O racismo é uma presença real na medicina brasileira e mundial

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em conjunto com o Instituto Çarê, apontou que, entre os anos de 2010 e 2021, as pessoas negras foram as que mais sofreram algum tipo de racismo e incidentes durante procedimentos médicos. Esses incidentes são caracterizados como condições hospitalares adquiridas de forma indesejável e não intencional durante a internação do paciente.

Com base no recorte étnico-racial, o Boletim Çarê-IEPS apontou a queda no número geral desses acontecimentos ao longo dos anos, o que pode indicar melhorias na gestão e prevenção ou, então, um aumento na subnotificação. Por conta de desigualdades nas taxas, é destacada a necessidade de maior atuação de políticas públicas promovidas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), a fim de tratar das disparidades e promover o acesso equitativo à saúde — independentemente de raça ou cor.

Mônica Mendes Gonçalves, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo, afirma que o racismo na medicina é realizado a partir de um conjunto de normas e regras burocráticas, que não dizem respeitar à raça, mas que incidem sobre esses grupos sociais em situação de vulnerabilidade.

O racismo velado

Segundo Mônica, a identificação de casos de racismo na medicina é realizada a partir da junção de duas ferramentas, uma quantitativa e outra qualitativa. A primeira se dá por meio do advento da epidemiologia — análise da distribuição e dos fatores determinantes das enfermidades — que com as estatísticas das populações, cruzadas com as estatísticas em saúde, permite entender quais indivíduos adoecem mais e os motivos para tal.

Por exemplo, durante a pandemia da covid-19 no Brasil, a taxa de letalidade da doença nos negros foi de 55%, enquanto nos brancos foi de 38%. Outro dado que evidencia esse cenário é o que indica que o risco de uma pessoa negra apresentar quadro de depressão no País é praticamente o dobro de uma pessoa branca.

Já as produções qualitativas, desenvolve a doutoranda, são um conjunto de ferramentas e de narrativas que investigam os itinerários em saúde — o caminho percorrido pelo indivíduo durante o tratamento, desde a identificação da enfermidade. “Quando soma-se esse conjunto de ferramentas e de evidências, que vem desses dois tipos de pesquisas, tem-se muitas evidências que mostram que o racismo é um dos determinantes primordiais da saúde das populações, não só no Brasil, mas no mundo todo”, discorre.

Na opinião dela, o erro médico é um evento racial e a pessoa submetida a isso tem dificuldade em conseguir argumentar o contrário. Ela diz que o sujeito pobre, da periferia, que não possui direitos trabalhistas, costuma ser atendido por profissionais que não esclarecem a sua condição clínica e é o racismo que determina essa realidade.

A médica utiliza, como exemplo, um caso de seu doutorado, sobre um jovem da zona norte de São Paulo, que teve seus dedos amputados por conta de um acidente no local de trabalho: “O rapaz vai para um hospital, depois de uma hora o médico diz que não pode fazer nada, porque não tem raio X. Vai para outro, em que ocorre a mesma coisa de não ter o aparelho. Por fim, ele vai para um terceiro, em que aí ele é acolhido e fazem pela primeira vez um curativo nele”. No entanto, ela complementa que, neste último hospital, havia pessoas esperando por cirurgias a meses e, diante desse cenário, o jovem fugiu.

A especialista ainda comenta sobre relatos que apontam que pessoas negras não conseguem mobilizar cuidados na saúde da mesma forma que as brancas conseguem. Ela discorre sobre pesquisas que evidenciam o cenário em que, ao realizar um diagnóstico psiquiátrico de um indivíduo, de modo geral o negro é dirigido para um serviço substitutivo de atenção à saúde mental e, para o não negro, apenas são receitados medicamentos – mesmo que possuam o mesmo diagnóstico.

Mudanças no paradigma

“Acho que é correto dizer que uma das principais vias a partir da quais as políticas raciais se estruturam na saúde é a omissão.” Mônica explica que isso ocorre pelo fato de não existir um olhar privilegiado às populações periféricas e vulneráveis nos processos de distribuição de saúde. Ela cita o maior investimento na atenção hospitalar em detrimento da atenção básica, que propicia a precarização desse serviço no qual a maior parte dos indivíduos pobres possui acesso.

Segundo a doutoranda, é uma burocracia estabelecida que inviabiliza que a maioria dos trabalhadores pretos e pobres tenha acesso à saúde. Isso se dá desde o trato interpessoal até os arranjos institucionais — horário de funcionamento dos serviços, trâmite para realização de exames, arranjos políticos, localização de pronto-socorro, presença de maquinário, tudo isso é em benefício da população branca elitizada.

“O que significa que 80% dos transplantados no Brasil sejam homens brancos? Contrário ao fato de que, por exemplo, transplante de coração ocorre, basicamente, só nesses indivíduos, mas as pessoas que mais sofrem de doenças do coração são os homens negros”, questiona a médica.

Na visão de Mônica, para mudar o racismo na saúde é necessário mudar todas as esferas sociais em todo o mundo, visto que, assim como no Brasil, essas condições também são identificadas nos Estados Unidos, África do Sul, na América Latina e em outros continentes. Além disso, outras populações, como os povos originários, também estão presentes nessa desigualdade racial, inserida na educação e no mercado de trabalho, igualmente.

De acordo com ela, deve ser implementado um conjunto de políticas públicas que direcione saúde para essas populações e pense a sua lógica a partir dos territórios vulnerabilizados. No Brasil, nas regiões Norte e Nordeste, menos de 40% da sociedade possui saneamento básico — item necessário para a qualidade de vida de um indivíduo.

“Se a gente investe em um hospital de verdade, não em um hospital enorme que por dentro não tem nada, e coloca equipamento dentro desse local, essa população negra consegue ser assistida”, garante a doutoranda, que ressalta que o racismo tem o caráter de englobar um aglomerado de setores, portanto, as ações devem ser articuladas; “por exemplo, a saúde não funciona sem educação”.

Aliança estrutural

O racismo institucional, de acordo com a especialista, funciona a partir da aliança entre a população branca, na qual o monopólio de poder ocupa todas as instâncias sociais — um pacto social coletivo – para exclusão dos negros. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina apontou que somente 3% dos médicos no Brasil são negros. “Vão sendo instituídos para que isso funcione como mecanismo de exclusão, porque, se um deles começa a falhar, a arquitetura toda se abala. Então, não é tão desimportante assim que esses profissionais sejam brancos e muito racistas”, afirma.

A médica utiliza o termo “buraco negro” ao se referir a casos nos quais o indivíduo, por conta dos trâmites que não são explicados a ele, perdura por determinado tempo estagnado no tratamento e muitas vezes não consegue realizar o exame que lhe é necessário. Diante disso, a pessoa desiste do procedimento e adoece cada vez mais.

“Do ponto de vista da comprovação desse fenômeno, isso já está absolutamente confirmado e ratificado. Se tiver um mínimo conhecimento de crença nas perspectivas científicas e estiver minimamente atento ao mundo, já tem isso confirmado, não nos faltam dados política, estatística e cientificamente fundamentados para entender”, desenvolve Mônica.

Por fim, ela disserta que o racismo está sendo construído, fomentado e rearticulado há cinco séculos, por meio do conjunto de tecnologias sociais implementadas em diferentes lugares do mundo, com o objetivo de subordinar e dominar as populações negras: “A gente deve pensar nisso como uma transformação global, que precisa levar tempo e precisa de muita ação política, radical e incansável direcionada para isso”.

*Estagiário sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Inteligência artificial para jovens com o vírus HIV

A tecnologia de IA é produto de uma parceria entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids). A ferramenta já está disponível no WhatsApp com o objetivo de promover um espaço confiável e sigiloso para oferecer desde orientações sobre o início do tratamento até o acolhimento psicossocial. Giovanni Cerri, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), avalia que o uso da tecnologia pode auxiliar na promoção da saúde para a sociedade.

Atuação da Kefi

A tecnologia Kefi se estabelece em cenário de maior abandono entre os jovens do uso de preservativos nas relações sexuais, além de uma sociedade mais tecnológica. Em muitos dos casos, segundo o professor, os jovens não têm as informações adequadas sobre o tratamento e se afastam do convívio social, podendo vir a ter problemas psicológicos por medo da rejeição e preconceito.

Cerri acredita que, ao proporcionar informações, agir com empatia e tirar o estigma a ferramenta pode exemplificar uma forma benéfica do uso da IA na medicina. “Essas plataformas são muito úteis, porque podem fazer com que esse primeiro contato com o paciente seja um contato bem informativo e os dados recolhidos desse relacionamento possam ajudar na orientação deste e de outros pacientes”, destaca.

Tecnologia e saúde

O uso de inovações tecnológicas e a promoção da saúde é uma aliança de longa data que contribuiu com a maior expectativa e melhor qualidade de vida do ser humano. O professor menciona desde exemplos mais primordiais, como o surgimento do antibiótico, até os avanços mais recentes que favoreceram o diagnóstico precoce, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética.

“Sempre existe uma resistência à mudança, muitas vezes, as novas tecnologias não são bem compreendidas ou não são bem-aceitas pela sociedade”, considera. A desinformação inicial acerca dessa relação mútua pode impactar negativamente a sociedade e a promoção da saúde em geral.

Cerri defende que o uso da tecnologia não apresenta um papel de substituto do profissional médico, mas de auxiliar para maior precisão e eficiência. Algoritmos que transcrevem consultas para facilitar o trabalho burocrático de produzir prontuários médicos são exemplos do uso das inovações tecnológicas com ferramentas.

Tecnologia na pandemia 

“Durante a pandemia, houve uma aceleração da introdução da tecnologia, principalmente relacionada com a saúde digital, que permitiu muitas consultas realizadas a distância”, ressalta Cerri. Além da maior prática da saúde digital, o especialista também comenta sobre o uso de um algoritmo para agilizar o diagnóstico de covid-19, a partir da análise de tomografias computadorizadas.

A iniciativa RadVid-19 dizia respeito a um site para o qual eram enviadas as tomografias e o algoritmo criado diagnosticava a doença e sua extensão. Em um cenário inicial da pandemia, em que os médicos ainda não possuíam experiência para diagnosticar covid pulmonar e os exames demoravam cerca de dez dias, o algoritmo apontava o resultado e a extensão da doença com maior agilidade.

A tecnologia impactou diretamente o tratamento imediato dos casos pulmonares, fator determinante para a sobrevivência do paciente internado na UTI, de acordo com Cerri. “Esse foi um exemplo que vivenciamos durante a pandemia: a possibilidade de ter um algoritmo que dava respostas rápidas sobre o comprometimento pulmonar de covid e quanto eram esses pacientes”, afirma.

A questão ética se configura, na opinião de Cerri, no extenso processo de testagem e avaliação das tecnologias. Tendo em vista a capacidade limitada do sistema de saúde em absorver as inovações, é indispensável que seu custo-benefício e efetividade sejam comprovados. Para isso, o papel das agências reguladoras de saúde é de extrema importância a fim de garantir a saúde do cidadão. “Todo esse caminho da criação de uma nova tecnologia, o debate, a aceitação e a incorporação é um processo progressivo”, pontua o especialista.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Material usado em pacientes com queimaduras graves não melhora a qualidade de cicatrização

Ainda que possa ser útil em alguns cenários, ao ser avaliado em cirurgias de correção cicatricial de pacientes com queimaduras graves, o material não apresentou benefícios significativos

Em um esforço para melhorar a qualidade de vida dos pacientes com sequelas de queimaduras graves, um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP avaliou o uso de matrizes dérmicas na cicatrização. Conduzido por pesquisadores na Unidade de Queimados do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCFMRP), o estudo examinou como esses produtos poderiam beneficiar os pacientes e apontou que tais materiais não contribuem para melhorar a qualidade dessas cicatrizes após cirurgias de correção.

“As cicatrizes desses pacientes fazem com que eles tenham limitações de movimentação ou impossibilitam que eles façam alguma atividade do dia a dia, e até mesmo a parte estética pode incomodar”, diz Ivan Almeida, primeiro autor do estudo, que recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2023 na categoria de Clínica Cirúrgica. O tratamento convencional envolve cirurgias para liberar retrações cicatriciais, o que, por sua vez, cria novas feridas.

O enxerto de pele é frequentemente usado para reconstruir essas feridas, mas nem sempre oferece resultados ideais. Esse procedimento pode ser combinado com o uso de matrizes dérmicas, produto que gera uma derme artificial que serve como base para a aplicação do enxerto. “O nosso estudo objetivou avaliar produtos que poderiam fazer com que o paciente tivesse uma melhor qualidade de cicatrização, para ele ter uma melhor qualidade de vida após a cirurgia de correção cicatricial”, explica o pesquisador.

O estudo randomizado avaliou três marcas de matrizes de regeneração dérmica em cicatrizes, de diferentes partes do corpo dos pacientes, em comparação com o grupo controle, que utilizou apenas enxerto de pele. Os pesquisadores mediram a qualidade da cicatrização por meio de avaliações subjetivas e objetivas.

