponível nas tabelas de composição de alimentos nem nos rótulos. E a quantidade varia entre produtos e até entre marcas de um mesmo produto”, pontua, ao explicar que essa informação é crucial para que se possa gerar evidências mais robustas. “Isso reforça a necessidade de maior transparência na rotulagem e de bases de dados mais completas”, defende.

Domínios da cognição

Neste estudo, o desempenho nos vários aspectos foi avaliado individualmente, para depois se calcular uma pontuação de cognição global, que é o índice considerado de maior importância. “A cognição é formada por diversos domínios, e quando você tem um problema em vários, o impacto é maior”, explica Claudia Suemoto.

Os testes cognitivos estimaram capacidades como memória episódica (de recordar eventos e experiências específicas, incluindo detalhes como o que, onde e quando); fluência verbal (de gerar palavras dentro de uma categoria ou que começam com uma letra específica); e função executiva (de direcionar comportamentos a objetivos, envolvendo flexibilidade mental e velocidade de processamento para tomada de decisões).

Isolando as variáveis

Todo estudo observacional como este, que busca isolar o consumo de algum item e associá-lo a um desfecho como declínio cognitivo, que tem diversos determinantes, esbarra em confundidores que o tratamento estatístico dos dados procura mitigar.

Claudia Suemoto simplifica com um exemplo. “Digamos que eu queira saber se álcool contribui para o desenvolvimento do câncer de pulmão. Se eu não fizer um controle para o fator tabagismo, vou achar uma relação errada. Porque, normalmente, entre quem consome mais álcool também estão os que fumam bastante. E o tabagismo é um fator de risco conhecido para câncer de pulmão.”

Nesta pesquisa, em relação ao consumo de adoçantes, foram consideradas variáveis sociodemográficas (idade, sexo, renda, raça e educação), de estilo de vida (atividade física, tabagismo, consumo de álcool e padrão de dieta) e clínicas (índice de massa corporal, diabetes, hipertensão, doença cardiovascular e depressão).

Dietas saudáveis (por exemplo, a dieta mediterrânea, a Dash – focada em reduzir a hipertensão – ou a Mind, que é uma combinação das duas primeiras) aparecem como fator de proteção para o declínio cognitivo e demência, enquanto obesidade e diabetes são fatores de risco. Mas o diabetes é sem dúvida o maior confundidor. “Quem tem diabetes já tem indicação de tomar adoçante. Ao mesmo tempo, o diabetes é um fator de risco conhecido para declínio cognitivo”, observa a professora ao Jornal da USP, enfatizando a complexidade da relação.

Feitos os ajustes, a obesidade e o padrão da dieta não modificaram a associação entre o consumo de adoçantes e o declínio cognitivo, mas o diabetes sim: em indivíduos sem diabetes, o maior consumo de adoçantes foi ligado a um declínio mais rápido na fluência verbal e na cognição global. Já para os participantes com diabetes, a ingestão de adoçantes mais alta foi associada a um declínio mais rápido, tanto na memória quanto na cognição global.

Em nota, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (ABIAD) – instituição que representa a indústria de adoçantes no Brasil – informou que acompanha com atenção a publicação do estudo divulgado na revista Neurology.

O comunicado e a resposta da pesquisadora podem ser lidos na íntegra clicando aqui.

O artigo Association Between Consumption of Low- and No-Calorie Artificial Sweeteners and Cognitive Decline pode ser acessado neste link.

Mais informações: cksuemoto@usp.br, com Claudia Suemoto

*Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Olhar para a saúde mental pode tornar tratamento de dor crônica mais efetivo

Pesquisadores definem sugestões de manejo clínico para melhorar a condução dos casos de dor crônica não oncológica

O tratamento de dor crônica não oncológica (DCNO) explora pouco, ou não explora, fatores além dos orgânicos, como a saúde mental e a relação médico-paciente, antes de indicar intervenções invasivas. É o que sugerem pesquisadores da USP, Centro Universitário São Camilo e Hospital do Exército, que definiram uma lista de dez recomendações para a condução de casos de dor crônica refratária – aquela que não responde aos tratamentos.

João Solano, psiquiatra e primeiro autor do trabalho, atuou na Equipe de Controle da Dor na Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, onde teve contato próximo com pacientes com a condição. A esquipe busca, através de uma proposta multidisciplinar, evitar a cronificação da dor. O artigo, recém-publicado na revista O Mundo da Saúde, resume a sua experiência e dos demais autores no trabalho assistencial.

“Observamos que muitos dos pacientes tinham determinantes não físicos da dor e que se esses fatores não fossem abordados, eles poderiam vir a não melhorar nunca, mesmo que medidas invasivas modernas e mais caras fossem implementadas” – João Solano

O trabalho destaca que, para a Associação Internacional de Estudos da Dor (Iasp), “dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada a dano real ou potencial ao tecido”. A ideia de ser “semelhante àquela associada a dano potencial” abre espaço para contemplar o medo do paciente que antecede os potenciais riscos que podem vir a se tornar uma dor.

“Na maioria das vezes o que o paciente mais teme não é o dano real, mas aquilo que ele imagina que seja perigoso ao seu próprio corpo. A fantasia de ele vier a sofrer algo insuportável”, explica Solano.

Para ser considerada uma dor crônica não oncológica, a dor deve durar mais do que três meses e não estar relacionada a processos de câncer. O psiquiatra aponta que, em geral, a dor oncológica persiste por menos tempo, enquanto a não oncológica costuma afetar a qualidade de vida dos pacientes por anos.

Os profissionais notaram que os quadros de dor crônica podem ter sua  origem em fatores não orgânicos, ligados com a vida psíquica ou a vida psicossocial do paciente. A suspeita dos pesquisadores é que, caso essas outras vertentes da dor não sejam exploradas, o risco de cronificação seja ainda maior. Segundo eles, é frequente que fatores psicológicos ou psiquiátricos contribuam para a piora dos casos.

Condução do tratamento

As sugestões do estudo incluem: ouvir a história completa do caso; revisar os medicamentos utilizados; identificar e delimitar os possíveis benefícios da relação médico e paciente; manter boa comunicação entre a equipe; avaliar os sentimentos dos profissionais e indicar o paciente para avaliação psicológica e psiquiátrica.

Para Solano, a medicina atual, altamente auxiliada pela tecnologia, busca por origens exclusivamente orgânicas e constatáveis da dor, que sejam modificáveis ou potencialmente modificáveis por intervenções corporais.

O psiquiatra aponta que espera-se uma efetividade dos procedimentos invasivos maior do que o que se tem observado com os resultados. “Temos visto que, muitas vezes, esses procedimentos [invasivos] têm uma efetividade bem aquém do esperado. Muitos pacientes têm suas dores cronificadas a despeito da aplicação dessas medidas”, explica.

Para o artigo foi feita uma busca sistemática que avaliou se a saúde mental e a relação médico-paciente estão sendo abordadas no cenário de tratamentos dos pacientes diagnosticados com DCNO. O resultado foi de acordo com o que era esperado e revelou que estes temas têm sido pouco debatidos. Para as avaliações foram considerados 14 artigos das bases de dados Medline, PubMed, Lilacs e Cochrane Library.

Solano aponta que pacientes com casos complexos eram encaminhados para uma avaliação psiquiátrica com ele. Foi durante esse processo que o médico percebeu que eles não tinham passado por anamneses completas.

A anamnese é uma entrevista clínica realizada pelo profissional da área da saúde com o seu paciente. Para os pesquisadores, entender as possíveis raízes emocionais de um problema é fundamental para escolher a melhor forma de condução do caso.

As entrevistas podem ser classificadas como subjetivas, quando feitas diretamente com o paciente, ou objetivas, feitas com alguém próximo. O contato com um terceiro pode impulsionar a descoberta de novos cenários, como, por exemplo, a falta de completa adesão ao tratamento farmacológico.

“Para que a medicina decida se um tratamento farmacológico não está sendo efetivo e torne o paciente elegível para uma medida invasiva, é muito importante saber primeiro se o paciente vinha usando as medicações corretamente ou não”, destaca Solano.

Um artigo de Karlowicz e Bodalska, publicado em 2023 e analisado na revisão, apontou que mais de um terço dos pacientes, usuários crônicos de analgésicos, relataram que seus médicos não colheram sua história médica durante a consulta e tratamento.

Para o psiquiatra, se os médicos ficarem centrados apenas nas possíveis causas físicas da dor, não irão “descobrir o que precisa ser descoberto a respeito da dor daquele paciente”. O artigo busca sugerir mudanças para que as experiências dos pacientes sejam levadas em consideração.

Outro artigo avaliado, produzido por Emilie Pedreira (2023), identificou que a não adesão ao tratamento de paciente com DCNO pode chegar a 53% no Brasil. Para Solano, essa indicação mostra a necessidade de uma anamnese objetiva, que pode ajudar a identificar o que leva os pacientes a não se adaptarem aos tratamentos.

Há casos em que os pacientes percebem os fatores não físicos que os afetam antes de seus médicos, o que o desmotiva a dar continuidade no tratamento. “Se o doente percebe que só sente dor quando está ansioso, ele tem um registro, ainda que não consciente, de que tomar remédios para tratar unicamente causas orgânicas da sua dor pode não ser tão efetivo. Então passa a não levar o tratamento a sério”, exemplifica o psiquiatra.

Essa baixa adesão ao tratamento causa insatisfação de ambas as partes na relação médico-paciente. Ao descobrir que o doente não segue a terapia corretamente, o médico passa a também não investir completamente naquele atendimento, o que causa ainda mais frustração ao doente, criando um ciclo vicioso.

“Se o médico não estiver vigilante para perceber quais são as reações emocionais que ele tem diante do seu paciente, a situação tende a escalar e se complicar cada vez mais. Isso é um tijolinho neste grande estado de inefetividade terapêutica que, muitas vezes, a gente vê nas clínicas de dor” – João Solano

Ganhos secundários e terciários

Durante a pesquisa, os profissionais apontaram os ganhos secundários, quando o paciente se beneficia a partir de sua condição, e os terciários, quando é o médico quem se beneficia dessa condição.

Para eles, o primeiro caso pode estar associado ao contentamento do paciente, que encontrou uma zona de conforto, enquanto o segundo caso está relacionado aos benefícios da instituição ou da equipe em encaminhar o doente para intervenções invasivas.

O psiquiatra exemplifica que há pacientes que conseguem mais atenção de seus familiares ou que se afastam de suas responsabilidades. Estes fatores precisam ser levantados antes que o profissional o encaminhe para a intervenção cirúrgica.

Ele ainda destaca casos em que o quadro permite a obtenção de drogas nas quais o paciente pode estar viciado. É o exemplo de drogas facilmente indutoras de dependências, em que o paciente não tem mais estímulo para melhorar a sua dor, uma vez que é graças à ela que pode conseguir receitas de opiáceos.

Os ganhos terciários aparecem quando intervenções cirúrgicas ou invasivas são recomendadas mesmo quando outras opções de tratamento poderiam ter sido usadas e não foram. Assim, o tratamento deixa de atender a este critério ético. No contexto do artigo, os pesquisadores apontam que os médicos, ao deixarem de lado fatores psíquicos para centrarem a sua atenção somente nos aspectos físicos, podem estar inconscientemente inspirados pela obtenção de ganhos terciários.

O trabalho completo pode ser acessado neste link.

Mais informações: joaopaulocsolano@uol.com.br, com João Paulo Consentino Solano

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Pomada com própolis vermelha é testada para cicatrização de queimaduras

Experimentos iniciais em células e animais mostraram que pomada orgânica à base de própolis vermelha pode acelerar processo de cura, fechando feridas de forma rápida

Uma pomada feita a partir da própolis vermelha pode representar um avanço na cicatrização rápida de queimaduras. Um estudo da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP desenvolveu e testou o produto em cultura de células e animais. Os resultados mostraram que graças aos componentes químicos do princípio ativo, a formulação tem potencial para auxiliar vítimas dessas lesões.

A própolis vermelha é um produto típico do Nordeste brasileiro. Neste caso, a utilizada para a pomada tem como origem a cidade de Maceió, capital de Alagoas. A substância é produzida por abelhas (Apis mellifera) que retiram resina vermelha da planta nativa rabo-de-bugio.

Lauriene Luiza de Souza Munhoz, biomédica e autora do trabalho, explica que existem outras própolis no mercado, que são usuais nas práticas do campo da saúde, mas revela que o estudo foi pioneiro na aplicação desta em específico para produtos de pele.

A pesquisadora aponta, em entrevista ao Jornal da USP, que as queimaduras possuem um tratamento difícil e pouco eficaz, e, em geral, apresentam alguma inconstância na cicatrização. Sua ideia era criar um produto inovador e natural que tivesse a capacidade de curar cicatrizes complexas.

“Os produtos disponíveis na área da saúde ainda não garantem uma cicatrização completa, em geral, deixam alguma irregularidade. A ideia era trazer um produto não só inovador, mas que seja eficaz”, completa Lauriene.

Formulação da pomada

A composição química da própolis vermelha contribui para uma cicatrização mais acelerada. A alta concentração de compostos fenólicos, flavonoides e outros bioativos com propriedades antioxidantes, antimicrobianas e anti-inflamatórias permitem auxiliar as células a se proliferarem e assimilarem melhor o processo de fechamento da ferida.

Assim, o potencial da própolis vermelha em ser um ator eficaz na cicatrização já era esperado, explica Daniele dos Santos Martins, professora da FZEA e orientadora da pesquisa.

Além do produto, foi utilizado como veículo – material base, onde é diluído o princípio ativo – o emulsificante Olivem 1000, uma substância orgânica comercializada, criada a partir do óleo de oliva.

Os pesquisadores optaram por um produto que não influenciasse as respostas do princípio ativo. Entretanto, usar um item comercial serviu como garantia do funcionamento da própolis vermelha, que foi incorporada ao veículo. “Os resultados que encontramos realmente são da própolis. Nós nos certificamos que foi a própolis quem teve esses achados e não tem a ver com o veículo usado”, garante a professora.

Em relação a outros produtos já disponíveis no mercado, a biomédica aponta vantagens como a cicatrização acelerada e a formulação natural da pomada com própolis vermelha. Segundo ela, essa composição diminui os riscos de alergias.

Daniele destaca também que outros fatores são contemplados. Por exemplo, se em um eventual uso por animais, eles lamberem, ou ainda, se crianças por acidente levarem o produto à boca, não haverá graves problemas.

Avaliações

Para avaliar a queimadura no modo experimental, somente a lesão de 2º grau – quando a derme e a epiderme são atingidas – foi testada. Segundo as pesquisadoras, primeiro foram realizados testes in vitro e posteriormente in vivo, em ratos Wistar. Nos testes da pomada em si, foram realizadas análises físico-químicas e bacteriológicas.

A legislação exige testes acelerados de 90 dias em que os pesquisadores devem deixar o produtos sob estresse térmico e estresse mecânico. Esses testes simulam o tempo de estocagem e transporte, além de temperaturas altas e baixas, ajudando a entender a durabilidade do produto e como ele vai se comportar no dia a dia.

A partir dessa etapa, pode-se comprovar que a formulação é estável, por não ter mudado seu PH e cor, não ter tido separação de fase e não ter perdido a viscosidade. “Ela [a pomada] se manteve dentro dos parâmetros iniciais durante esse período, entre esses estresses que a gente submeteu à formulação”, explica Lauriene.

Durante os experimentos in vitro, foram realizados testes que demonstraram o potencial de cicatrização da própolis por meio da migração e proliferação celular, resultando na contração e redução do espaço entre as bordas da área lesada. Após o sucesso nessa etapa, os pesquisadores passaram a realizar os testes in vivo, em que faziam a comparação em animais do grupo de controle – sem tratamento nenhum – e em outro grupo com a formulação da pomada.

No grupo controle, os resultados foram negativos, enquanto o grupo com a própolis vermelha obteve resultados positivos em relação ao tempo de cura e uniformidade na cicatrização, comprovando a eficácia do princípio ativo.

“Nossos resultados mostram que a pomada formulada propiciou a melhor cicatrização, mantendo a borda da ferida regular”, explica a professora. Segundo ela, além de a pomada ser eficiente, também deixa a cicatriz com um aspecto visualmente agradável.

Daniele acredita que isso seja um ganho principalmente para o estado mental de vítimas com queimaduras visíveis. “Muitos pacientes têm que fazer um acompanhamento psicológico, porque, dependendo de onde a queimadura fica, a pessoa não quer mostrar, opta por cobrir. Conseguir um produto que deixa uma cicatriz de queimadura mais homogênea evitaria esse constrangimento.”

Em relação ao uso em queimaduras, os pesquisadores entendem que os testes já apontam para a eficácia da formulação. Segundo a professora, novos testes foram iniciados com a incorporação da pomada a um biomaterial contendo células-tronco para compreender se os seus resultados também se aplicam em outros tipos de cicatrização.

O produto orgânico se destaca pela cicatrização rápida e uniforme – Foto: cedida pela pesquisadora

Influência do sexo

A pomada se mostrou eficaz para machos e fêmeas, mas diferenças no tempo e organização da cicatrização foram observados. Os pesquisadores deram preferência em mesclar o sexo dos roedores durantes os testes, o que demonstrou a diferença na ação em cada um dos organismos.

Segundo a professora, a literatura já fazia alguns apontamentos sobre essa tendência que está relacionada, possivelmente, aos hormônios. Porém a comprovação foi inesperada para os avaliadores dos testes.

A biomédica explica que a cicatrização em machos é mais rápida, porém nas fêmeas, mesmo que mais lenta, as células migram mais corretamente, formando um tecido mais bem organizado. “No macho, o processo foi um pouco mais rápido, mas a estrutura da pele não ficou tão bem organizada quanto a da fêmea”, completa .

O artigo Red propolis cream and its therapeutic potential for skin lesions caused by burns está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: lauremunhoz@usp.br, com Lauriene Luiza de Souza Munhoz, e daniele@usp.br, com Daniele dos Santos Martins

*Estagiária sob orientação de Tabita Said

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Tratamento com luz elimina bactéria causadora de pneumonia resistente

Testado em laboratório, método emprega luz e corante para liberar partículas que destroem a bactéria Klebsiella pneumoniae, comum em hospitais

Pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP desenvolveram um tratamento inovador para a pneumonia causada por bactérias resistentes a antibióticos, um dos maiores problemas atuais da saúde mundial. A técnica usa luz e um corante para liberar partículas que eliminam a bactéria Klebsiella pneumoniae, causadora de infecções hospitalares. O método teve sua eficácia demonstrada em testes de laboratório, primeiro passo rumo a seu uso clínico.

O trabalho foi realizado em colaboração com cientistas do Departamento de Engenharia Biomédica da Texas A&M University, nos Estados Unidos, e do Departamento de Química da Universidade de Coimbra, em Portugal. Os resultados do estudo são apresentados em artigo da revista científica internacional Pathogens.

Segundo a pesquisadora Fernanda Alves, do IFSC, que realiza estudos na Texas A&M University, a cada 15 segundos, aproximadamente, uma pessoa morre de pneumonia no mundo. “Isso acontece, principalmente, porque os antibióticos já não são eficazes contra muitas bactérias super-resistentes”, ressalta. “Nesse cenário, a terapia fotodinâmica surge como uma alternativa promissora no combate às infecções.”

Entre os agentes mais perigosos da pneumonia resistente está a bactéria Klebsiella pneumoniae, comum em hospitais. O método estudado é conhecido como terapia fotodinâmica (TFD). Primeiro, aplica-se um corante especial no organismo, seguindo-se à aplicação de uma luz sobre a região infectada. A combinação faz com que o corante libere partículas capazes de destruir as bactérias sem prejudicar as células humanas.

Nos testes em laboratório, a técnica conseguiu eliminar totalmente a bactéria, mas havia um problema: dentro dos pulmões existe uma camada natural chamada surfactante pulmonar, que protege os alvéolos durante a respiração. Essa camada acabava “aprisionando” o corante e diminuindo a eficácia do tratamento.

Para superar esse desafio, os cientistas combinaram o corante com uma substância chamada Gantrez, um tipo de polímero seguro para uso médico, que funciona como um “carregador”, ajudando o corante a atravessar a barreira natural dos pulmões e a alcançar as bactérias. Com essa combinação, o número de microrganismos foi reduzido em milhares de vezes, mesmo na presença da barreira pulmonar. Ou seja, a técnica mostrou que pode funcionar também em condições mais próximas da realidade do corpo humano.

“Cada passo para tornar o método clinicamente aplicável traz novos desafios. O mais recente foi vencer a barreira natural dos pulmões: o surfactante”, destaca Fernanda Alves. “Com a adição do Gantrez ao tratamento, conseguimos resultados muito animadores, que nos deixam esperançosos para as próximas etapas, primeiro em modelos animais e, depois, em estudos clínicos.”

Embora os testes ainda estejam na fase de laboratório, os resultados trazem esperança. Se confirmada em estudos com animais e, depois, com pacientes, a terapia poderá se tornar uma alternativa aos antibióticos em casos de pneumonias graves e resistentes. Segundo os autores do estudo, esse é um passo importante no combate às chamadas “superbactérias”, que já representam uma das maiores ameaças à saúde pública no século 21.

O trabalho é assinado por Fernanda Alves, Isabelle Almeida de Lima, Lorraine Gabriele Fiuza e Natalia Mayumi Imada, do IFSC e da Texas A&M University, Zoe Arnaut, da Universidade de Coimbra, e Vanderlei Salvador Bagnato, professor do IFSC e da Texas A&M University.

Pulicado na revista científica Pathogens, o artigo Optimizing Photosensitizer Delivery for Effective Photodynamic Inactivation of Klebsiella pneumoniae Under Lung Surfactant Conditions pode ser acessado neste link.

*Rui Sintra, da Assessoria de Comunicação do IFSC. Adaptado por Júlio Bernardes

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP