O exercício da sexualidade na terceira idade é pouco estudado e comentado

A sexualidade na terceira idade apresenta desafios relacionados ao próprio envelhecimento. No entanto, o principal deles está atrelado à invisibilidade do assunto. Falar sobre sexo na juventude já é difícil e vem acompanhado de uma série de tabus, mas falar de sexo depois dos 60 ganha nas desvantagens. E o que muita gente não sabe é que a sexualidade continua latente até mesmo na velhice, e não falar sobre ela pode prejudicar os idosos que queiram manter uma vida sexual saudável.

É muito comum ouvir e observar estereótipos sobre os mais velhos, como, por exemplo, a ideia de que não podem trabalhar ou que são debilitados e que, por isso, não podem assumir responsabilidades ou ter a rotina na mesma intensidade de quando eram jovens, incluindo vida sexual ativa. De acordo com Flávia Raquel Rosa Junqueira, ginecologista e obstetra com área de atuação em Sexologia, formada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, tanto homens quanto mulheres têm mudanças no corpo com o passar da idade e também na resposta sexual, mas o maior desafio é a invisibilidade. “O exercício da sexualidade nessa faixa etária ainda é muito pouco visto, estudado e falado. Temos uma crença coletiva de que é como se as pessoas mais velhas, as pessoas idosas não tivessem sexualidade, o que não é verdade”, declara.

Segundo Flávia, a sexualidade na terceira idade é a continuação dessa vivência praticada por toda a vida, associada com as modificações fisiológicas que a idade proporciona. “É uma fase da vida que precisamos realmente olhar com mais carinho e ter mais conhecimento. A sexualidade não deixa de existir, ainda que ela possa sofrer e passar por adaptações nesse período”, explica a especialista.

Mudanças fisiológicas

Assim como todo o corpo, os órgão sexuais também vão passar por transformações com o envelhecimento. De acordo com Flávia, no caso da mulher, essas alterações ocorrem na anatomia da região genital, da região pélvica, com a redução do tamanho do útero, a atrofia da mucosa do tecido vaginal e da vulva e o ressecamento dessa região. “Isso pode interferir na capacidade de lubrificação durante a relação sexual e pode levar, inclusive, à dor durante o ato sexual”, informa a médica.

No caso do homem, as alterações apontadas pela especialista estão relacionadas às dificuldades para alcançar a ereção, precisar de uma excitação mais demorada e a qualidade da ereção, que pode mudar com a diminuição da rigidez do pênis. “A questão da ejaculação também. Pode-se ter uma menor percepção desse momento que a ejaculação vai acontecer e uma redução da força e do volume do líquido ejaculado”, acrescenta.

Além disso, Flávia também explica as mudanças do orgasmo. Para as mulheres, a sensibilidade diminui ao longo do tempo, fazendo com que o orgasmo leve mais tempo e precise de mais estímulo, podendo ser, inclusive, de menor intensidade comparado à mulher quando mais jovem.

Da mesma forma, o orgasmo masculino pode ter uma resposta mais lenta e de contração da musculatura menos intensa e menos duradoura. “Há também um aumento do período refratário, que é o período entre o homem ter uma ejaculação do orgasmo e conseguir novamente reiniciar o ciclo de resposta sexual, com a ereção e um novo ciclo de ejaculação e orgasmo”, define a ginecologista.

Hábitos

Como outros aspectos do dia a dia, a sexualidade é reflexo de hábitos de toda a vida. Ainda segundo a especialista, é importante ter esse olhar ao longo da história, de que a sexualidade é fruto da nossa saúde como um todo. “Nosso estilo de vida vai impactar diretamente o exercício da nossa sexualidade no envelhecimento. Aquelas preocupações sobre a importância de uma alimentação saudável, da prática de exercício físico regular, a importância de um sono de qualidade, um adequado gerenciamento do estresse e evitar hábitos como o alcoolismo, o tabagismo, que podem interferir diretamente na sexualidade, é muito importante.”

A ginecologista reforça ainda que o envelhecimento é uma etapa da vida pela qual todos esperam passar e a importância de tratar a vida sexual nesse processo como algo natural e com carinho, até porque a sexualidade se mantém ainda que sem o mesmo desempenho sexual da juventude. “Um encontro sexual vai muito além da penetração. É reduzir demais acharmos que a sexualidade às vezes vai ser só essa questão em si. Essa expressão da sexualidade pode se manter ativa até o final da vida, assim como a satisfação sexual, independentemente das adaptações que eventualmente o envelhecimento possa trazer”, finaliza.

*Estagiária sob supervisão de Ferraz Junior

FONTE: Jornal da USP

“Solidão não é, necessariamente, sinal de sofrimento”

Um levantamento realizado pela associação Meta-Gallup mostrou que quase 1/4 das pessoas ao redor do mundo sentem solidão. A pesquisa foi conduzida em 142 países e não consultou a China – segundo país mais populoso do globo, o que poderia evidenciar um número ainda mais elevado. Quando perguntados o quão sozinhos os entrevistados geralmente se sentiam, 24% se classificaram como “muito”, 27% como “um pouco” e 49% como “nem um pouco”.

Os resultados mostraram que as taxas mais baixas de solidão foram relatadas por pessoas acima de 65 anos (17%), enquanto as taxas mais altas foram reportadas por jovens adultos, faixa etária que engloba dos 19 aos 29 anos (25%). Antônio de Pádua Serafim, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP, explica que a elevada porcentagem de jovens adultos que se sentem sozinhos pode ser explicada pelo processo de desenvolvimento biológico vivenciado por esse grupo.

“São aquelas pessoas que estão em um período de identificação, de definição, de transição, de buscas, de consolidação pessoal e profissional, muitas vezes acadêmica, e até relações interpessoais”, exemplifica o professor. Além disso, são indivíduos que planejam perspectivas de projeções futuras, e esse momento de transição pode gerar inseguranças.

Serafim pontua que existem evidências que mostram que, atualmente, parte da população mais jovem possui poucas habilidades nas interações sociais. “São pessoas com a configuração de mais insegurança e mais dificuldade de interagir, de se sentir confortável e mais confiante”, completa. Atualmente, para o professor, é como se houvesse um nível de exigência e aprovação elevados, o que pode gerar inseguranças e provocar um isolamento.

O que é solidão? 

De acordo com o professor, ao estudar o comportamento humano, pressupõe-se que existem relações de troca entre as pessoas. Do ponto de vista da psicologia, a solidão configura um comportamento em que o indivíduo está inserido em um contexto no qual não há uma relação ativa – presencial ou a distância – de interações interpessoais.

Além disso, a solidão pode acontecer através de um processo natural, em função da localização, como também pode ser uma escolha. “Solidão não é necessariamente sinal de sofrimento, mas você pode ter a solidão fruto da exclusão do ambiente, ou da própria autoexclusão – quando a pessoa se coloca nesse posicionamento”, explica Serafim.

Vivian Loietes de Oliveira Prado, pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP, define a solidão – dentro de uma perspectiva psicológica – como uma resposta emocional sentida quando existe uma diferença entre a qualidade das relações obtidas e a qualidade que se deseja obter. “Em outras palavras, poderíamos pensar em solidão como uma indicadora de parâmetros insuficientes. Então, a solidão pode sinalizar a necessidade de formar conexões mais significativas e mais duradouras”, exemplifica.

De acordo com Vivian, os seres humanos são essencialmente sociais, o que cria uma necessidade inata de pertencimento e de se relacionar para estabelecer conexões – que acontecem através das interações. Pessoas que apresentam dificuldades de formar ou manter relações interpessoais satisfatórias, segundo a pesquisadora, podem se sentir mais propensas a vivenciarem a solidão, justamente por não terem suas necessidades psicológicas atendidas.

Perigos da solidão 

Segundo Serafim, a percepção do “estar só” gera um processo de análise cognitiva dessa condição – em que o indivíduo pode pensar, por exemplo, “por que estou sozinho?”, “não agrado ninguém?”, “não sou interessante?”, “não me sinto competente para realizar determinadas ações”, “acredito que tenho características que não serão aceitas por grupos sociais”. Esse fluxo de pensamento configura uma série de respostas emocionais que podem gerar conclusões negativas e, consequentemente, um conjunto de fatores negativos, como rebaixamento da autoestima e confiança.

O professor acredita que esse processo danifica a configuração de identidade do indivíduo e abre espaço para alterações no humor – classificadas por Serafim como os principais problemas psicológicos causados pela solidão. “Essas pessoas começam a se sentir cada vez mais desprestigiadas, desvalorizadas, e isso culmina com a redução do humor, surgindo a questão da depressão. Nesses aspectos, podem surgir outras comorbidades, como o uso de álcool, o uso de medicações excessivas para lidar com essa sensação, além de problemas de sono e problemas alimentares”, aponta.

Os altos índices de pessoas que se sentem sozinhas – evidenciados pela pesquisa conduzida pela associação Meta-Gallup – são motivo de preocupação e merecem atenção. “Quando você usa o próprio termo ‘1/4 da população se sente só’, está dizendo que ela se percebe sozinha, isso não está dizendo que elas estão bem sozinhas. Quando eu digo que ‘me sinto só’, estou dizendo, em outras palavras, que eu não tenho pessoas e que eu gostaria de estar próximo”, explica o professor. Dessa forma, é preciso entender quais são os fatores e condições que estão provocando esse sentimento nas pessoas.

Entretanto, a questão do “viver sozinho”, para Serafim, depende da configuração psíquica de cada um. Em alguns casos, pessoas apresentam formas de viver e estabelecer relações com elas mesmas, em que não depositam ou não dependem de troca com outras pessoas para nutrir a imagem de suficiência e de se bastarem. Dessa forma, “o estar sozinho” não indica, necessariamente, alguma problemática.

Medidas 

Em 2018, o governo do Reino Unido anunciou a criação de um ministério para tratar a solidão e suas possíveis consequências. Uma pesquisa, conduzida em 2017, que motivou a criação do órgão, mostrou que 9 milhões de britânicos sentiam-se sozinhos com certa frequência. Para Vivian, os impactos causados pela solidão na saúde emocional precisam ser pensados coletivamente, por meio da promoção de programas que visem à diminuição da solidão como uma questão dentro da saúde pública.

A pesquisadora acredita que a solidão também precisa ser pensada individualmente, e que o entendimento desse sentimento é importante para conseguir gerenciá-lo de forma mais saudável. “Para isso, você pode, por exemplo, investir melhor na sua rede de apoio e entender o que pode ser feito e oferecido para as pessoas que estão à sua volta. É através da intimidade e companheirismo que se criam conexões fortes e duradouras e, através disso, a gente alcança situações do dia a dia onde você pode se envolver mais, mostrando e recebendo um suporte mútuo recíproco”, exemplifica.

Vivian ainda ressalta a importância de aprender a viver melhor a solitude – definida por ela como uma capacidade pessoal de se estar sozinho e conseguir sustentar o próprio selfie, sempre com o objetivo de autoconhecimento, de saber reconhecer melhor os próprios sentimentos, as vontades, e fortalecer os aspectos da identidade. “E, se for preciso, busque um bom profissional de saúde mental que possa te ajudar e te guiar nessa busca de viver a solitude de uma forma saudável e te ajudar nessas habilidades de criar e manter relacionamentos saudáveis, de conexões que façam sentido, que atendam às suas necessidades afetivas, e que ao mesmo tempo te oferecem uma companhia qualificada”, explica.

Para Serafim, a criação de um órgão responsável apenas por propor ações, sem investigar profundamente o fenômeno, não ajuda a reduzir efetivamente a questão. “Por mais que se crie qualquer órgão, qualquer aspecto que vai pautar isso, desde que a base de atuação dele seja identificar os fatores de vulnerabilidade para que as pessoas se sintam só, aí eu entendo que é viável”, pontua.

De acordo com o professor, é normal que, em relações comportamentais, sejam criadas propostas sobre a demanda – muitas vezes intangíveis – sem entender efetivamente suas causas. Por isso, Serafim acredita que é preciso compreender o fenômeno em questão, entender o que mantém a condição analisada, para só depois se pensar em quais ações são mais efetivas para reduzir o cenário.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Os impactos da criação da pílula anticoncepcional na emancipação da mulher

Desde que o ser humano percebeu que a ejaculação intravaginal pode resultar em uma gravidez, existe uma preocupação em prevenir que ela aconteça. Desde a década de 1940, segundo Edson Ferreira, médico da Divisão de Ginecologia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), pesquisadores começaram a estudar maneiras de sintetizar hormônios em laboratórios – que antes eram extraídos de fontes animais.

De acordo com o especialista, Margaret Sanger, enfermeira norte-americana e criadora do termo “controle de natalidade”, foi responsável por persuadir Katharine McCormick, filantropa dos Estados Unidos, a realizar uma doação financeira aos laboratórios que fizeram pesquisas para a criação da primeira pílula anticoncepcional. Alguns anos depois, em 1960, a primeira pílula responsável pela regulação do ciclo menstrual passou a ser comercializada.

Contexto histórico 

A pílula anticoncepcional surgiu após a Segunda Guerra Mundial (1937-1945), que causou uma mudança profunda na economia mundial. Carmita Abdo, psiquiatra, professora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas, explica que esse cenário ajudou na efetiva inserção feminina no mercado de trabalho. “A mulher iniciou sua vida profissional mais efetivamente, em massa, a partir do momento em que só o homem não conseguia prover os gastos domésticos da situação pós-guerra de penúria e de muito desequilíbrio econômico-social”, aponta.

Na época, já existiam alguns métodos responsáveis por controlar a natalidade, mas nada tão efetivo quanto o efeito do anticoncepcional. A ciência, então, percebeu a necessidade de buscar uma solução mais resolutiva para que mulheres conseguissem realizar um planejamento familiar e assim trabalharem de forma mais regular – e não serem surpreendidas por gestações inesperadas. Dessa forma, Carmita explica que a necessidade de um trabalho externo à casa esteve acompanhada da necessidade de criação de um método anticoncepcional mais confortável, e não que a pílula ajudou as mulheres a trabalharem mais fora do lar.

Foi nesse momento também em que o sexo reprodutivo e o sexo erótico passaram a ser separados de forma definitiva. “Usava-se a pílula quando o sexo a ser feito era especialmente no sentido do prazer, do erotismo, de algo que não tivesse a finalidade de reprodução”, pontua a psiquiatra. Ficou claro para as mulheres que a maternidade é algo que pode, ou não, ser desejado em um dado momento da vida. Além disso, com o advento da pílula, foi possível que o planejamento familiar – e o planejamento da vida da mulher para além da família – acontecesse de maneira mais efetiva.

Emancipação feminina? 

Existe um discurso que classifica a criação da pílula anticoncepcional como um marco da emancipação sexual feminina. Carmita aponta que esse processo, à primeira vista, não pareceu ser pensado propositalmente. A criação desse método contraceptivo aconteceu no momento em que as mulheres precisavam sair para trabalhar. “Ela acabou achando interessante essa emancipação, não deixou passar essa oportunidade, mas a pílula veio em consequência de uma necessidade dela não ficar mais só com o trabalho doméstico”, exemplifica.

É nesse cenário em que a dupla jornada de trabalho é criada. A psiquiatra explica que, com a criação da pílula anticoncepcional, e quando as mulheres começaram a trabalhar, não necessariamente elas deixaram de exercer outras jornadas; existe uma composição de tarefas que pode chegar a ser até uma “tripla jornada”, que configura os cuidados com a casa, o trabalho e cuidados com a prole.

Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que, já no ano de sua criação, a pílula anticoncepcional não era recomendada pelas mulheres participantes de movimentos feministas, que alegavam um excesso de hormônios na composição do contraceptivo.

Além disso, outro ponto considerado pela professora diz respeito ao poder masculino na tomada de decisões. Há uma relação direta entre as concepções políticas e demográficas; isto é, as sociedades são influenciadas pela teoria malthusiana, que propõe que existe um crescimento exacerbado da população e um desequilíbrio dos bens disponíveis para alimentar essa população.

Na tentativa de reverter esse cenário, criam-se mecanismos voltados para o controle populacional. “Por exemplo, no Brasil, foi criada a Bemfam (Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil), que funcionou bastante e que difundiu o controle populacional e a distribuição de pílulas sem o devido acompanhamento do uso no corpo da mulher”, explica.

A pílula anticoncepcional na atualidade 

Atualmente a tecnologia das pílulas anticoncepcionais mudou e os motivos para sua utilização também. Ferreira explica que, quando um indivíduo apresenta interesse em implementar algum método contraceptivo é recomendado que um profissional da saúde converse com o paciente para saber qual seu objetivo, qual a duração do uso dos métodos, se as pessoas apresentam acne, períodos de TPM, e histórico familiar de doença, por exemplo. Dessa forma, os médicos conseguem determinar tratamentos contraceptivos mais adequados para cada caso particular.

Na medicina, não existem práticas sem risco de eventos adversos. As decisões tomadas pelos médicos, segundo Ferreira, levam em consideração a alternativa que oferecerá mais benefícios do que riscos, e com os métodos contraceptivos não é diferente. Existem anticoncepcionais que afetam o ciclo menstrual –  o que pode ser visto como efeito terapêutico por pessoas que desejam alterar o volume da menstruação, por exemplo –, que podem modificar a oleosidade facial, ou que, dependendo do médico e do quadro clínico apresentado pelo indivíduo podem aumentar as cólicas sentidas no período menstrual.

Ainda existem alguns eventos mais graves relacionados à utilização de contraceptivos – principalmente métodos “combinados”, aqueles que possuem estrogênio em sua composição –, como a trombose venosa profunda e embolia pulmonar. Ferreira ressalta que esses são casos extremamente raros na população geral e que são aumentados pelo uso de métodos que contêm estrogênio, mas esse é um aumento da ordem de dois a quatro casos a cada 10 mil pessoas/ano utilizando.

Entretanto, o médico elucida que a ampliação dos métodos anticoncepcionais permitiu que, nos últimos 20 anos, houvesse uma redução de 40% na mortalidade obstétrica e perinatal. “Quando a gente programa o momento de engravidar, quando a gente espaça uma gestação da outra, aumentando o intervalo entre os partos, estamos reduzindo a ocorrência de mortes de causa obstétrica e também de morte de recém-nascido, justamente porque pôde-se fazer um planejamento reprodutivo de maneira adequada”, exemplifica.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

O daltonismo não possui impacto significativo na vida profissional de seus portadores

Dependendo do monitor do computador, pessoas com visão normal enxergam o número 74. Muitos portadores do daltonismo enxergam na figura o número 21 e indivíduos com cegueira das cores não enxergam nenhum número – Arte sobre imagem Shinobu Ishihara /Wikipedia/Domínio público

Daltonismo — discromatopsia ou discromopsia em termos científicos — é um distúrbio da visão que provoca no indivíduo afetado uma dificuldade na percepção das cores. É uma condição genética, ligada ao cromossomo X, que influi para que ambos os pais possam transmitir a condição para o filho, e estática, isto é, não apresenta piora no quadro de saúde da pessoa que a possui.

Condição genética

A visão das cores está atribuída ao segmento do cromossomo X; dessa forma, indivíduos que possuem alteração nesse fragmento podem adquirir uma modificação congênita nessa percepção colorida. Nesse sentido, por conta da relação com o cromossomo X, as pessoas do sexo masculino possuem maior número de casos positivos para a condição, visto que são indivíduos XY, enquanto as mulheres são XX.

“As mulheres, indivíduos que possuem dois cromossomos X, em geral são carregadoras de genes alterados para visão de cores, mas, como elas possuem esse segundo cromossomo X, não manifestam a doença. Já os homens, que não recebem o segmento no cromossomo Y, apresentam maior incidência dessa alteração”, explica Renata Moreto, chefe do Departamento de Neuroftalmologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da Universidade de São Paulo, que estima que a incidência no sexo masculino seja em torno de 8% no mundo e de apenas 0,5% para o sexo feminino.

De acordo com a médica, o diagnóstico começa a ser realizado enquanto o indivíduo ainda é criança e apresenta dificuldade para nomeação das cores, mas no início isso pode passar despercebido. Após algum tempo, os responsáveis costumam observar a complicação daquela condição e, para comprovar a diagnose, levam-na ao consultório oftalmológico.

No local, o diagnóstico é baseado em testes de visão de cores, sendo o Teste de Ishihara o mais utilizado, o qual consiste na apresentação de placas com números desenhados, de forma não definida e com certo contraste de cores. A partir disso, existe um gabarito, no qual se verifica se o paciente está pontuando de forma correta e, com esse dado, aponta-se a dificuldade visual que possui.

A especialista desenvolve formas de mitigar o problema e diz que não existem tratamentos ou curas para o distúrbio: “Temos os óculos, que tendem a promover uma melhor visualização das cores que já conseguem enxergar e aumenta o contraste, ou diminui, na intensidade de luz que possuem dificuldade, de forma a produzir uma pista do que está vendo e, assim, vai se conseguir nomear um número maior de cores. Os filtros medicinais promovem a diminuição no Efeito Glare, a entrada de luz e aumento do ofuscamento visual nesses pacientes”.

Percepção das cores

As funções visuais são divididas em categorias que definem diferentes aspectos da visão humana: acuidade visual, relacionada à clareza da visão; sensibilidade ao contraste, capacidade de reconhecer tons de cores diferentes; campo visual, campo de visão periférico; estereopsia, visão em terceira dimensão; e visão de cores.

“Os mamíferos que possuem origem placentária, como, por exemplo, os cães, conseguem enxergar apenas duas cores — são dicromatas; já os primatas, evolutivamente, ganharam um gene a mais relacionado à visão de cores e, portanto, são tricromatas, conseguem ter uma percepção do ambiente à sua volta em cores, visto que possuem três genes para processar três tipos de pigmentos”, explica Renata.

Os cones, células correspondentes à visão mais acurada do indivíduo, de forma geral, são divididos em três: azul, vermelho e verde. Apesar de ser possível identificar apenas esses três comprimentos de onda, eles são ativados em diferentes intensidades de luz e isso proporciona que as cores se misturem para produzir, a partir da ativação de porcentagem específicas de cada cone, cores diferentes.

A percepção das cores é iniciada na retina e o processamento visual termina no cérebro, região posterior onde se localiza o lobo occipital, responsável por realizar a interpretação dos espectros. Nesse sentido, o daltônico possui uma alteração que concebe um pigmento a menos ao indivíduo.

Tipos

A mais comum dos diferentes tipos de daltonismo é a protanomalia, condição em que a pessoa tem dificuldade para enxergar cores relacionadas ao vermelho, porém, ainda consegue identificar alguma intensidade de luz nesse espectro. Quando o defeito é total, ou seja, sem nenhum pigmento nos cones vermelhos, é chamado de protanopia — o indivíduo é cego para a cor vermelha.

Outro tipo é a deuteranomalia, quando a condição está ligada a problemas na visualização de cores verdes, e deuteranopia, no caso da ausência de cones dessa cor. A tritanomalia, terceira categoria da doença e a mais rara, ocorre quando o indivíduo possui dificuldades para enxergar o espectro do azul; se ele for cego para o pigmento, tritanopia.

“Na última condição, há uma ausência total dos pigmentos nos cones, essa situação é chamada de acromatopsia, isto é, esse indivíduo é cego para todas as cores. Então, o acromata pode apresentar uma dificuldade na leitura, com luz alta, nistagmo e fotopsia.” A médica complementa que esse é um quadro considerado patológico e, dessa maneira, requer que haja uma maior atenção a esse paciente do que ao daltônico.

Segundo Renata, os indivíduos afetados pelo daltonismo não possuem impactos no seu desenvolvimento cognitivo, ou seja, não há influência na vida acadêmica nem na profissional. No entanto, eles não são capazes de atuar em algumas áreas específicas, por conta da dificuldade na nomeação de cores: carreira militar, piloto de avião e eletricista, por exemplo.

“Essas pessoas não apresentam dificuldade na leitura e não têm quaisquer outras alterações nos cinco componentes da visão. Então, elas têm boa percepção de campo visual, sensibilidade ao contraste e, também, visão em terceira dimensão”, finaliza.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

O racismo é uma presença real na medicina brasileira e mundial

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em conjunto com o Instituto Çarê, apontou que, entre os anos de 2010 e 2021, as pessoas negras foram as que mais sofreram algum tipo de racismo e incidentes durante procedimentos médicos. Esses incidentes são caracterizados como condições hospitalares adquiridas de forma indesejável e não intencional durante a internação do paciente.

Com base no recorte étnico-racial, o Boletim Çarê-IEPS apontou a queda no número geral desses acontecimentos ao longo dos anos, o que pode indicar melhorias na gestão e prevenção ou, então, um aumento na subnotificação. Por conta de desigualdades nas taxas, é destacada a necessidade de maior atuação de políticas públicas promovidas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), a fim de tratar das disparidades e promover o acesso equitativo à saúde — independentemente de raça ou cor.

Mônica Mendes Gonçalves, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo, afirma que o racismo na medicina é realizado a partir de um conjunto de normas e regras burocráticas, que não dizem respeitar à raça, mas que incidem sobre esses grupos sociais em situação de vulnerabilidade.

O racismo velado

Segundo Mônica, a identificação de casos de racismo na medicina é realizada a partir da junção de duas ferramentas, uma quantitativa e outra qualitativa. A primeira se dá por meio do advento da epidemiologia — análise da distribuição e dos fatores determinantes das enfermidades — que com as estatísticas das populações, cruzadas com as estatísticas em saúde, permite entender quais indivíduos adoecem mais e os motivos para tal.

Por exemplo, durante a pandemia da covid-19 no Brasil, a taxa de letalidade da doença nos negros foi de 55%, enquanto nos brancos foi de 38%. Outro dado que evidencia esse cenário é o que indica que o risco de uma pessoa negra apresentar quadro de depressão no País é praticamente o dobro de uma pessoa branca.

Já as produções qualitativas, desenvolve a doutoranda, são um conjunto de ferramentas e de narrativas que investigam os itinerários em saúde — o caminho percorrido pelo indivíduo durante o tratamento, desde a identificação da enfermidade. “Quando soma-se esse conjunto de ferramentas e de evidências, que vem desses dois tipos de pesquisas, tem-se muitas evidências que mostram que o racismo é um dos determinantes primordiais da saúde das populações, não só no Brasil, mas no mundo todo”, discorre.

Na opinião dela, o erro médico é um evento racial e a pessoa submetida a isso tem dificuldade em conseguir argumentar o contrário. Ela diz que o sujeito pobre, da periferia, que não possui direitos trabalhistas, costuma ser atendido por profissionais que não esclarecem a sua condição clínica e é o racismo que determina essa realidade.

A médica utiliza, como exemplo, um caso de seu doutorado, sobre um jovem da zona norte de São Paulo, que teve seus dedos amputados por conta de um acidente no local de trabalho: “O rapaz vai para um hospital, depois de uma hora o médico diz que não pode fazer nada, porque não tem raio X. Vai para outro, em que ocorre a mesma coisa de não ter o aparelho. Por fim, ele vai para um terceiro, em que aí ele é acolhido e fazem pela primeira vez um curativo nele”. No entanto, ela complementa que, neste último hospital, havia pessoas esperando por cirurgias a meses e, diante desse cenário, o jovem fugiu.

A especialista ainda comenta sobre relatos que apontam que pessoas negras não conseguem mobilizar cuidados na saúde da mesma forma que as brancas conseguem. Ela discorre sobre pesquisas que evidenciam o cenário em que, ao realizar um diagnóstico psiquiátrico de um indivíduo, de modo geral o negro é dirigido para um serviço substitutivo de atenção à saúde mental e, para o não negro, apenas são receitados medicamentos – mesmo que possuam o mesmo diagnóstico.

Mudanças no paradigma

“Acho que é correto dizer que uma das principais vias a partir da quais as políticas raciais se estruturam na saúde é a omissão.” Mônica explica que isso ocorre pelo fato de não existir um olhar privilegiado às populações periféricas e vulneráveis nos processos de distribuição de saúde. Ela cita o maior investimento na atenção hospitalar em detrimento da atenção básica, que propicia a precarização desse serviço no qual a maior parte dos indivíduos pobres possui acesso.

Segundo a doutoranda, é uma burocracia estabelecida que inviabiliza que a maioria dos trabalhadores pretos e pobres tenha acesso à saúde. Isso se dá desde o trato interpessoal até os arranjos institucionais — horário de funcionamento dos serviços, trâmite para realização de exames, arranjos políticos, localização de pronto-socorro, presença de maquinário, tudo isso é em benefício da população branca elitizada.

“O que significa que 80% dos transplantados no Brasil sejam homens brancos? Contrário ao fato de que, por exemplo, transplante de coração ocorre, basicamente, só nesses indivíduos, mas as pessoas que mais sofrem de doenças do coração são os homens negros”, questiona a médica.

Na visão de Mônica, para mudar o racismo na saúde é necessário mudar todas as esferas sociais em todo o mundo, visto que, assim como no Brasil, essas condições também são identificadas nos Estados Unidos, África do Sul, na América Latina e em outros continentes. Além disso, outras populações, como os povos originários, também estão presentes nessa desigualdade racial, inserida na educação e no mercado de trabalho, igualmente.

De acordo com ela, deve ser implementado um conjunto de políticas públicas que direcione saúde para essas populações e pense a sua lógica a partir dos territórios vulnerabilizados. No Brasil, nas regiões Norte e Nordeste, menos de 40% da sociedade possui saneamento básico — item necessário para a qualidade de vida de um indivíduo.

“Se a gente investe em um hospital de verdade, não em um hospital enorme que por dentro não tem nada, e coloca equipamento dentro desse local, essa população negra consegue ser assistida”, garante a doutoranda, que ressalta que o racismo tem o caráter de englobar um aglomerado de setores, portanto, as ações devem ser articuladas; “por exemplo, a saúde não funciona sem educação”.

Aliança estrutural

O racismo institucional, de acordo com a especialista, funciona a partir da aliança entre a população branca, na qual o monopólio de poder ocupa todas as instâncias sociais — um pacto social coletivo – para exclusão dos negros. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina apontou que somente 3% dos médicos no Brasil são negros. “Vão sendo instituídos para que isso funcione como mecanismo de exclusão, porque, se um deles começa a falhar, a arquitetura toda se abala. Então, não é tão desimportante assim que esses profissionais sejam brancos e muito racistas”, afirma.

A médica utiliza o termo “buraco negro” ao se referir a casos nos quais o indivíduo, por conta dos trâmites que não são explicados a ele, perdura por determinado tempo estagnado no tratamento e muitas vezes não consegue realizar o exame que lhe é necessário. Diante disso, a pessoa desiste do procedimento e adoece cada vez mais.

“Do ponto de vista da comprovação desse fenômeno, isso já está absolutamente confirmado e ratificado. Se tiver um mínimo conhecimento de crença nas perspectivas científicas e estiver minimamente atento ao mundo, já tem isso confirmado, não nos faltam dados política, estatística e cientificamente fundamentados para entender”, desenvolve Mônica.

Por fim, ela disserta que o racismo está sendo construído, fomentado e rearticulado há cinco séculos, por meio do conjunto de tecnologias sociais implementadas em diferentes lugares do mundo, com o objetivo de subordinar e dominar as populações negras: “A gente deve pensar nisso como uma transformação global, que precisa levar tempo e precisa de muita ação política, radical e incansável direcionada para isso”.

*Estagiário sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Inteligência artificial para jovens com o vírus HIV

A tecnologia de IA é produto de uma parceria entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids). A ferramenta já está disponível no WhatsApp com o objetivo de promover um espaço confiável e sigiloso para oferecer desde orientações sobre o início do tratamento até o acolhimento psicossocial. Giovanni Cerri, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), avalia que o uso da tecnologia pode auxiliar na promoção da saúde para a sociedade.

Atuação da Kefi

A tecnologia Kefi se estabelece em cenário de maior abandono entre os jovens do uso de preservativos nas relações sexuais, além de uma sociedade mais tecnológica. Em muitos dos casos, segundo o professor, os jovens não têm as informações adequadas sobre o tratamento e se afastam do convívio social, podendo vir a ter problemas psicológicos por medo da rejeição e preconceito.

Cerri acredita que, ao proporcionar informações, agir com empatia e tirar o estigma a ferramenta pode exemplificar uma forma benéfica do uso da IA na medicina. “Essas plataformas são muito úteis, porque podem fazer com que esse primeiro contato com o paciente seja um contato bem informativo e os dados recolhidos desse relacionamento possam ajudar na orientação deste e de outros pacientes”, destaca.

Tecnologia e saúde

O uso de inovações tecnológicas e a promoção da saúde é uma aliança de longa data que contribuiu com a maior expectativa e melhor qualidade de vida do ser humano. O professor menciona desde exemplos mais primordiais, como o surgimento do antibiótico, até os avanços mais recentes que favoreceram o diagnóstico precoce, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética.

“Sempre existe uma resistência à mudança, muitas vezes, as novas tecnologias não são bem compreendidas ou não são bem-aceitas pela sociedade”, considera. A desinformação inicial acerca dessa relação mútua pode impactar negativamente a sociedade e a promoção da saúde em geral.

Cerri defende que o uso da tecnologia não apresenta um papel de substituto do profissional médico, mas de auxiliar para maior precisão e eficiência. Algoritmos que transcrevem consultas para facilitar o trabalho burocrático de produzir prontuários médicos são exemplos do uso das inovações tecnológicas com ferramentas.

Tecnologia na pandemia 

“Durante a pandemia, houve uma aceleração da introdução da tecnologia, principalmente relacionada com a saúde digital, que permitiu muitas consultas realizadas a distância”, ressalta Cerri. Além da maior prática da saúde digital, o especialista também comenta sobre o uso de um algoritmo para agilizar o diagnóstico de covid-19, a partir da análise de tomografias computadorizadas.

A iniciativa RadVid-19 dizia respeito a um site para o qual eram enviadas as tomografias e o algoritmo criado diagnosticava a doença e sua extensão. Em um cenário inicial da pandemia, em que os médicos ainda não possuíam experiência para diagnosticar covid pulmonar e os exames demoravam cerca de dez dias, o algoritmo apontava o resultado e a extensão da doença com maior agilidade.

A tecnologia impactou diretamente o tratamento imediato dos casos pulmonares, fator determinante para a sobrevivência do paciente internado na UTI, de acordo com Cerri. “Esse foi um exemplo que vivenciamos durante a pandemia: a possibilidade de ter um algoritmo que dava respostas rápidas sobre o comprometimento pulmonar de covid e quanto eram esses pacientes”, afirma.

A questão ética se configura, na opinião de Cerri, no extenso processo de testagem e avaliação das tecnologias. Tendo em vista a capacidade limitada do sistema de saúde em absorver as inovações, é indispensável que seu custo-benefício e efetividade sejam comprovados. Para isso, o papel das agências reguladoras de saúde é de extrema importância a fim de garantir a saúde do cidadão. “Todo esse caminho da criação de uma nova tecnologia, o debate, a aceitação e a incorporação é um processo progressivo”, pontua o especialista.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Material usado em pacientes com queimaduras graves não melhora a qualidade de cicatrização

Ainda que possa ser útil em alguns cenários, ao ser avaliado em cirurgias de correção cicatricial de pacientes com queimaduras graves, o material não apresentou benefícios significativos

Em um esforço para melhorar a qualidade de vida dos pacientes com sequelas de queimaduras graves, um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP avaliou o uso de matrizes dérmicas na cicatrização. Conduzido por pesquisadores na Unidade de Queimados do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCFMRP), o estudo examinou como esses produtos poderiam beneficiar os pacientes e apontou que tais materiais não contribuem para melhorar a qualidade dessas cicatrizes após cirurgias de correção.

“As cicatrizes desses pacientes fazem com que eles tenham limitações de movimentação ou impossibilitam que eles façam alguma atividade do dia a dia, e até mesmo a parte estética pode incomodar”, diz Ivan Almeida, primeiro autor do estudo, que recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2023 na categoria de Clínica Cirúrgica. O tratamento convencional envolve cirurgias para liberar retrações cicatriciais, o que, por sua vez, cria novas feridas.

O enxerto de pele é frequentemente usado para reconstruir essas feridas, mas nem sempre oferece resultados ideais. Esse procedimento pode ser combinado com o uso de matrizes dérmicas, produto que gera uma derme artificial que serve como base para a aplicação do enxerto. “O nosso estudo objetivou avaliar produtos que poderiam fazer com que o paciente tivesse uma melhor qualidade de cicatrização, para ele ter uma melhor qualidade de vida após a cirurgia de correção cicatricial”, explica o pesquisador.

O estudo randomizado avaliou três marcas de matrizes de regeneração dérmica em cicatrizes, de diferentes partes do corpo dos pacientes, em comparação com o grupo controle, que utilizou apenas enxerto de pele. Os pesquisadores mediram a qualidade da cicatrização por meio de avaliações subjetivas e objetivas.

Da análise subjetiva, um avaliador, através da Escala de Cicatrização de Vancouver — ferramenta da área da saúde que dá nota para as qualidades de pigmentação, vascularização, flexibilidade e alturas das cicatrizes —, mediu os resultados da cicatrização pós-procedimento. Das análises objetivas, foram usados aparelhos para avaliar capacidades biomecânicas, como a elasticidade (chamado cutômetro) e rigidez das cicatrizes (denominado durômetro).

“Para a nossa surpresa, não houve uma diferença estatisticamente significativa entre os pacientes que utilizaram as matrizes e os pacientes que usaram somente o enxerto de pele”, constata Almeida.

Esse resultado destaca a importância de abordar a eficácia de produtos médicos caros em um contexto de sistema de saúde pública, já que as matrizes dérmicas são oferecidas pelo SUS. O valor médio do material pelo sistema público é de R$ 50 por centímetro quadrado. Uma matriz de 5cm x 5cm, que tem 25cm quadrados de área, por exemplo, custa cerca de R$ 1.250. Na medicina privada, esse valor costuma ser maior. Embora esses produtos possam ser benéficos em alguns cenários, o estudo demonstrou que, para avaliar a qualidade da cicatrização nos parâmetros específicos citados, eles não apresentaram benefícios significativos.

 

Na imagem superior, análise feita com o durômetro e, na inferior, com cutômetro – Imagem: Cedida pelos pesquisadores

Descobertas como essa ajudam os médicos a tomar decisões informadas sobre o tratamento de pacientes com sequelas de queimaduras, considerando fatores como custo e eficácia. “Esses produtos são muito bem indicados e nos ajudam muito em casos complexos, mas o que mostramos nesse trabalho é que, especificamente para isso, não teve diferença.”

Pedro Coltro, professor da Divisão de Cirurgia Plástica da FMRP e orientador do trabalho, chama a atenção para a metodologia do estudo, que foi realizado com um grupo de pessoas em que cada uma apresentava a cicatriz em diferentes áreas do corpo. “É necessário avaliar quanto essas matrizes são benéficas de acordo com cada área, porque em algumas regiões verificamos uma resposta melhor, enquanto que em outras isso não foi identificado. Ao final, a comparação de todas as cicatrizes nos diferentes grupos não apresentou diferença significativa”, diz.

Apesar das variações entre os pacientes, o estudo ainda é forte e é o primeiro ensaio clínico que avaliou a qualidade de cicatrizes resultantes das cirurgias de correção de sequelas de queimaduras. “A vantagem é que este é um ensaio clínico randomizado e controlado, de alto nível de evidência. Nossos resultados não corroboram os benefícios que a indústria propaga como verdade, mas que para esse grupo específico de pacientes, nesses parâmetros analisados, não mostrou todas essas vantagens que a indústria coloca”, aponta Coltro.

O trabalho foi publicado em artigo disponível no Annals of Surgery.

Mais informações: e-mail psc@usp.br, com Pedro Coltro

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

O primeiro transplante de olho do mundo

Cirurgiões de Nova York realizaram o primeiro transplante de olho do mundo. Antes desse procedimento pioneiro, os médicos haviam se concentrado apenas em transplantes de córnea – a camada frontal transparente do olho. Mario Luiz Monteiro, médico do Departamento de Neuroftalmologia da Faculdade de Medicina da USP, explica o avanço realizado pelos médicos.

O procedimento 

O paciente sofreu um choque elétrico grave e o objetivo da equipe era preencher o olho e realizar uma reconstrução facial. De acordo com Monteiro, cirurgiões plásticos já realizavam transplantes faciais há algum tempo, até nas regiões subcutâneas. A vantagem desse procedimento é que a nutrição preexistente da face permite que os novos enxertos recebam uma irrigação.

Entretanto, o órgão da visão é mais complicado que a pele. “O olho, além de enxergar, precisa formar a imagem focada na retina e transmitir essa imagem para o cérebro. Mas ele precisa de irrigação para que esteja vivo. Ou seja, a retina precisa de sangue para se manter viva; é como o Sistema Nervoso Central, se fica sem sangue por alguns minutos, ela morre”, explica Monteiro. Além disso, o médico ainda comenta que a parte anterior do olho também precisa de sangue para que produza o humor aquoso, responsável por manter a tonicidade do órgão.

Monteiro ressalta que o transplante realizado não foi apenas do órgão ocular: os profissionais também transplantaram parte da face e os tecidos que envolvem o olho – a órbita. “Com isso, eles levaram todas as estruturas, e o que fizeram de inovador foi provar que conseguem manter o olho viável; ou seja, separaram uma artéria da têmpora do paciente e antes que encaixassem o enxerto no receptor, eles ligaram essa artéria temporal na artéria que nutre o olho”, aponta.

A artéria responsável pela nutrição do órgão, da retina e do nervo óptico está localizada no fundo da órbita e é chamada de artéria oftálmica. Quando o olho lesionado é retirado, perde-se a irrigação. Dessa forma, o médico explica que, no momento em que outro órgão fosse implantado, ele morreria. O pioneirismo do procedimento, portanto, está na novidade da ligação com a artéria da têmpora, o que manteve o olho nutrido e viável.

Segundo Monteiro, o olho transplantado funciona como uma prótese biológica, mas ainda não é capaz de formar e transmitir imagens. “A imagem é formada na retina e é transmitida pelo nervo óptico – que são fios que partem da retina e estão conectados ao cérebro”, discorre. No caso do paciente, esses fios não estão conectados, porque a tecnologia para realizar essa ligação ainda não está disponível.

Recuperação 

Existem outras linhas de pesquisa que buscam recuperar a visão de olhos cegos, como a inserção de eletrodos no córtex. “A parte posterior do cérebro é a parte que de fato enxerga. Então, você coloca os eletrodos, passa um fio no subcutâneo e coloca uma câmera, que se liga com o eletrodo debaixo da pele próximo à orelha. O estímulo visual que essa câmera capta vai direto para o eletrodo que está no cérebro”, exemplifica o médico. Esse procedimento, de acordo com Monteiro, diz respeito à resolução das questões motoras. Na parte visual, entretanto, a complexidade é imensa, por conta da quantidade de informações necessárias para produzir cores, contrastes e formas.

FONTE: Jornal da USP

Pacientes com doenças crônicas são desafio para saúde pública

O diagnóstico de duas ou mais doenças crônicas para uma mesma pessoa cresceu nos últimos 20 anos. O aumento dessa condição, conhecida como multimorbidade, acompanha o envelhecimento da população na cidade de São Paulo.

Em 2015, 42,2% da população paulistana com mais de 19 anos convivia com multimorbidade, de acordo com o levantamento do fisioterapeuta Ricardo Goes de Aguiar, doutor pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Em sua tese de doutorado ele apresenta estratégias para capacitar profissionais de saúde diante desses atendimentos.

São consideradas crônicas as condições de saúde de longa duração que geralmente progridem ao longo do tempo, como hipertensão, asma, artrite, hérnia de disco, depressão e outras. Por serem duradouras, requerem tratamento para controlar os sintomas e minimizar complicações.

Normalmente, as doenças crônicas são estudadas e tratadas isoladamente por especialistas. Porém, isso aumenta as chances de que a interação entre diferentes medicamentos provoque efeitos adversos.

“Apesar de esforços recentes na formação dos profissionais de saúde e em práticas mais integrais e humanizadas, os clínicos ainda trabalham com [foco em] condições específicas, historicamente. Com o envelhecimento da população, a tendência é que as pessoas acumulem doenças, e elas acabam sendo atendidas de forma fragmentada”, diz Ricardo de Aguiar ao Jornal da USP.

Nas unidades que adotam a Estratégia Saúde da Família, criada em 1994 e que se tornou prioritária na atenção primária do SUS em 2003, os profissionais podem indicar ao paciente uma consulta com os farmacêuticos das unidades básicas.

Em conversa com o Jornal da USP, a médica de família e comunidade Caroline do Nascimento, que atua em uma unidade básica no distrito do Jabaquara, zona Sul de São Paulo, conta que as equipes das unidades que adotam essa estratégia costumam se reunir para discutir os casos e compartilhar impressões de alguns pacientes específicos.

“Os farmacêuticos discutem o caso se identificarem alguma interação ou dose que pode ser prejudicial quando o paciente retira alguma medicação. Para pacientes com multimorbidade, isso acaba sendo rotineiro.”

No Inquérito de Saúde na Cidade de São Paulo (ISA Capital-SP) de 2015, cujos dados foram utilizados no estudo, foram feitas 3.184 entrevistas domiciliares aleatórias com pessoas com 20 anos ou mais.

Agentes Comunitários de Saúde na UBS Santo Estevão do bairro de Itaquera. As equipes multiprofissionais da Estratégia Saúde da Família discutem os casos e fazem a busca ativa dos pacientes – Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP

“O ISA Capital entrevista maiores de 12 anos, mas como os estudos demonstram que a prevalência de multimorbidade em crianças e adolescentes é baixa, optamos por trabalhar com a população adulta e idosa no nosso estudo”, justifica o pesquisador.

Foram apresentadas para autodeclaração dos entrevistados condições como diabete, câncer, AVC, colesterol elevado. Entre as doenças cardiovasculares, constavam hipertensão, dor no peito, varizes e arritmia cardíaca. Das doenças respiratórias, eram listadas, entre outras, asma, enfisema, bronquite e sinusite. Na área ortopédica, as alternativas eram artrite; artrose; osteoporose, tendinite, lesão por esforço repetitivo e problemas de coluna. No âmbito da saúde mental, apareciam ansiedade, depressão, síndrome do pânico, TOC e esquizofrenia.

O pesquisador defende uma abordagem que extrapole os fatores biológicos das doenças. “A ideia dos estudiosos da multimorbidade é ver o indivíduo como um todo, tentando fazer um atendimento que considere desde a anatomia e a fisiologia até os determinantes sociais no indivíduo.”

A multimorbidade atingiu 42,2% da amostra estudada, de acordo com o que foi autodeclarado dentre 22 condições apresentadas aos entrevistados. Entre os idosos, esse índice é ainda maior.

Em São Paulo, sete entre cada dez pessoas com 60 anos ou mais têm multimorbidade.

Além de ocorrer mais entre pessoas mais velhas, a condição também é mais comum entre o sexo feminino, explica Ricardo de Aguiar. “O homem tem mais resistência em procurar o serviço de saúde. Então pode ser uma explicação para o maior porcentual de multimorbidade encontrada entre as mulheres.”

Outros grupos que apresentaram maior prevalência de multimorbidade na cidade foram os com maior renda familiar, com pelo menos o ensino superior incompleto, com obesidade (avaliada pelo Índice de Massa Corporal), que faziam o uso de cinco ou mais medicamentos, com transtornos mentais comuns (como depressão e ansiedade), com maiores despesas com saúde e com convênio médico. “Os indivíduos que têm plano de saúde provavelmente tiveram mais acesso a consultas médicas e, por isso, receberam diagnóstico de mais doenças”, avalia o pesquisador.

Identificando padrões frequentes

Além da prevalência, o estudo utilizou um método estatístico — a análise de classe latente — para identificar padrões de multimorbidades semelhantes mais frequentes. Dos entrevistados no ISA Capital-SP com mais de 19 anos, 15,9% apresentavam combinações de doenças cardiovasculares, como a hipertensão; 12,8% tinham mais doenças respiratórias, e outros 12,8% tinham condições reumatológicas, ortopédicas e emocionais combinadas.

Para o autor do estudo, isso é importante porque são milhares de combinações possíveis entre as 22 condições de saúde investigadas. “O conhecimento de grupos de indivíduos com necessidades semelhantes pode favorecer a elaboração de diretrizes clínicas, considerando que ficaria inviável formular especificamente para cada uma das milhares de combinações possíveis de condições de saúde. Portanto, uma linha de pesquisa é tentar identificar esses padrões de multimorbidade.”

Na unidade de Caroline do Nascimento, a estratégia de cuidado em grupo é uma solução vantajosa, já que o tempo das consultas individuais precisa ser mais limitado para viabilizar o atendimento para o grande número de pacientes do bairro. “Nós temos o grupo de dor crônica e os grupos de práticas corporais. É uma estratégia também de convivência para o paciente com outras pessoas que têm condições semelhantes. Muitos deles ficam muito tempo em casa, sem ter uma atividade na rotina, principalmente idosos e aposentados, então acabam ficando mais isolados. Então a ida à unidade para fazer parte dos grupos é uma parte do cuidado muito importante.”

Como centro de formação e de oferta de serviços de saúde de excelência, o município de São Paulo pode estimular uma educação permanente com a elaboração de diretrizes clínicas para esses casos. Esses dados permitem pensar em diretrizes para mais de 40% da população da cidade, em vez das inúmeras possibilidades caso as doenças fossem trabalhadas em pares ou em trios.

De acordo com o pesquisador, é preciso ver o indivíduo como um todo e considerar as vivências e as expectativas com o tratamento.  As unidades de atenção básica interdisciplinares estão previstas no Sistema Único de Saúde (SUS).

“A legislação e a normatização permitiriam uma maior resolutividade dos problemas já existentes. A questão é se os profissionais estão chegando aos serviços preparados para atuar dessa forma interdisciplinar”

Atualmente, as Equipes Multiprofissionais da Atenção Básica (eMulti) envolvem, além de médicos, assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, arte-educadores, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Esses grupos levam em consideração as limitações da população mais velha e com multimorbidade, e integram diferentes terapias.

Caroline do Nascimento conta que esses profissionais contribuem muito para o cuidado desses pacientes. “Nós não pensamos nunca nesse cuidado centrado no médico. Sempre pensamos no trabalho em equipe.”

Esses diferentes profissionais dão suporte às unidades de atenção básica que adotam a Estratégia Saúde da Família. “A ideia é trabalhar com médicos generalistas e com equipes multiprofissionais, de forma interdisciplinar e com reuniões que discutam os casos”, explica Ricardo.

Essas equipes foram criadas pelo governo federal em 2008 como Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mas o financiamento foi interrompido em 2020, durante o governo Bolsonaro. Em maio de 2023, o serviço voltou com mais especialidades médicas e recebeu o novo nome de eMulti.

Segundo a médica, a grande vantagem na estratégia é estar próximo das pessoas. “Nós também temos esse vínculo com a população por meio das agentes comunitárias de saúde, que é uma função fundamental quando precisamos fazer busca ativa de pacientes que não estão vindo ou quando precisamos programar visitas domiciliares.”

Os dados da tese Multimorbidade no município de São Paulo (SP): prevalência, padrões e fatores associados também foram discutidos em artigo na revista Ciência & Saúde Coletiva.

Mais informações: e-mail ricardo.aguiar@unifal-mg.edu.br, com Ricardo Goes de Aguiar

*Estagiário sob orientação de Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Estresse na adolescência predispõe a doenças psiquiátricas na fase adulta

O estresse excessivo na adolescência pode causar alterações no perfil de genes expressos no cérebro, especialmente aqueles ligados às funções bioenergéticas. Tais mudanças afetam o processo de respiração celular e isso estaria associado a problemas comportamentais e transtornos psiquiátricos na idade adulta. A conclusão é de um estudo com ratos feito por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Os resultados foram publicados recentemente na revista Translational Psychiatry.

Não é novidade que a adolescência é marcada por uma série de mudanças no corpo e no comportamento. Nesse período, o cérebro passa por alterações estruturais e funcionais, moldadas tanto por fatores neurobiológicos quanto sociais. “De fato, assim como em humanos, o cérebro do rato adolescente é extremamente plástico, e tal plasticidade é observada tanto em nível molecular quanto comportamental. Mudanças em perfis de expressão de genes específicos, em diferentes áreas do cérebro, levam a alterações de conectividade celular, o que se amplifica sistemicamente, levando a alterações de comportamento persistentes na idade adulta, que são correlacionadas a transtornos psiquiátricos”, explica Thamyris Santos-Silva, então doutoranda em farmacologia pela FMRP e primeira autora do trabalho.

“A adolescência representa um período crítico para a plasticidade cerebral dependente dos comportamentos sociais”, complementa Felipe Villela Gomes, professor do Departamento de Farmacologia da FMRP e coordenador do estudo. “Nessa fase, aumenta a suscetibilidade a fatores socioambientais adversos, como traumas, insultos e maus-tratos, e as experiências sociais podem influenciar a vulnerabilidade e a resiliência ao estresse.”

O córtex pré-frontal é uma região cerebral extremamente suscetível a estressores durante a adolescência. É ela que, quando madura, permite um controle cognitivo maior sobre as emoções, como pode ser observado na idade adulta. Em ratos estressados na adolescência, essa região apresentou menores níveis de expressão de genes-chave na função respiratória das mitocôndrias. Estas organelas são as principais produtoras de energia química para o funcionamento dos neurônios, as células fundamentais do cérebro. Isso reforça o envolvimento das mitocôndrias como reguladoras de comportamentos sociais, entre eles a resposta ao estresse.

A pesquisa, apoiada pela Fapesp, analisou, em uma primeira etapa, as consequências comportamentais do estresse – ansiedade, sociabilidade e cognição – em ratos no final da adolescência. Para isso, os animais foram expostos a um protocolo de estresse, por dez dias consecutivos, coincidentes com um intenso período de plasticidade cerebral. Na sequência, os animais passaram por avaliações específicas, que mostraram prejuízos marcantes em todos os testes comportamentais.

“Observamos que, nessa fase da vida, os animais estressados apresentavam, de forma mais pronunciada, um perfil comportamental ruim, com ansiedade e diminuição na sociabilidade e na função cognitiva”, conta Gomes.

Para avaliar se essas variações se refletiam também na expressão gênica, amostras de RNA foram enviadas ao Laboratório de Genética Comportamental do Brain Mind Institute da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça), liderado pela professora e pesquisadora Carmen Sandi. Lá foi feito o sequenciamento de RNA mensageiro, que reflete o perfil de genes expressos nos cérebros analisados. Os dados foram analisados com ferramentas de bioinformática, etapa financiada pelo Programa Capes/USP- PrInt.

“Essa análise mostrou alterações nos genes do córtex pré-frontal de animais estressados – entre os dez principais genes afetados, vários foram associados a vias ligadas ao estresse oxidativo e à função mitocondrial, um componente celular fundamental para a produção de energia para o cérebro”, diz Gomes.

O trabalho envolveu ainda uma análise para avaliar o consumo de oxigênio mitocondrial pelo cérebro desses animais, que também se mostrou prejudicado pelo estresse.

“Temos agora, portanto, várias evidências que apontam a importância da função mitocondrial para esse perfil comportamental”, afirma Gomes.

Próximos passos

A ideia dos pesquisadores agora é analisar se, com a identificação desse perfil comportamental, é possível predizer a resposta de um indivíduo frente a um possível estressor e em que grau isso realmente levaria ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas.

“Outro caminho para avançar nos estudos seria centrar esforços nas alterações genéticas. Fazer testes para descobrir o que acontece quando ocorre diminuição ou melhora da expressão gênica. Isso poderia fornecer mais evidências sobre a relação dessas alterações com o estresse e até apontar formas de combatê-las”, sugere Gomes.

O artigo Transcriptomic analysis reveals mitochondrial pathways associated with distinct adolescent behavioral phenotypes and stress response pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41398-023-02648-3.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

* Julia Moióli, da Agência Fapesp.

FONTE: Jornal da USP