Da análise subjetiva, um avaliador, através da Escala de Cicatrização de Vancouver — ferramenta da área da saúde que dá nota para as qualidades de pigmentação, vascularização, flexibilidade e alturas das cicatrizes —, mediu os resultados da cicatrização pós-procedimento. Das análises objetivas, foram usados aparelhos para avaliar capacidades biomecânicas, como a elasticidade (chamado cutômetro) e rigidez das cicatrizes (denominado durômetro).

“Para a nossa surpresa, não houve uma diferença estatisticamente significativa entre os pacientes que utilizaram as matrizes e os pacientes que usaram somente o enxerto de pele”, constata Almeida.

Esse resultado destaca a importância de abordar a eficácia de produtos médicos caros em um contexto de sistema de saúde pública, já que as matrizes dérmicas são oferecidas pelo SUS. O valor médio do material pelo sistema público é de R$ 50 por centímetro quadrado. Uma matriz de 5cm x 5cm, que tem 25cm quadrados de área, por exemplo, custa cerca de R$ 1.250. Na medicina privada, esse valor costuma ser maior. Embora esses produtos possam ser benéficos em alguns cenários, o estudo demonstrou que, para avaliar a qualidade da cicatrização nos parâmetros específicos citados, eles não apresentaram benefícios significativos.

 

Na imagem superior, análise feita com o durômetro e, na inferior, com cutômetro – Imagem: Cedida pelos pesquisadores

Descobertas como essa ajudam os médicos a tomar decisões informadas sobre o tratamento de pacientes com sequelas de queimaduras, considerando fatores como custo e eficácia. “Esses produtos são muito bem indicados e nos ajudam muito em casos complexos, mas o que mostramos nesse trabalho é que, especificamente para isso, não teve diferença.”

Pedro Coltro, professor da Divisão de Cirurgia Plástica da FMRP e orientador do trabalho, chama a atenção para a metodologia do estudo, que foi realizado com um grupo de pessoas em que cada uma apresentava a cicatriz em diferentes áreas do corpo. “É necessário avaliar quanto essas matrizes são benéficas de acordo com cada área, porque em algumas regiões verificamos uma resposta melhor, enquanto que em outras isso não foi identificado. Ao final, a comparação de todas as cicatrizes nos diferentes grupos não apresentou diferença significativa”, diz.

Apesar das variações entre os pacientes, o estudo ainda é forte e é o primeiro ensaio clínico que avaliou a qualidade de cicatrizes resultantes das cirurgias de correção de sequelas de queimaduras. “A vantagem é que este é um ensaio clínico randomizado e controlado, de alto nível de evidência. Nossos resultados não corroboram os benefícios que a indústria propaga como verdade, mas que para esse grupo específico de pacientes, nesses parâmetros analisados, não mostrou todas essas vantagens que a indústria coloca”, aponta Coltro.

O trabalho foi publicado em artigo disponível no Annals of Surgery.

Mais informações: e-mail psc@usp.br, com Pedro Coltro

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

O primeiro transplante de olho do mundo

Cirurgiões de Nova York realizaram o primeiro transplante de olho do mundo. Antes desse procedimento pioneiro, os médicos haviam se concentrado apenas em transplantes de córnea – a camada frontal transparente do olho. Mario Luiz Monteiro, médico do Departamento de Neuroftalmologia da Faculdade de Medicina da USP, explica o avanço realizado pelos médicos.

O procedimento 

O paciente sofreu um choque elétrico grave e o objetivo da equipe era preencher o olho e realizar uma reconstrução facial. De acordo com Monteiro, cirurgiões plásticos já realizavam transplantes faciais há algum tempo, até nas regiões subcutâneas. A vantagem desse procedimento é que a nutrição preexistente da face permite que os novos enxertos recebam uma irrigação.

Entretanto, o órgão da visão é mais complicado que a pele. “O olho, além de enxergar, precisa formar a imagem focada na retina e transmitir essa imagem para o cérebro. Mas ele precisa de irrigação para que esteja vivo. Ou seja, a retina precisa de sangue para se manter viva; é como o Sistema Nervoso Central, se fica sem sangue por alguns minutos, ela morre”, explica Monteiro. Além disso, o médico ainda comenta que a parte anterior do olho também precisa de sangue para que produza o humor aquoso, responsável por manter a tonicidade do órgão.

Monteiro ressalta que o transplante realizado não foi apenas do órgão ocular: os profissionais também transplantaram parte da face e os tecidos que envolvem o olho – a órbita. “Com isso, eles levaram todas as estruturas, e o que fizeram de inovador foi provar que conseguem manter o olho viável; ou seja, separaram uma artéria da têmpora do paciente e antes que encaixassem o enxerto no receptor, eles ligaram essa artéria temporal na artéria que nutre o olho”, aponta.

A artéria responsável pela nutrição do órgão, da retina e do nervo óptico está localizada no fundo da órbita e é chamada de artéria oftálmica. Quando o olho lesionado é retirado, perde-se a irrigação. Dessa forma, o médico explica que, no momento em que outro órgão fosse implantado, ele morreria. O pioneirismo do procedimento, portanto, está na novidade da ligação com a artéria da têmpora, o que manteve o olho nutrido e viável.

Segundo Monteiro, o olho transplantado funciona como uma prótese biológica, mas ainda não é capaz de formar e transmitir imagens. “A imagem é formada na retina e é transmitida pelo nervo óptico – que são fios que partem da retina e estão conectados ao cérebro”, discorre. No caso do paciente, esses fios não estão conectados, porque a tecnologia para realizar essa ligação ainda não está disponível.

Recuperação 

Existem outras linhas de pesquisa que buscam recuperar a visão de olhos cegos, como a inserção de eletrodos no córtex. “A parte posterior do cérebro é a parte que de fato enxerga. Então, você coloca os eletrodos, passa um fio no subcutâneo e coloca uma câmera, que se liga com o eletrodo debaixo da pele próximo à orelha. O estímulo visual que essa câmera capta vai direto para o eletrodo que está no cérebro”, exemplifica o médico. Esse procedimento, de acordo com Monteiro, diz respeito à resolução das questões motoras. Na parte visual, entretanto, a complexidade é imensa, por conta da quantidade de informações necessárias para produzir cores, contrastes e formas.

FONTE: Jornal da USP

Pacientes com doenças crônicas são desafio para saúde pública

O diagnóstico de duas ou mais doenças crônicas para uma mesma pessoa cresceu nos últimos 20 anos. O aumento dessa condição, conhecida como multimorbidade, acompanha o envelhecimento da população na cidade de São Paulo.

Em 2015, 42,2% da população paulistana com mais de 19 anos convivia com multimorbidade, de acordo com o levantamento do fisioterapeuta Ricardo Goes de Aguiar, doutor pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Em sua tese de doutorado ele apresenta estratégias para capacitar profissionais de saúde diante desses atendimentos.

São consideradas crônicas as condições de saúde de longa duração que geralmente progridem ao longo do tempo, como hipertensão, asma, artrite, hérnia de disco, depressão e outras. Por serem duradouras, requerem tratamento para controlar os sintomas e minimizar complicações.

Normalmente, as doenças crônicas são estudadas e tratadas isoladamente por especialistas. Porém, isso aumenta as chances de que a interação entre diferentes medicamentos provoque efeitos adversos.

“Apesar de esforços recentes na formação dos profissionais de saúde e em práticas mais integrais e humanizadas, os clínicos ainda trabalham com [foco em] condições específicas, historicamente. Com o envelhecimento da população, a tendência é que as pessoas acumulem doenças, e elas acabam sendo atendidas de forma fragmentada”, diz Ricardo de Aguiar ao Jornal da USP.

Nas unidades que adotam a Estratégia Saúde da Família, criada em 1994 e que se tornou prioritária na atenção primária do SUS em 2003, os profissionais podem indicar ao paciente uma consulta com os farmacêuticos das unidades básicas.

Em conversa com o Jornal da USP, a médica de família e comunidade Caroline do Nascimento, que atua em uma unidade básica no distrito do Jabaquara, zona Sul de São Paulo, conta que as equipes das unidades que adotam essa estratégia costumam se reunir para discutir os casos e compartilhar impressões de alguns pacientes específicos.

“Os farmacêuticos discutem o caso se identificarem alguma interação ou dose que pode ser prejudicial quando o paciente retira alguma medicação. Para pacientes com multimorbidade, isso acaba sendo rotineiro.”

No Inquérito de Saúde na Cidade de São Paulo (ISA Capital-SP) de 2015, cujos dados foram utilizados no estudo, foram feitas 3.184 entrevistas domiciliares aleatórias com pessoas com 20 anos ou mais.

Agentes Comunitários de Saúde na UBS Santo Estevão do bairro de Itaquera. As equipes multiprofissionais da Estratégia Saúde da Família discutem os casos e fazem a busca ativa dos pacientes – Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP

“O ISA Capital entrevista maiores de 12 anos, mas como os estudos demonstram que a prevalência de multimorbidade em crianças e adolescentes é baixa, optamos por trabalhar com a população adulta e idosa no nosso estudo”, justifica o pesquisador.

Foram apresentadas para autodeclaração dos entrevistados condições como diabete, câncer, AVC, colesterol elevado. Entre as doenças cardiovasculares, constavam hipertensão, dor no peito, varizes e arritmia cardíaca. Das doenças respiratórias, eram listadas, entre outras, asma, enfisema, bronquite e sinusite. Na área ortopédica, as alternativas eram artrite; artrose; osteoporose, tendinite, lesão por esforço repetitivo e problemas de coluna. No âmbito da saúde mental, apareciam ansiedade, depressão, síndrome do pânico, TOC e esquizofrenia.

O pesquisador defende uma abordagem que extrapole os fatores biológicos das doenças. “A ideia dos estudiosos da multimorbidade é ver o indivíduo como um todo, tentando fazer um atendimento que considere desde a anatomia e a fisiologia até os determinantes sociais no indivíduo.”

A multimorbidade atingiu 42,2% da amostra estudada, de acordo com o que foi autodeclarado dentre 22 condições apresentadas aos entrevistados. Entre os idosos, esse índice é ainda maior.

Em São Paulo, sete entre cada dez pessoas com 60 anos ou mais têm multimorbidade.

Além de ocorrer mais entre pessoas mais velhas, a condição também é mais comum entre o sexo feminino, explica Ricardo de Aguiar. “O homem tem mais resistência em procurar o serviço de saúde. Então pode ser uma explicação para o maior porcentual de multimorbidade encontrada entre as mulheres.”

Outros grupos que apresentaram maior prevalência de multimorbidade na cidade foram os com maior renda familiar, com pelo menos o ensino superior incompleto, com obesidade (avaliada pelo Índice de Massa Corporal), que faziam o uso de cinco ou mais medicamentos, com transtornos mentais comuns (como depressão e ansiedade), com maiores despesas com saúde e com convênio médico. “Os indivíduos que têm plano de saúde provavelmente tiveram mais acesso a consultas médicas e, por isso, receberam diagnóstico de mais doenças”, avalia o pesquisador.

Identificando padrões frequentes

Além da prevalência, o estudo utilizou um método estatístico — a análise de classe latente — para identificar padrões de multimorbidades semelhantes mais frequentes. Dos entrevistados no ISA Capital-SP com mais de 19 anos, 15,9% apresentavam combinações de doenças cardiovasculares, como a hipertensão; 12,8% tinham mais doenças respiratórias, e outros 12,8% tinham condições reumatológicas, ortopédicas e emocionais combinadas.

Para o autor do estudo, isso é importante porque são milhares de combinações possíveis entre as 22 condições de saúde investigadas. “O conhecimento de grupos de indivíduos com necessidades semelhantes pode favorecer a elaboração de diretrizes clínicas, considerando que ficaria inviável formular especificamente para cada uma das milhares de combinações possíveis de condições de saúde. Portanto, uma linha de pesquisa é tentar identificar esses padrões de multimorbidade.”

Na unidade de Caroline do Nascimento, a estratégia de cuidado em grupo é uma solução vantajosa, já que o tempo das consultas individuais precisa ser mais limitado para viabilizar o atendimento para o grande número de pacientes do bairro. “Nós temos o grupo de dor crônica e os grupos de práticas corporais. É uma estratégia também de convivência para o paciente com outras pessoas que têm condições semelhantes. Muitos deles ficam muito tempo em casa, sem ter uma atividade na rotina, principalmente idosos e aposentados, então acabam ficando mais isolados. Então a ida à unidade para fazer parte dos grupos é uma parte do cuidado muito importante.”

Como centro de formação e de oferta de serviços de saúde de excelência, o município de São Paulo pode estimular uma educação permanente com a elaboração de diretrizes clínicas para esses casos. Esses dados permitem pensar em diretrizes para mais de 40% da população da cidade, em vez das inúmeras possibilidades caso as doenças fossem trabalhadas em pares ou em trios.

De acordo com o pesquisador, é preciso ver o indivíduo como um todo e considerar as vivências e as expectativas com o tratamento.  As unidades de atenção básica interdisciplinares estão previstas no Sistema Único de Saúde (SUS).

“A legislação e a normatização permitiriam uma maior resolutividade dos problemas já existentes. A questão é se os profissionais estão chegando aos serviços preparados para atuar dessa forma interdisciplinar”

Atualmente, as Equipes Multiprofissionais da Atenção Básica (eMulti) envolvem, além de médicos, assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, arte-educadores, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Esses grupos levam em consideração as limitações da população mais velha e com multimorbidade, e integram diferentes terapias.

Caroline do Nascimento conta que esses profissionais contribuem muito para o cuidado desses pacientes. “Nós não pensamos nunca nesse cuidado centrado no médico. Sempre pensamos no trabalho em equipe.”

Esses diferentes profissionais dão suporte às unidades de atenção básica que adotam a Estratégia Saúde da Família. “A ideia é trabalhar com médicos generalistas e com equipes multiprofissionais, de forma interdisciplinar e com reuniões que discutam os casos”, explica Ricardo.

Essas equipes foram criadas pelo governo federal em 2008 como Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mas o financiamento foi interrompido em 2020, durante o governo Bolsonaro. Em maio de 2023, o serviço voltou com mais especialidades médicas e recebeu o novo nome de eMulti.

Segundo a médica, a grande vantagem na estratégia é estar próximo das pessoas. “Nós também temos esse vínculo com a população por meio das agentes comunitárias de saúde, que é uma função fundamental quando precisamos fazer busca ativa de pacientes que não estão vindo ou quando precisamos programar visitas domiciliares.”

Os dados da tese Multimorbidade no município de São Paulo (SP): prevalência, padrões e fatores associados também foram discutidos em artigo na revista Ciência & Saúde Coletiva.

Mais informações: e-mail ricardo.aguiar@unifal-mg.edu.br, com Ricardo Goes de Aguiar

*Estagiário sob orientação de Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Estresse na adolescência predispõe a doenças psiquiátricas na fase adulta

O estresse excessivo na adolescência pode causar alterações no perfil de genes expressos no cérebro, especialmente aqueles ligados às funções bioenergéticas. Tais mudanças afetam o processo de respiração celular e isso estaria associado a problemas comportamentais e transtornos psiquiátricos na idade adulta. A conclusão é de um estudo com ratos feito por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Os resultados foram publicados recentemente na revista Translational Psychiatry.

Não é novidade que a adolescência é marcada por uma série de mudanças no corpo e no comportamento. Nesse período, o cérebro passa por alterações estruturais e funcionais, moldadas tanto por fatores neurobiológicos quanto sociais. “De fato, assim como em humanos, o cérebro do rato adolescente é extremamente plástico, e tal plasticidade é observada tanto em nível molecular quanto comportamental. Mudanças em perfis de expressão de genes específicos, em diferentes áreas do cérebro, levam a alterações de conectividade celular, o que se amplifica sistemicamente, levando a alterações de comportamento persistentes na idade adulta, que são correlacionadas a transtornos psiquiátricos”, explica Thamyris Santos-Silva, então doutoranda em farmacologia pela FMRP e primeira autora do trabalho.

“A adolescência representa um período crítico para a plasticidade cerebral dependente dos comportamentos sociais”, complementa Felipe Villela Gomes, professor do Departamento de Farmacologia da FMRP e coordenador do estudo. “Nessa fase, aumenta a suscetibilidade a fatores socioambientais adversos, como traumas, insultos e maus-tratos, e as experiências sociais podem influenciar a vulnerabilidade e a resiliência ao estresse.”

O córtex pré-frontal é uma região cerebral extremamente suscetível a estressores durante a adolescência. É ela que, quando madura, permite um controle cognitivo maior sobre as emoções, como pode ser observado na idade adulta. Em ratos estressados na adolescência, essa região apresentou menores níveis de expressão de genes-chave na função respiratória das mitocôndrias. Estas organelas são as principais produtoras de energia química para o funcionamento dos neurônios, as células fundamentais do cérebro. Isso reforça o envolvimento das mitocôndrias como reguladoras de comportamentos sociais, entre eles a resposta ao estresse.

A pesquisa, apoiada pela Fapesp, analisou, em uma primeira etapa, as consequências comportamentais do estresse – ansiedade, sociabilidade e cognição – em ratos no final da adolescência. Para isso, os animais foram expostos a um protocolo de estresse, por dez dias consecutivos, coincidentes com um intenso período de plasticidade cerebral. Na sequência, os animais passaram por avaliações específicas, que mostraram prejuízos marcantes em todos os testes comportamentais.

“Observamos que, nessa fase da vida, os animais estressados apresentavam, de forma mais pronunciada, um perfil comportamental ruim, com ansiedade e diminuição na sociabilidade e na função cognitiva”, conta Gomes.

Para avaliar se essas variações se refletiam também na expressão gênica, amostras de RNA foram enviadas ao Laboratório de Genética Comportamental do Brain Mind Institute da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça), liderado pela professora e pesquisadora Carmen Sandi. Lá foi feito o sequenciamento de RNA mensageiro, que reflete o perfil de genes expressos nos cérebros analisados. Os dados foram analisados com ferramentas de bioinformática, etapa financiada pelo Programa Capes/USP- PrInt.

“Essa análise mostrou alterações nos genes do córtex pré-frontal de animais estressados – entre os dez principais genes afetados, vários foram associados a vias ligadas ao estresse oxidativo e à função mitocondrial, um componente celular fundamental para a produção de energia para o cérebro”, diz Gomes.

O trabalho envolveu ainda uma análise para avaliar o consumo de oxigênio mitocondrial pelo cérebro desses animais, que também se mostrou prejudicado pelo estresse.

“Temos agora, portanto, várias evidências que apontam a importância da função mitocondrial para esse perfil comportamental”, afirma Gomes.

Próximos passos

A ideia dos pesquisadores agora é analisar se, com a identificação desse perfil comportamental, é possível predizer a resposta de um indivíduo frente a um possível estressor e em que grau isso realmente levaria ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas.

“Outro caminho para avançar nos estudos seria centrar esforços nas alterações genéticas. Fazer testes para descobrir o que acontece quando ocorre diminuição ou melhora da expressão gênica. Isso poderia fornecer mais evidências sobre a relação dessas alterações com o estresse e até apontar formas de combatê-las”, sugere Gomes.

O artigo Transcriptomic analysis reveals mitochondrial pathways associated with distinct adolescent behavioral phenotypes and stress response pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41398-023-02648-3.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

* Julia Moióli, da Agência Fapesp.

FONTE: Jornal da USP

Prevenir e tratar inflamações com menos efeitos colaterais

“Aí! Acho que meu machucado inflamou.” É muito comum escutar que não se deve “cutucar” machucados, espinhas ou quaisquer outros ferimentos, pois irá inflamar.

A inflamação não é, necessariamente, uma coisa ruim. Ela é a reação do corpo contra infecções ou lesões para potencializar a recuperação. Porém, caso a defesa do corpo seja muito intensa e descontrolada, é possível levar até a morte.

Por isso, a patente Composto para a prevenção e/ou tratamento de inflamações foi desenvolvida. “A patente se refere a uma classe de compostos com potencial de atividade anti-inflamatória. Usando um método de triagem virtual, selecionamos alguns compostos com potencial de inibir uma enzima responsável pela inflamação, a mieloperoxidase“, explica Flávia Carla Meotti, professora do Instituto de Química da USP e uma das criadoras da patente.

Como funciona?

A mieloperoxidase (MPO) é uma enzima derivada de leucócitos que catalisa a formação de numerosas espécies reativas oxidantes. Por mais que sejam integrantes da resposta imune, elas também podem estar relacionadas a certos danos teciduais durante a inflamação.

O processo de identificação da classe do composto da patente partiu de uma triagem inicial e, após, os selecionados foram testados com a enzima isolada para medir se, de fato, conseguiriam inibi-la. Aqueles com capacidade inibitória foram posteriormente testados usando células do sangue.

“Por último, apenas os quatro melhores compostos foram testados em camundongos para provar se são capazes de diminuir o quadro de uma inflamação como a gota — artrite induzida por cristais de ácido úrico”, comenta Flávia.

Em resumo, o processo se assemelha a um funil, no qual a triagem virtual seleciona dezenas de compostos com potencial de serem inibidores, mas os testes iniciais de laboratório filtram os que não são. “Assim, os testes em camundongos são feitos utilizando um número muito reduzido de animais, o que é um requisito pelo Conselho de Ética da Universidade”, completa.

Importância

Ter um composto com essas características é muito importante, ainda mais quando ele possui menos efeitos colaterais do que os outros já testados. Além disso, também apresentou uma atividade anti-inflamatória superior à de um composto já usado na inflamação, o ácido mefenâmico.

“Os efeitos colaterais aparecem quando o composto inibe outras enzimas além daquela que está sendo usada como alvo no estudo. O que foi patenteado apresentou um modo de inibição que parece ser muito peculiar para esta enzima, aumentando a chance de ser específico, evitando-se efeitos colaterais”, explica a professora.

Flávia ainda acrescenta: “A inibição da mieloperoxidase é muito interessante para combater a inflamação crônica, tendo em vista que esta enzima está exclusivamente presente na inflamação e não participa de outros processos fisiológicos”. A atividade desta enzima não está associada apenas à artrite, como no caso da gota, mas também a doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

Mercado

Com essas características diferentes de outros compostos testados com o mesmo objetivo é importante que a patente chegue ao mercado. “Para dar prosseguimento ao estudo, precisamos passar por uma série de novos testes, por exemplo, saber o quanto do composto é absorvido quando ingerido via oral, saber o quanto dele está presente no sangue após a ingestão, se apresenta efeitos indesejáveis em indivíduos saudáveis e, finalmente, se é capaz de reduzir a inflamação em humanos ou, ainda, se é capaz de diminuir a progressão de doenças inflamatórias crônicas, como a neurodegeneração”, enumera Flávia.

Para que isso seja possível, ela ressalta que é preciso uma parceria com indústrias que queiram investir nesses estudos. “Se o composto falhar em qualquer um dos itens, poderão ser feitas alterações químicas na molécula, visando a contornar o problema.”

É por essa razão que a patente versa em torno da classe química do composto e não apenas de um composto em si. “Isso nos dá o direito de invenção para qualquer composto que seja obtido a partir do composto inicialmente identificado”, comenta Flávia.

*Estagiária sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo

FONTE: Jornal da USP

Bactérias resistentes também são ameaça fora dos hospitais

Microrganismos multirresistentes são listados como uma das principais ameaças à saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2019. São patógenos que criam resistência ao efeito de medicamentos antimicrobianos e ameaçam a capacidade de tratar infecções causadas por eles. As bactérias multirresistentes estão presentes em hospitais, mas sua propagação para outros locais é uma preocupação, uma vez que têm a capacidade de transferir, para outras bactérias, genes de resistência aos antimicrobianos. Para entender a propagação desses genes no meio ambiente, um estudo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP caracterizou linhagens da bactéria Escherichia coli, encontrando espécies multirresistentes em amostras de solo e de água.

As bactérias têm um papel muito importante para a vida humana, mesmo que algumas causem doenças. A Escherichia coli, por exemplo, faz parte da microbiota dos seres humanos e ajuda na regulação de processos químicos, como a digestão, mas, dependendo da linhagem, pode causar infecções gastrointestinais e extraintestinais (que afetam o intestino e outros órgãos). Essa espécie está na lista da OMS de agentes patogênicos prioritários resistentes aos antimicrobianos.

Segundo João Pedro Rueda Furlan, autor da pesquisa, as bactérias são consideradas multirresistentes quando suportam o efeito de, ao menos, um agente antimicrobiano pertencente a três diferentes classes de medicamentos. No âmbito hospitalar isso causa preocupações, já que as opções de tratamento diminuem conforme a resistência aumenta. A principal causa do problema é o uso intensivo de antibióticos em diferentes setores.

“A ideia do estudo era detectar essas bactérias [E. coli] no meio ambiente e avaliar o potencial de patogenicidade, bem como o perfil de resistência delas aos antimicrobianos. Além disso, para as classificadas como resistentes, também tentamos esclarecer quais são os mecanismos que estão associados à resistência”, diz Furlan.

Para a realização do trabalho, foram coletadas 300 amostras de solo, entre 2017 e 2019, em fazendas de pecuária extensiva (setor com uso intenso de antimicrobianos), localizadas na região metropolitana de Ribeirão Preto (SP) e na cidade de Montes Claros (MG). Os pesquisadores também coletaram, em parceria com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), 200 amostras de água de rios, ribeirões, córregos e lagos da região, entre 2018 e 2020, usadas para abastecimento público, irrigação, pesca, entre outros. As bactérias obtidas foram analisadas utilizando métodos microbiológicos e moleculares.

Das amostras de solo, 70 apresentaram presença de E. coli; dessas, 41 foram classificadas como multirresistentes. As E. coli multirresistentes detectadas também possuem uma grande quantidade e diversidade de genes que transferem resistência aos antimicrobianos.

Dos isolados de água, 64 foram classificados como E. coli multirresistentes e indicaram que há uma taxa mais alta do que a recomendada da presença da bactéria em amostras de rios, sugerindo a contaminação de ambientes aquáticos pela atividade humana. A maioria das linhagens de água apresentou resistência aos antimicrobianos clinicamente importantes e também uma grande quantidade e diversidade de genes de resistência aos antimicrobianos.

 

Dispersão de bactérias MDR e seus genes de resistência aos antimicrobianos no meio ambiente – Ilustração cedida peo pesquisador

 

“Em amostras ambientais, as bactérias multirresistentes representam um potencial risco à saúde pública e do ambiente, bem como para a segurança alimentar. Uma vez que essas bactérias estão na água e no solo, elas podem se disseminar diretamente para os seres humanos através da ingestão de água e de alimentos contaminados”, explica o pesquisador.

A versatilidade da E. coli também foi um ponto importante observado. “Em termos de resistência, é uma bactéria que, na maioria das vezes, adquire resistência por meio de elementos genéticos móveis. Ela tem uma plasticidade muito grande, tanto no sentido de capturar novos genes de resistência, como também transmiti-los para outras bactérias.”

A pesquisa também apontou que as bactérias conseguem transferir os genes de resistência aos antimicrobianos para outras bactérias. “Na parte final do estudo, vimos que esses mesmos mecanismos apresentados pelos isolados de E. coli já haviam sido reportados, tanto aqui no Brasil quanto no mundo, há muitos anos, e em espécies bacterianas diferentes. Então, isso demonstra como as bactérias se comunicam entre si e trocam informações genéticas e que estão em constante evolução frente à resistência aos antimicrobianos”, destaca Furlan.

Bactérias resistentes no meio ambiente: um desafio global

A resistência aos antimicrobianos emergiu em ambientes hospitalares, segundo Furlan, por isso poucas pesquisas atentaram para a presença desse grupo de bactérias no meio ambiente. A disseminação de bactérias multirresistentes fora do âmbito hospitalar é um desafio global.

Esses microrganismos podem transferir os genes de resistência para a microbiota (conjunto dos microrganismos que habitam um ecossistema) de pessoas saudáveis, que, por sua vez, irão disseminar essas bactérias em outros setores do meio ambiente. “Tratamos esse problema através do conceito de Saúde Única. O meio ambiente é o principal ponto, porque ele está ligado diretamente e indiretamente com os seres humanos, com os animais e com as plantas. Atualmente, o meio ambiente é um ponto-chave na disseminação da resistência antimicrobiana.”

“Se não temos um ambiente saudável, nós não vamos ter uma saúde humana e animal saudável. É importante mostrar que, além da contaminação ambiental por essa bactéria — a qual é oriunda possivelmente da poluição por esgoto doméstico, visto que muitas cidades ainda não possuem tratamento de esgoto —, clones de alto risco de E. coli estão presentes e contribuem para a disseminação e para a evolução da resistência antimicrobiana”, ressalta o pesquisador.

A pesquisa venceu o Prêmio Capes de Tese de 2023 na área de Farmácia e teve orientação da professora Eliana Guedes Stehling.

Mais informações: e-mails jpedro.rueda@usp.br e elianags@usp.br, respectivamente, com João Pedro Rueda Furlan e Eliana Guedes Stehling

*Estagiária sob supervisão de Valéria Dias

FONTE: Jornal da USP

Síndrome vasovagal: distúrbio pode apresentar diversos sintomas

Síndrome vasovagal é uma resposta reflexa alterada ou paradoxal do nosso sistema nervoso autônomo que pode ser desencadeada por situações ou estímulos específicos.

De repente você começa a sentir calor, fraqueza, tontura, palpitação, chegando ao desmaio. Sintomas que aparentemente podem indicar uma queda de pressão vão muito além disso. Você pode estar com uma síndrome, a síndrome vasovagal. De 3% a 5% dos atendimentos de emergência e de 1% a 6% das internações são diagnosticados com a síncope, segundo estudo de Framingham. Apesar da porcentagem não ser alta, o problema pode atrapalhar a vida de seus portadores.

Tan Chen Wu, médica do Núcleo de Arritmia do InCor (Instituto do Coração), explica porque isso acontece: “A síndrome vasovagal é uma resposta  reflexa alterada ou paradoxal do nosso sistema nervoso autônomo, que regula as funções hemostasias de uma série de sistemas e órgãos como coração, trato gastrointestinal, secreção glandular, respiração, sistema imuno-hormonal, oscilando entre os polos simpáticos e parassimpáticos”. Essa resposta reflexa inadequada, desencadeada por situações ou estímulos específicos, como ficar muito tempo em pé parado, dor, função venosa, estresse emocional, calor intenso e vários outros gatilhos, que levam à redução do estímulo simpático e aumento de tônus vagal, resulta na queda acentuada da pressão arterial e frequência cardíaca, com redução consequente do fluxo sanguíneo para o cérebro, destaca a especialista.

A perda da consciência e do tônus postural ou síncope é a manifestação dessa interrupção ou redução transitória da perfusão cerebral por vasodilatação e bradicardia resultante do reflexo vasovagal. Muitas vezes, a redução do fluxo cerebral pode ocasionar efeitos mais leves. Por ser uma resposta reflexa, é autolimitada, de curta duração, com  recuperação espontânea do nível da consciência normalmente em menos de um a dois minutos.

Apesar de a síndrome vasovagal ser benigna, seus efeitos podem levar à queda e quadros indesejáveis que são precedidos de vários sintomas. “A perda da consciência ou síncope ou sensação de desmaio ou pré-síncope geralmente vem acompanhada de sinais, sintomas como palpitações, calor, calafrio, tontura mal-estar, moleza, náuseas, palidez, sudorese, dor abdominal e diarreia, que são as outras manifestações do estímulo vagal no nosso organismo, além da própria queda de pressão e frequência cardíaca. Ao deitar ou cair no chão, a maioria dos pacientes apresenta melhora dos sintomas em questão de minutos, à medida em que se normalizam a pressão arterial e a frequência cardíaca.

Predisposição

Segundo Tan Chen Wu, a síndrome vasovagal acontece por uma predisposição à resposta reflexa dos pacientes. Em alguns grupos há uma predisposição genética. Em pacientes mais suscetíveis, pode ocorrer sem grandes estímulos, com sintomas mais frequentes, em outros, a resposta vasovagal é desencadeada por desequilíbrios transitórios do nosso organismo, como desidratação, quadro infeccioso e descondicionamento físico.

Existem pacientes com fatores desencadeantes bem definidos como, por exemplo, aqueles relacionados à função venosa e procedimentos médicos,  por estímulo central, em que quase invariavelmente esses pacientes vão ter essa reação quando vão tirar sangue para exame médico, principalmente se não se tomar providências para evitar ou atenuar a resposta.

Saber e conhecer os mecanismos e as manifestações da síndrome vasovagal são o primeiro passo para o tratamento e para minimizar os fatores que podem causar seus efeitos. Medidas simples podem evitar o mal-estar. O reconhecimento dos fatores desencadeantes permite ao paciente tomar ações para evitar o estímulo, como ficar muito tempo em pé, principalmente em ambientes quentes e abafados, tratar dores como cólica menstrual e tirar sangue deitado, medidas simples que podem ser muito eficazes para atenuar ou abolir a ocorrência do problema. Tentar manter o corpo  em equilíbrio, com hidratação intensa e aumentar a ingestão de sal, desde que não haja contraindicação, podem ser também muito eficazes.

O exercício físico pode ser útil com fortalecimento muscular, para melhorar a circulação sanguínea, e naqueles pacientes que apresentam pródromos ou sintomas de alerta pela ocorrência do quadro, como calor, tonturas e náuseas, as manobras de contração muscular, puxando as mãos com contração dos bíceps ou movimentos contraindo as panturrilhas podem ser úteis para aumentar a pressão arterial e abortar a resposta vasovagal. Os pacientes que descobriram o problema recentemente e ainda estão se adaptando aos sintomas, quando se sentem mal, antes da perda da consciência, devem se proteger sentando no chão para evitar queda e trauma. Quando as ações não funcionam, podem ser indicados outros tipos de tratamento.

FONTE: Jornal da USP

Preconceito é um problema em casos de câncer de mama na população trans

O câncer de mama é o tipo da doença que mais acomete as mulheres no mundo, presente tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer. A instituição ainda mostra que a doença ocupa a primeira posição em mortalidade por câncer entre as mulheres no Brasil. Diante dessa gravidade, a campanha de conscientização acerca dos cuidados necessários para um diagnóstico precoce recebe expressiva atenção durante o mês de outubro, em que se recomendam o autoteste e os exames para idades determinadas.

No entanto, ainda há uma falta de reflexão acerca dos perigos do câncer de mama voltados à população não cisgênero, ou seja, aquela que se identifica com o sexo com o qual nasceu. Homens trans, por exemplo, também apresentam chances de desenvolver câncer de mama, mesmo após a mastectomia, e precisam tomar os cuidados necessários, como autoteste, mamografia e exames rotineiros. Além dessa reflexão, Ana Amorim, professora do Programa de Atenção Primária à Saúde da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e presidente da Associação Brasileira Profissional para Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo (Abrasitti), aponta que a própria negligência e a dificuldade no acesso aos serviços de saúde por essa população também fazem parte da conscientização sobre o tema.

Barreiras do preconceito 

A própria exclusão social da população não cisgênero, principalmente das pessoas trans, atinge uma série de direitos essenciais, como o acesso à saúde. A professora destaca que essas barreiras não impactam apenas os diagnósticos precoces a partir de exames preventivos, como também afetam a manutenção básica da saúde. “As pessoas têm sintomas e elas tendem a demorar mais para buscar serviços de saúde por conta dessas barreiras sociais que são colocadas para as pessoas trans de uma maneira mais geral”, afirma.

As inúmeras barreiras a essa população se estabelecem no Brasil – país que mais mata pessoas trans no mundo desde 2008, de acordo com os relatórios Trans Murder Monitoring (TMM) da organização Transgender Europe (TGEU). José Roberto Filassi, professor da Faculdade de Medicina da USP e chefe do Setor de Mastologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, chama a atenção para a relação entre a transfobia e a falta de discussão sobre os perigos do câncer de mama nessa população: “Tendo em vista que o Brasil é o campeão mundial de assassinatos de pessoas trans e a expectativa de vida dessa população é de 35 anos, por isso, talvez, o câncer de mama não chame atenção, porque a preocupação começa a aparecer, com maiores chances, nas mulheres após os 40 anos”.

Além da violenta realidade enfrentada por essa parcela, Ana Amorim também alerta sobre as transfobias institucionalizadas nos serviços de saúde, em que se reproduzem negligência e desrespeito aos direitos das pessoas trans. A falta da opção de nome social em prontuários eletrônicos e a restrição de alguns exames de acordo com o sexo de registro da pessoa são exemplos muito comuns no serviço público, segundo a professora.

Essa violência e preconceito, mesmo quando não produzidos pelos agentes de saúde, Ana explica, permanecem presentes nos ambientes dos serviços na forma, na medida em que são alvo de desrespeitos e até mesmo olhares discriminatórios. “Isso também afasta as pessoas trans do serviço de saúde, uma vez que elas não se sentem seguras para estar no serviço e se sentem ainda mais vulnerabilizadas”, aponta a especialista.

Impactos do preconceito

Uma das principais preocupações mencionadas por Ana Amorim trata do atendimento ginecológico, isto é, aquele voltado para questões relacionadas à vulva, vagina, útero, ovários e mamas. Situações de gestação, por exemplo, muitas vezes são enquadradas apenas como um atendimento direcionado à mulher e não a qualquer indivíduo que possua um útero.

“É importante enfatizarmos que identidade de gênero é completamente diferente de características corporais, assim, não é porque uma pessoa tem certo corpo que ela tem certa identidade de gênero”, explica Ana. Assim, essa conduta deve se estender para além da população transexual e englobar qualquer outra identidade de gênero, a fim de promover um serviço de saúde voltado para a necessidade corporal específica de cada um sem vinculá-lo a uma categoria identitária de gênero.

Essa desorganização no momento de atender à população não cisgênero, conforme a professora, pode impactar muito negativamente na saúde mental dos pacientes. “É muito frequente que pessoas trans relatem que os atendimentos em serviços de saúde são grandes motivadores de sintomas ansiosos e de questões que geram problemas emocionais”, pontua.

Formação profissional

O preparo dos profissionais de saúde para atender não só à população trans, mas qualquer outra parcela mais vulnerabilizada da sociedade, se mostra essencial para um atendimento mais efetivo, na visão dos especialistas. O professor Filassi ressalta que o despreparo profissional, ao lado da sensação de insegurança dos pacientes, não será meramente solucionado por meio de decreto e um esforço de diversas frentes será fundamental.

Com tamanha agressão, o registro dessas ocorrências se faz necessário para um diagnóstico melhor do cenário e a possível elaboração de políticas públicas. A professora esclarece a dinâmica dos serviços de saúde e sua importância: “Espero que  as pessoas tenham acesso às informações, que reconheçam os seus direitos e saibam que as ouvidorias nos serviços de saúde são importantes, não só para que haja uma penalidade, caso algo aconteça, mas, principalmente, para que os serviços possam identificar os pontos de fragilidade e melhorar as suas condições”. Além disso, “profissionais de saúde devem tentar estar mais atentos de como podemos oferecer um cuidado não excludente que possibilite que todas as identidades e as populações também se sintam confortáveis em entrar no serviço”, avalia Ana.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP