Olhar para a saúde mental pode tornar tratamento de dor crônica mais efetivo

Pesquisadores definem sugestões de manejo clínico para melhorar a condução dos casos de dor crônica não oncológica

O tratamento de dor crônica não oncológica (DCNO) explora pouco, ou não explora, fatores além dos orgânicos, como a saúde mental e a relação médico-paciente, antes de indicar intervenções invasivas. É o que sugerem pesquisadores da USP, Centro Universitário São Camilo e Hospital do Exército, que definiram uma lista de dez recomendações para a condução de casos de dor crônica refratária – aquela que não responde aos tratamentos.

João Solano, psiquiatra e primeiro autor do trabalho, atuou na Equipe de Controle da Dor na Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, onde teve contato próximo com pacientes com a condição. A esquipe busca, através de uma proposta multidisciplinar, evitar a cronificação da dor. O artigo, recém-publicado na revista O Mundo da Saúde, resume a sua experiência e dos demais autores no trabalho assistencial.

“Observamos que muitos dos pacientes tinham determinantes não físicos da dor e que se esses fatores não fossem abordados, eles poderiam vir a não melhorar nunca, mesmo que medidas invasivas modernas e mais caras fossem implementadas” – João Solano

O trabalho destaca que, para a Associação Internacional de Estudos da Dor (Iasp), “dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada a dano real ou potencial ao tecido”. A ideia de ser “semelhante àquela associada a dano potencial” abre espaço para contemplar o medo do paciente que antecede os potenciais riscos que podem vir a se tornar uma dor.

“Na maioria das vezes o que o paciente mais teme não é o dano real, mas aquilo que ele imagina que seja perigoso ao seu próprio corpo. A fantasia de ele vier a sofrer algo insuportável”, explica Solano.

Para ser considerada uma dor crônica não oncológica, a dor deve durar mais do que três meses e não estar relacionada a processos de câncer. O psiquiatra aponta que, em geral, a dor oncológica persiste por menos tempo, enquanto a não oncológica costuma afetar a qualidade de vida dos pacientes por anos.

Os profissionais notaram que os quadros de dor crônica podem ter sua  origem em fatores não orgânicos, ligados com a vida psíquica ou a vida psicossocial do paciente. A suspeita dos pesquisadores é que, caso essas outras vertentes da dor não sejam exploradas, o risco de cronificação seja ainda maior. Segundo eles, é frequente que fatores psicológicos ou psiquiátricos contribuam para a piora dos casos.

Condução do tratamento

As sugestões do estudo incluem: ouvir a história completa do caso; revisar os medicamentos utilizados; identificar e delimitar os possíveis benefícios da relação médico e paciente; manter boa comunicação entre a equipe; avaliar os sentimentos dos profissionais e indicar o paciente para avaliação psicológica e psiquiátrica.

Para Solano, a medicina atual, altamente auxiliada pela tecnologia, busca por origens exclusivamente orgânicas e constatáveis da dor, que sejam modificáveis ou potencialmente modificáveis por intervenções corporais.

O psiquiatra aponta que espera-se uma efetividade dos procedimentos invasivos maior do que o que se tem observado com os resultados. “Temos visto que, muitas vezes, esses procedimentos [invasivos] têm uma efetividade bem aquém do esperado. Muitos pacientes têm suas dores cronificadas a despeito da aplicação dessas medidas”, explica.

Para o artigo foi feita uma busca sistemática que avaliou se a saúde mental e a relação médico-paciente estão sendo abordadas no cenário de tratamentos dos pacientes diagnosticados com DCNO. O resultado foi de acordo com o que era esperado e revelou que estes temas têm sido pouco debatidos. Para as avaliações foram considerados 14 artigos das bases de dados Medline, PubMed, Lilacs e Cochrane Library.

Solano aponta que pacientes com casos complexos eram encaminhados para uma avaliação psiquiátrica com ele. Foi durante esse processo que o médico percebeu que eles não tinham passado por anamneses completas.

A anamnese é uma entrevista clínica realizada pelo profissional da área da saúde com o seu paciente. Para os pesquisadores, entender as possíveis raízes emocionais de um problema é fundamental para escolher a melhor forma de condução do caso.

As entrevistas podem ser classificadas como subjetivas, quando feitas diretamente com o paciente, ou objetivas, feitas com alguém próximo. O contato com um terceiro pode impulsionar a descoberta de novos cenários, como, por exemplo, a falta de completa adesão ao tratamento farmacológico.

“Para que a medicina decida se um tratamento farmacológico não está sendo efetivo e torne o paciente elegível para uma medida invasiva, é muito importante saber primeiro se o paciente vinha usando as medicações corretamente ou não”, destaca Solano.

Um artigo de Karlowicz e Bodalska, publicado em 2023 e analisado na revisão, apontou que mais de um terço dos pacientes, usuários crônicos de analgésicos, relataram que seus médicos não colheram sua história médica durante a consulta e tratamento.

Para o psiquiatra, se os médicos ficarem centrados apenas nas possíveis causas físicas da dor, não irão “descobrir o que precisa ser descoberto a respeito da dor daquele paciente”. O artigo busca sugerir mudanças para que as experiências dos pacientes sejam levadas em consideração.

Outro artigo avaliado, produzido por Emilie Pedreira (2023), identificou que a não adesão ao tratamento de paciente com DCNO pode chegar a 53% no Brasil. Para Solano, essa indicação mostra a necessidade de uma anamnese objetiva, que pode ajudar a identificar o que leva os pacientes a não se adaptarem aos tratamentos.

Há casos em que os pacientes percebem os fatores não físicos que os afetam antes de seus médicos, o que o desmotiva a dar continuidade no tratamento. “Se o doente percebe que só sente dor quando está ansioso, ele tem um registro, ainda que não consciente, de que tomar remédios para tratar unicamente causas orgânicas da sua dor pode não ser tão efetivo. Então passa a não levar o tratamento a sério”, exemplifica o psiquiatra.

Essa baixa adesão ao tratamento causa insatisfação de ambas as partes na relação médico-paciente. Ao descobrir que o doente não segue a terapia corretamente, o médico passa a também não investir completamente naquele atendimento, o que causa ainda mais frustração ao doente, criando um ciclo vicioso.

“Se o médico não estiver vigilante para perceber quais são as reações emocionais que ele tem diante do seu paciente, a situação tende a escalar e se complicar cada vez mais. Isso é um tijolinho neste grande estado de inefetividade terapêutica que, muitas vezes, a gente vê nas clínicas de dor” – João Solano

Ganhos secundários e terciários

Durante a pesquisa, os profissionais apontaram os ganhos secundários, quando o paciente se beneficia a partir de sua condição, e os terciários, quando é o médico quem se beneficia dessa condição.

Para eles, o primeiro caso pode estar associado ao contentamento do paciente, que encontrou uma zona de conforto, enquanto o segundo caso está relacionado aos benefícios da instituição ou da equipe em encaminhar o doente para intervenções invasivas.

O psiquiatra exemplifica que há pacientes que conseguem mais atenção de seus familiares ou que se afastam de suas responsabilidades. Estes fatores precisam ser levantados antes que o profissional o encaminhe para a intervenção cirúrgica.

Ele ainda destaca casos em que o quadro permite a obtenção de drogas nas quais o paciente pode estar viciado. É o exemplo de drogas facilmente indutoras de dependências, em que o paciente não tem mais estímulo para melhorar a sua dor, uma vez que é graças à ela que pode conseguir receitas de opiáceos.

Os ganhos terciários aparecem quando intervenções cirúrgicas ou invasivas são recomendadas mesmo quando outras opções de tratamento poderiam ter sido usadas e não foram. Assim, o tratamento deixa de atender a este critério ético. No contexto do artigo, os pesquisadores apontam que os médicos, ao deixarem de lado fatores psíquicos para centrarem a sua atenção somente nos aspectos físicos, podem estar inconscientemente inspirados pela obtenção de ganhos terciários.

O trabalho completo pode ser acessado neste link.

Mais informações: joaopaulocsolano@uol.com.br, com João Paulo Consentino Solano

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP