Pacientes com doenças crônicas são desafio para saúde pública

O diagnóstico de duas ou mais doenças crônicas para uma mesma pessoa cresceu nos últimos 20 anos. O aumento dessa condição, conhecida como multimorbidade, acompanha o envelhecimento da população na cidade de São Paulo.

Em 2015, 42,2% da população paulistana com mais de 19 anos convivia com multimorbidade, de acordo com o levantamento do fisioterapeuta Ricardo Goes de Aguiar, doutor pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Em sua tese de doutorado ele apresenta estratégias para capacitar profissionais de saúde diante desses atendimentos.

São consideradas crônicas as condições de saúde de longa duração que geralmente progridem ao longo do tempo, como hipertensão, asma, artrite, hérnia de disco, depressão e outras. Por serem duradouras, requerem tratamento para controlar os sintomas e minimizar complicações.

Normalmente, as doenças crônicas são estudadas e tratadas isoladamente por especialistas. Porém, isso aumenta as chances de que a interação entre diferentes medicamentos provoque efeitos adversos.

“Apesar de esforços recentes na formação dos profissionais de saúde e em práticas mais integrais e humanizadas, os clínicos ainda trabalham com [foco em] condições específicas, historicamente. Com o envelhecimento da população, a tendência é que as pessoas acumulem doenças, e elas acabam sendo atendidas de forma fragmentada”, diz Ricardo de Aguiar ao Jornal da USP.

Nas unidades que adotam a Estratégia Saúde da Família, criada em 1994 e que se tornou prioritária na atenção primária do SUS em 2003, os profissionais podem indicar ao paciente uma consulta com os farmacêuticos das unidades básicas.

Em conversa com o Jornal da USP, a médica de família e comunidade Caroline do Nascimento, que atua em uma unidade básica no distrito do Jabaquara, zona Sul de São Paulo, conta que as equipes das unidades que adotam essa estratégia costumam se reunir para discutir os casos e compartilhar impressões de alguns pacientes específicos.

“Os farmacêuticos discutem o caso se identificarem alguma interação ou dose que pode ser prejudicial quando o paciente retira alguma medicação. Para pacientes com multimorbidade, isso acaba sendo rotineiro.”

No Inquérito de Saúde na Cidade de São Paulo (ISA Capital-SP) de 2015, cujos dados foram utilizados no estudo, foram feitas 3.184 entrevistas domiciliares aleatórias com pessoas com 20 anos ou mais.

Agentes Comunitários de Saúde na UBS Santo Estevão do bairro de Itaquera. As equipes multiprofissionais da Estratégia Saúde da Família discutem os casos e fazem a busca ativa dos pacientes – Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP

“O ISA Capital entrevista maiores de 12 anos, mas como os estudos demonstram que a prevalência de multimorbidade em crianças e adolescentes é baixa, optamos por trabalhar com a população adulta e idosa no nosso estudo”, justifica o pesquisador.

Foram apresentadas para autodeclaração dos entrevistados condições como diabete, câncer, AVC, colesterol elevado. Entre as doenças cardiovasculares, constavam hipertensão, dor no peito, varizes e arritmia cardíaca. Das doenças respiratórias, eram listadas, entre outras, asma, enfisema, bronquite e sinusite. Na área ortopédica, as alternativas eram artrite; artrose; osteoporose, tendinite, lesão por esforço repetitivo e problemas de coluna. No âmbito da saúde mental, apareciam ansiedade, depressão, síndrome do pânico, TOC e esquizofrenia.

O pesquisador defende uma abordagem que extrapole os fatores biológicos das doenças. “A ideia dos estudiosos da multimorbidade é ver o indivíduo como um todo, tentando fazer um atendimento que considere desde a anatomia e a fisiologia até os determinantes sociais no indivíduo.”

A multimorbidade atingiu 42,2% da amostra estudada, de acordo com o que foi autodeclarado dentre 22 condições apresentadas aos entrevistados. Entre os idosos, esse índice é ainda maior.

Em São Paulo, sete entre cada dez pessoas com 60 anos ou mais têm multimorbidade.

Além de ocorrer mais entre pessoas mais velhas, a condição também é mais comum entre o sexo feminino, explica Ricardo de Aguiar. “O homem tem mais resistência em procurar o serviço de saúde. Então pode ser uma explicação para o maior porcentual de multimorbidade encontrada entre as mulheres.”

Outros grupos que apresentaram maior prevalência de multimorbidade na cidade foram os com maior renda familiar, com pelo menos o ensino superior incompleto, com obesidade (avaliada pelo Índice de Massa Corporal), que faziam o uso de cinco ou mais medicamentos, com transtornos mentais comuns (como depressão e ansiedade), com maiores despesas com saúde e com convênio médico. “Os indivíduos que têm plano de saúde provavelmente tiveram mais acesso a consultas médicas e, por isso, receberam diagnóstico de mais doenças”, avalia o pesquisador.

Identificando padrões frequentes

Além da prevalência, o estudo utilizou um método estatístico — a análise de classe latente — para identificar padrões de multimorbidades semelhantes mais frequentes. Dos entrevistados no ISA Capital-SP com mais de 19 anos, 15,9% apresentavam combinações de doenças cardiovasculares, como a hipertensão; 12,8% tinham mais doenças respiratórias, e outros 12,8% tinham condições reumatológicas, ortopédicas e emocionais combinadas.

Para o autor do estudo, isso é importante porque são milhares de combinações possíveis entre as 22 condições de saúde investigadas. “O conhecimento de grupos de indivíduos com necessidades semelhantes pode favorecer a elaboração de diretrizes clínicas, considerando que ficaria inviável formular especificamente para cada uma das milhares de combinações possíveis de condições de saúde. Portanto, uma linha de pesquisa é tentar identificar esses padrões de multimorbidade.”

Na unidade de Caroline do Nascimento, a estratégia de cuidado em grupo é uma solução vantajosa, já que o tempo das consultas individuais precisa ser mais limitado para viabilizar o atendimento para o grande número de pacientes do bairro. “Nós temos o grupo de dor crônica e os grupos de práticas corporais. É uma estratégia também de convivência para o paciente com outras pessoas que têm condições semelhantes. Muitos deles ficam muito tempo em casa, sem ter uma atividade na rotina, principalmente idosos e aposentados, então acabam ficando mais isolados. Então a ida à unidade para fazer parte dos grupos é uma parte do cuidado muito importante.”

Como centro de formação e de oferta de serviços de saúde de excelência, o município de São Paulo pode estimular uma educação permanente com a elaboração de diretrizes clínicas para esses casos. Esses dados permitem pensar em diretrizes para mais de 40% da população da cidade, em vez das inúmeras possibilidades caso as doenças fossem trabalhadas em pares ou em trios.

De acordo com o pesquisador, é preciso ver o indivíduo como um todo e considerar as vivências e as expectativas com o tratamento.  As unidades de atenção básica interdisciplinares estão previstas no Sistema Único de Saúde (SUS).

“A legislação e a normatização permitiriam uma maior resolutividade dos problemas já existentes. A questão é se os profissionais estão chegando aos serviços preparados para atuar dessa forma interdisciplinar”

Atualmente, as Equipes Multiprofissionais da Atenção Básica (eMulti) envolvem, além de médicos, assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, arte-educadores, nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Esses grupos levam em consideração as limitações da população mais velha e com multimorbidade, e integram diferentes terapias.

Caroline do Nascimento conta que esses profissionais contribuem muito para o cuidado desses pacientes. “Nós não pensamos nunca nesse cuidado centrado no médico. Sempre pensamos no trabalho em equipe.”

Esses diferentes profissionais dão suporte às unidades de atenção básica que adotam a Estratégia Saúde da Família. “A ideia é trabalhar com médicos generalistas e com equipes multiprofissionais, de forma interdisciplinar e com reuniões que discutam os casos”, explica Ricardo.

Essas equipes foram criadas pelo governo federal em 2008 como Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mas o financiamento foi interrompido em 2020, durante o governo Bolsonaro. Em maio de 2023, o serviço voltou com mais especialidades médicas e recebeu o novo nome de eMulti.

Segundo a médica, a grande vantagem na estratégia é estar próximo das pessoas. “Nós também temos esse vínculo com a população por meio das agentes comunitárias de saúde, que é uma função fundamental quando precisamos fazer busca ativa de pacientes que não estão vindo ou quando precisamos programar visitas domiciliares.”

Os dados da tese Multimorbidade no município de São Paulo (SP): prevalência, padrões e fatores associados também foram discutidos em artigo na revista Ciência & Saúde Coletiva.

Mais informações: e-mail ricardo.aguiar@unifal-mg.edu.br, com Ricardo Goes de Aguiar

*Estagiário sob orientação de Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Estresse na adolescência predispõe a doenças psiquiátricas na fase adulta

O estresse excessivo na adolescência pode causar alterações no perfil de genes expressos no cérebro, especialmente aqueles ligados às funções bioenergéticas. Tais mudanças afetam o processo de respiração celular e isso estaria associado a problemas comportamentais e transtornos psiquiátricos na idade adulta. A conclusão é de um estudo com ratos feito por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Os resultados foram publicados recentemente na revista Translational Psychiatry.

Não é novidade que a adolescência é marcada por uma série de mudanças no corpo e no comportamento. Nesse período, o cérebro passa por alterações estruturais e funcionais, moldadas tanto por fatores neurobiológicos quanto sociais. “De fato, assim como em humanos, o cérebro do rato adolescente é extremamente plástico, e tal plasticidade é observada tanto em nível molecular quanto comportamental. Mudanças em perfis de expressão de genes específicos, em diferentes áreas do cérebro, levam a alterações de conectividade celular, o que se amplifica sistemicamente, levando a alterações de comportamento persistentes na idade adulta, que são correlacionadas a transtornos psiquiátricos”, explica Thamyris Santos-Silva, então doutoranda em farmacologia pela FMRP e primeira autora do trabalho.

“A adolescência representa um período crítico para a plasticidade cerebral dependente dos comportamentos sociais”, complementa Felipe Villela Gomes, professor do Departamento de Farmacologia da FMRP e coordenador do estudo. “Nessa fase, aumenta a suscetibilidade a fatores socioambientais adversos, como traumas, insultos e maus-tratos, e as experiências sociais podem influenciar a vulnerabilidade e a resiliência ao estresse.”

O córtex pré-frontal é uma região cerebral extremamente suscetível a estressores durante a adolescência. É ela que, quando madura, permite um controle cognitivo maior sobre as emoções, como pode ser observado na idade adulta. Em ratos estressados na adolescência, essa região apresentou menores níveis de expressão de genes-chave na função respiratória das mitocôndrias. Estas organelas são as principais produtoras de energia química para o funcionamento dos neurônios, as células fundamentais do cérebro. Isso reforça o envolvimento das mitocôndrias como reguladoras de comportamentos sociais, entre eles a resposta ao estresse.

A pesquisa, apoiada pela Fapesp, analisou, em uma primeira etapa, as consequências comportamentais do estresse – ansiedade, sociabilidade e cognição – em ratos no final da adolescência. Para isso, os animais foram expostos a um protocolo de estresse, por dez dias consecutivos, coincidentes com um intenso período de plasticidade cerebral. Na sequência, os animais passaram por avaliações específicas, que mostraram prejuízos marcantes em todos os testes comportamentais.

“Observamos que, nessa fase da vida, os animais estressados apresentavam, de forma mais pronunciada, um perfil comportamental ruim, com ansiedade e diminuição na sociabilidade e na função cognitiva”, conta Gomes.

Para avaliar se essas variações se refletiam também na expressão gênica, amostras de RNA foram enviadas ao Laboratório de Genética Comportamental do Brain Mind Institute da Escola Politécnica Federal de Lausanne (Suíça), liderado pela professora e pesquisadora Carmen Sandi. Lá foi feito o sequenciamento de RNA mensageiro, que reflete o perfil de genes expressos nos cérebros analisados. Os dados foram analisados com ferramentas de bioinformática, etapa financiada pelo Programa Capes/USP- PrInt.

“Essa análise mostrou alterações nos genes do córtex pré-frontal de animais estressados – entre os dez principais genes afetados, vários foram associados a vias ligadas ao estresse oxidativo e à função mitocondrial, um componente celular fundamental para a produção de energia para o cérebro”, diz Gomes.

O trabalho envolveu ainda uma análise para avaliar o consumo de oxigênio mitocondrial pelo cérebro desses animais, que também se mostrou prejudicado pelo estresse.

“Temos agora, portanto, várias evidências que apontam a importância da função mitocondrial para esse perfil comportamental”, afirma Gomes.

Próximos passos

A ideia dos pesquisadores agora é analisar se, com a identificação desse perfil comportamental, é possível predizer a resposta de um indivíduo frente a um possível estressor e em que grau isso realmente levaria ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas.

“Outro caminho para avançar nos estudos seria centrar esforços nas alterações genéticas. Fazer testes para descobrir o que acontece quando ocorre diminuição ou melhora da expressão gênica. Isso poderia fornecer mais evidências sobre a relação dessas alterações com o estresse e até apontar formas de combatê-las”, sugere Gomes.

O artigo Transcriptomic analysis reveals mitochondrial pathways associated with distinct adolescent behavioral phenotypes and stress response pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41398-023-02648-3.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

* Julia Moióli, da Agência Fapesp.

FONTE: Jornal da USP

Prevenir e tratar inflamações com menos efeitos colaterais

“Aí! Acho que meu machucado inflamou.” É muito comum escutar que não se deve “cutucar” machucados, espinhas ou quaisquer outros ferimentos, pois irá inflamar.

A inflamação não é, necessariamente, uma coisa ruim. Ela é a reação do corpo contra infecções ou lesões para potencializar a recuperação. Porém, caso a defesa do corpo seja muito intensa e descontrolada, é possível levar até a morte.

Por isso, a patente Composto para a prevenção e/ou tratamento de inflamações foi desenvolvida. “A patente se refere a uma classe de compostos com potencial de atividade anti-inflamatória. Usando um método de triagem virtual, selecionamos alguns compostos com potencial de inibir uma enzima responsável pela inflamação, a mieloperoxidase“, explica Flávia Carla Meotti, professora do Instituto de Química da USP e uma das criadoras da patente.

Como funciona?

A mieloperoxidase (MPO) é uma enzima derivada de leucócitos que catalisa a formação de numerosas espécies reativas oxidantes. Por mais que sejam integrantes da resposta imune, elas também podem estar relacionadas a certos danos teciduais durante a inflamação.

O processo de identificação da classe do composto da patente partiu de uma triagem inicial e, após, os selecionados foram testados com a enzima isolada para medir se, de fato, conseguiriam inibi-la. Aqueles com capacidade inibitória foram posteriormente testados usando células do sangue.

“Por último, apenas os quatro melhores compostos foram testados em camundongos para provar se são capazes de diminuir o quadro de uma inflamação como a gota — artrite induzida por cristais de ácido úrico”, comenta Flávia.

Em resumo, o processo se assemelha a um funil, no qual a triagem virtual seleciona dezenas de compostos com potencial de serem inibidores, mas os testes iniciais de laboratório filtram os que não são. “Assim, os testes em camundongos são feitos utilizando um número muito reduzido de animais, o que é um requisito pelo Conselho de Ética da Universidade”, completa.

Importância

Ter um composto com essas características é muito importante, ainda mais quando ele possui menos efeitos colaterais do que os outros já testados. Além disso, também apresentou uma atividade anti-inflamatória superior à de um composto já usado na inflamação, o ácido mefenâmico.

“Os efeitos colaterais aparecem quando o composto inibe outras enzimas além daquela que está sendo usada como alvo no estudo. O que foi patenteado apresentou um modo de inibição que parece ser muito peculiar para esta enzima, aumentando a chance de ser específico, evitando-se efeitos colaterais”, explica a professora.

Flávia ainda acrescenta: “A inibição da mieloperoxidase é muito interessante para combater a inflamação crônica, tendo em vista que esta enzima está exclusivamente presente na inflamação e não participa de outros processos fisiológicos”. A atividade desta enzima não está associada apenas à artrite, como no caso da gota, mas também a doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson.

Mercado

Com essas características diferentes de outros compostos testados com o mesmo objetivo é importante que a patente chegue ao mercado. “Para dar prosseguimento ao estudo, precisamos passar por uma série de novos testes, por exemplo, saber o quanto do composto é absorvido quando ingerido via oral, saber o quanto dele está presente no sangue após a ingestão, se apresenta efeitos indesejáveis em indivíduos saudáveis e, finalmente, se é capaz de reduzir a inflamação em humanos ou, ainda, se é capaz de diminuir a progressão de doenças inflamatórias crônicas, como a neurodegeneração”, enumera Flávia.

Para que isso seja possível, ela ressalta que é preciso uma parceria com indústrias que queiram investir nesses estudos. “Se o composto falhar em qualquer um dos itens, poderão ser feitas alterações químicas na molécula, visando a contornar o problema.”

É por essa razão que a patente versa em torno da classe química do composto e não apenas de um composto em si. “Isso nos dá o direito de invenção para qualquer composto que seja obtido a partir do composto inicialmente identificado”, comenta Flávia.

*Estagiária sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo

FONTE: Jornal da USP

Bactérias resistentes também são ameaça fora dos hospitais

Microrganismos multirresistentes são listados como uma das principais ameaças à saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2019. São patógenos que criam resistência ao efeito de medicamentos antimicrobianos e ameaçam a capacidade de tratar infecções causadas por eles. As bactérias multirresistentes estão presentes em hospitais, mas sua propagação para outros locais é uma preocupação, uma vez que têm a capacidade de transferir, para outras bactérias, genes de resistência aos antimicrobianos. Para entender a propagação desses genes no meio ambiente, um estudo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP caracterizou linhagens da bactéria Escherichia coli, encontrando espécies multirresistentes em amostras de solo e de água.

As bactérias têm um papel muito importante para a vida humana, mesmo que algumas causem doenças. A Escherichia coli, por exemplo, faz parte da microbiota dos seres humanos e ajuda na regulação de processos químicos, como a digestão, mas, dependendo da linhagem, pode causar infecções gastrointestinais e extraintestinais (que afetam o intestino e outros órgãos). Essa espécie está na lista da OMS de agentes patogênicos prioritários resistentes aos antimicrobianos.

Segundo João Pedro Rueda Furlan, autor da pesquisa, as bactérias são consideradas multirresistentes quando suportam o efeito de, ao menos, um agente antimicrobiano pertencente a três diferentes classes de medicamentos. No âmbito hospitalar isso causa preocupações, já que as opções de tratamento diminuem conforme a resistência aumenta. A principal causa do problema é o uso intensivo de antibióticos em diferentes setores.

“A ideia do estudo era detectar essas bactérias [E. coli] no meio ambiente e avaliar o potencial de patogenicidade, bem como o perfil de resistência delas aos antimicrobianos. Além disso, para as classificadas como resistentes, também tentamos esclarecer quais são os mecanismos que estão associados à resistência”, diz Furlan.

Para a realização do trabalho, foram coletadas 300 amostras de solo, entre 2017 e 2019, em fazendas de pecuária extensiva (setor com uso intenso de antimicrobianos), localizadas na região metropolitana de Ribeirão Preto (SP) e na cidade de Montes Claros (MG). Os pesquisadores também coletaram, em parceria com a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), 200 amostras de água de rios, ribeirões, córregos e lagos da região, entre 2018 e 2020, usadas para abastecimento público, irrigação, pesca, entre outros. As bactérias obtidas foram analisadas utilizando métodos microbiológicos e moleculares.

Das amostras de solo, 70 apresentaram presença de E. coli; dessas, 41 foram classificadas como multirresistentes. As E. coli multirresistentes detectadas também possuem uma grande quantidade e diversidade de genes que transferem resistência aos antimicrobianos.

Dos isolados de água, 64 foram classificados como E. coli multirresistentes e indicaram que há uma taxa mais alta do que a recomendada da presença da bactéria em amostras de rios, sugerindo a contaminação de ambientes aquáticos pela atividade humana. A maioria das linhagens de água apresentou resistência aos antimicrobianos clinicamente importantes e também uma grande quantidade e diversidade de genes de resistência aos antimicrobianos.

 

Dispersão de bactérias MDR e seus genes de resistência aos antimicrobianos no meio ambiente – Ilustração cedida peo pesquisador

 

“Em amostras ambientais, as bactérias multirresistentes representam um potencial risco à saúde pública e do ambiente, bem como para a segurança alimentar. Uma vez que essas bactérias estão na água e no solo, elas podem se disseminar diretamente para os seres humanos através da ingestão de água e de alimentos contaminados”, explica o pesquisador.

A versatilidade da E. coli também foi um ponto importante observado. “Em termos de resistência, é uma bactéria que, na maioria das vezes, adquire resistência por meio de elementos genéticos móveis. Ela tem uma plasticidade muito grande, tanto no sentido de capturar novos genes de resistência, como também transmiti-los para outras bactérias.”

A pesquisa também apontou que as bactérias conseguem transferir os genes de resistência aos antimicrobianos para outras bactérias. “Na parte final do estudo, vimos que esses mesmos mecanismos apresentados pelos isolados de E. coli já haviam sido reportados, tanto aqui no Brasil quanto no mundo, há muitos anos, e em espécies bacterianas diferentes. Então, isso demonstra como as bactérias se comunicam entre si e trocam informações genéticas e que estão em constante evolução frente à resistência aos antimicrobianos”, destaca Furlan.

Bactérias resistentes no meio ambiente: um desafio global

A resistência aos antimicrobianos emergiu em ambientes hospitalares, segundo Furlan, por isso poucas pesquisas atentaram para a presença desse grupo de bactérias no meio ambiente. A disseminação de bactérias multirresistentes fora do âmbito hospitalar é um desafio global.

Esses microrganismos podem transferir os genes de resistência para a microbiota (conjunto dos microrganismos que habitam um ecossistema) de pessoas saudáveis, que, por sua vez, irão disseminar essas bactérias em outros setores do meio ambiente. “Tratamos esse problema através do conceito de Saúde Única. O meio ambiente é o principal ponto, porque ele está ligado diretamente e indiretamente com os seres humanos, com os animais e com as plantas. Atualmente, o meio ambiente é um ponto-chave na disseminação da resistência antimicrobiana.”

“Se não temos um ambiente saudável, nós não vamos ter uma saúde humana e animal saudável. É importante mostrar que, além da contaminação ambiental por essa bactéria — a qual é oriunda possivelmente da poluição por esgoto doméstico, visto que muitas cidades ainda não possuem tratamento de esgoto —, clones de alto risco de E. coli estão presentes e contribuem para a disseminação e para a evolução da resistência antimicrobiana”, ressalta o pesquisador.

A pesquisa venceu o Prêmio Capes de Tese de 2023 na área de Farmácia e teve orientação da professora Eliana Guedes Stehling.

Mais informações: e-mails jpedro.rueda@usp.br e elianags@usp.br, respectivamente, com João Pedro Rueda Furlan e Eliana Guedes Stehling

*Estagiária sob supervisão de Valéria Dias

FONTE: Jornal da USP

Síndrome vasovagal: distúrbio pode apresentar diversos sintomas

Síndrome vasovagal é uma resposta reflexa alterada ou paradoxal do nosso sistema nervoso autônomo que pode ser desencadeada por situações ou estímulos específicos.

De repente você começa a sentir calor, fraqueza, tontura, palpitação, chegando ao desmaio. Sintomas que aparentemente podem indicar uma queda de pressão vão muito além disso. Você pode estar com uma síndrome, a síndrome vasovagal. De 3% a 5% dos atendimentos de emergência e de 1% a 6% das internações são diagnosticados com a síncope, segundo estudo de Framingham. Apesar da porcentagem não ser alta, o problema pode atrapalhar a vida de seus portadores.

Tan Chen Wu, médica do Núcleo de Arritmia do InCor (Instituto do Coração), explica porque isso acontece: “A síndrome vasovagal é uma resposta  reflexa alterada ou paradoxal do nosso sistema nervoso autônomo, que regula as funções hemostasias de uma série de sistemas e órgãos como coração, trato gastrointestinal, secreção glandular, respiração, sistema imuno-hormonal, oscilando entre os polos simpáticos e parassimpáticos”. Essa resposta reflexa inadequada, desencadeada por situações ou estímulos específicos, como ficar muito tempo em pé parado, dor, função venosa, estresse emocional, calor intenso e vários outros gatilhos, que levam à redução do estímulo simpático e aumento de tônus vagal, resulta na queda acentuada da pressão arterial e frequência cardíaca, com redução consequente do fluxo sanguíneo para o cérebro, destaca a especialista.

A perda da consciência e do tônus postural ou síncope é a manifestação dessa interrupção ou redução transitória da perfusão cerebral por vasodilatação e bradicardia resultante do reflexo vasovagal. Muitas vezes, a redução do fluxo cerebral pode ocasionar efeitos mais leves. Por ser uma resposta reflexa, é autolimitada, de curta duração, com  recuperação espontânea do nível da consciência normalmente em menos de um a dois minutos.

Apesar de a síndrome vasovagal ser benigna, seus efeitos podem levar à queda e quadros indesejáveis que são precedidos de vários sintomas. “A perda da consciência ou síncope ou sensação de desmaio ou pré-síncope geralmente vem acompanhada de sinais, sintomas como palpitações, calor, calafrio, tontura mal-estar, moleza, náuseas, palidez, sudorese, dor abdominal e diarreia, que são as outras manifestações do estímulo vagal no nosso organismo, além da própria queda de pressão e frequência cardíaca. Ao deitar ou cair no chão, a maioria dos pacientes apresenta melhora dos sintomas em questão de minutos, à medida em que se normalizam a pressão arterial e a frequência cardíaca.

Predisposição

Segundo Tan Chen Wu, a síndrome vasovagal acontece por uma predisposição à resposta reflexa dos pacientes. Em alguns grupos há uma predisposição genética. Em pacientes mais suscetíveis, pode ocorrer sem grandes estímulos, com sintomas mais frequentes, em outros, a resposta vasovagal é desencadeada por desequilíbrios transitórios do nosso organismo, como desidratação, quadro infeccioso e descondicionamento físico.

Existem pacientes com fatores desencadeantes bem definidos como, por exemplo, aqueles relacionados à função venosa e procedimentos médicos,  por estímulo central, em que quase invariavelmente esses pacientes vão ter essa reação quando vão tirar sangue para exame médico, principalmente se não se tomar providências para evitar ou atenuar a resposta.

Saber e conhecer os mecanismos e as manifestações da síndrome vasovagal são o primeiro passo para o tratamento e para minimizar os fatores que podem causar seus efeitos. Medidas simples podem evitar o mal-estar. O reconhecimento dos fatores desencadeantes permite ao paciente tomar ações para evitar o estímulo, como ficar muito tempo em pé, principalmente em ambientes quentes e abafados, tratar dores como cólica menstrual e tirar sangue deitado, medidas simples que podem ser muito eficazes para atenuar ou abolir a ocorrência do problema. Tentar manter o corpo  em equilíbrio, com hidratação intensa e aumentar a ingestão de sal, desde que não haja contraindicação, podem ser também muito eficazes.

O exercício físico pode ser útil com fortalecimento muscular, para melhorar a circulação sanguínea, e naqueles pacientes que apresentam pródromos ou sintomas de alerta pela ocorrência do quadro, como calor, tonturas e náuseas, as manobras de contração muscular, puxando as mãos com contração dos bíceps ou movimentos contraindo as panturrilhas podem ser úteis para aumentar a pressão arterial e abortar a resposta vasovagal. Os pacientes que descobriram o problema recentemente e ainda estão se adaptando aos sintomas, quando se sentem mal, antes da perda da consciência, devem se proteger sentando no chão para evitar queda e trauma. Quando as ações não funcionam, podem ser indicados outros tipos de tratamento.

FONTE: Jornal da USP

Preconceito é um problema em casos de câncer de mama na população trans

O câncer de mama é o tipo da doença que mais acomete as mulheres no mundo, presente tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer. A instituição ainda mostra que a doença ocupa a primeira posição em mortalidade por câncer entre as mulheres no Brasil. Diante dessa gravidade, a campanha de conscientização acerca dos cuidados necessários para um diagnóstico precoce recebe expressiva atenção durante o mês de outubro, em que se recomendam o autoteste e os exames para idades determinadas.

No entanto, ainda há uma falta de reflexão acerca dos perigos do câncer de mama voltados à população não cisgênero, ou seja, aquela que se identifica com o sexo com o qual nasceu. Homens trans, por exemplo, também apresentam chances de desenvolver câncer de mama, mesmo após a mastectomia, e precisam tomar os cuidados necessários, como autoteste, mamografia e exames rotineiros. Além dessa reflexão, Ana Amorim, professora do Programa de Atenção Primária à Saúde da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e presidente da Associação Brasileira Profissional para Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo (Abrasitti), aponta que a própria negligência e a dificuldade no acesso aos serviços de saúde por essa população também fazem parte da conscientização sobre o tema.

Barreiras do preconceito 

A própria exclusão social da população não cisgênero, principalmente das pessoas trans, atinge uma série de direitos essenciais, como o acesso à saúde. A professora destaca que essas barreiras não impactam apenas os diagnósticos precoces a partir de exames preventivos, como também afetam a manutenção básica da saúde. “As pessoas têm sintomas e elas tendem a demorar mais para buscar serviços de saúde por conta dessas barreiras sociais que são colocadas para as pessoas trans de uma maneira mais geral”, afirma.

As inúmeras barreiras a essa população se estabelecem no Brasil – país que mais mata pessoas trans no mundo desde 2008, de acordo com os relatórios Trans Murder Monitoring (TMM) da organização Transgender Europe (TGEU). José Roberto Filassi, professor da Faculdade de Medicina da USP e chefe do Setor de Mastologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, chama a atenção para a relação entre a transfobia e a falta de discussão sobre os perigos do câncer de mama nessa população: “Tendo em vista que o Brasil é o campeão mundial de assassinatos de pessoas trans e a expectativa de vida dessa população é de 35 anos, por isso, talvez, o câncer de mama não chame atenção, porque a preocupação começa a aparecer, com maiores chances, nas mulheres após os 40 anos”.

Além da violenta realidade enfrentada por essa parcela, Ana Amorim também alerta sobre as transfobias institucionalizadas nos serviços de saúde, em que se reproduzem negligência e desrespeito aos direitos das pessoas trans. A falta da opção de nome social em prontuários eletrônicos e a restrição de alguns exames de acordo com o sexo de registro da pessoa são exemplos muito comuns no serviço público, segundo a professora.

Essa violência e preconceito, mesmo quando não produzidos pelos agentes de saúde, Ana explica, permanecem presentes nos ambientes dos serviços na forma, na medida em que são alvo de desrespeitos e até mesmo olhares discriminatórios. “Isso também afasta as pessoas trans do serviço de saúde, uma vez que elas não se sentem seguras para estar no serviço e se sentem ainda mais vulnerabilizadas”, aponta a especialista.

Impactos do preconceito

Uma das principais preocupações mencionadas por Ana Amorim trata do atendimento ginecológico, isto é, aquele voltado para questões relacionadas à vulva, vagina, útero, ovários e mamas. Situações de gestação, por exemplo, muitas vezes são enquadradas apenas como um atendimento direcionado à mulher e não a qualquer indivíduo que possua um útero.

“É importante enfatizarmos que identidade de gênero é completamente diferente de características corporais, assim, não é porque uma pessoa tem certo corpo que ela tem certa identidade de gênero”, explica Ana. Assim, essa conduta deve se estender para além da população transexual e englobar qualquer outra identidade de gênero, a fim de promover um serviço de saúde voltado para a necessidade corporal específica de cada um sem vinculá-lo a uma categoria identitária de gênero.

Essa desorganização no momento de atender à população não cisgênero, conforme a professora, pode impactar muito negativamente na saúde mental dos pacientes. “É muito frequente que pessoas trans relatem que os atendimentos em serviços de saúde são grandes motivadores de sintomas ansiosos e de questões que geram problemas emocionais”, pontua.

Formação profissional

O preparo dos profissionais de saúde para atender não só à população trans, mas qualquer outra parcela mais vulnerabilizada da sociedade, se mostra essencial para um atendimento mais efetivo, na visão dos especialistas. O professor Filassi ressalta que o despreparo profissional, ao lado da sensação de insegurança dos pacientes, não será meramente solucionado por meio de decreto e um esforço de diversas frentes será fundamental.

Com tamanha agressão, o registro dessas ocorrências se faz necessário para um diagnóstico melhor do cenário e a possível elaboração de políticas públicas. A professora esclarece a dinâmica dos serviços de saúde e sua importância: “Espero que  as pessoas tenham acesso às informações, que reconheçam os seus direitos e saibam que as ouvidorias nos serviços de saúde são importantes, não só para que haja uma penalidade, caso algo aconteça, mas, principalmente, para que os serviços possam identificar os pontos de fragilidade e melhorar as suas condições”. Além disso, “profissionais de saúde devem tentar estar mais atentos de como podemos oferecer um cuidado não excludente que possibilite que todas as identidades e as populações também se sintam confortáveis em entrar no serviço”, avalia Ana.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP

Comer em família faz bem para a saúde

Reunir a família em torno da mesa para compartilhar refeições, seja em ocasiões especiais ou no cotidiano, não apenas fortalece os laços familiares, mas também pode ter impactos positivos na saúde. A comensalidade, entendida como a prática de “comer coletivamente” ou “comer junto”, é uma dimensão humana fundamental.

Esse hábito remonta à pré-história, quando hominídeos se reuniam ao redor de fogueiras para compartilhar alimentos. A própria palavra “comensalidade” tem origem em mensa, termo em latim que significa mesa. Portanto, ao falar de comensalidade, referimo-nos à interação social durante as refeições, envolvendo o compartilhamento daquilo que é consumido. Esse convívio à mesa representa uma característica intrinsecamente humana de interação e integração na sociedade.

Para Patrícia Jaime, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora acadêmica da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, “a ideia de comensalidade é importante porque ela traz um aspecto crucial da alimentação, que é o como comemos. É comum falarmos sobre o que comemos, mas temos dado pouca atenção aos modos de comer”.

Guia Alimentar para a População Brasileira destaca-se ao abordar esse tema de maneira pioneira. Ele apresenta três orientações fundamentais: comer com regularidade e atenção, escolher ambientes apropriados e compartilhar as refeições em companhia — todas interligadas ao conceito de comensalidade.

Convívio e saúde

Na atualidade, é bastante frequente a presença de distrações durante as refeições, como televisores e celulares, quando há tempo para uma refeição adequada. É comum consumir alimentos rapidamente diante de uma tela, sem dedicar a devida atenção ao que estamos ingerindo ou às pessoas ao nosso redor.

Para Patrícia, esse modo de comer pode acarretar consequências negativas para a saúde. “As ramificações dessas transformações são diversas. Ao ingerirmos rapidamente, corremos o risco de consumir mais do que o necessário, uma vez que o organismo leva um tempo para nos proporcionar a sensação de saciedade. Além disso, a mastigação reduzida dificulta a digestão”, destaca a professora.

Segundo a nutricionista, compartilhar a refeição pode ter um impacto significativo no cotidiano de uma pessoa. “Comer diante da TV, escolhendo alimentos de fácil consumo no sofá, é completamente distinto de quando nos alimentamos em companhia, à mesa, de preferência após preparar a receita com um parceiro ou com a família”, explica.

*Estagiário sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo

FONTE: Jornal da USP

Cientistas brasileiros projetam melhorias em válvula cardíaca inovadora

Uma válvula com design inovador, projetada para pacientes com estenose aórtica, ficou mundialmente conhecida como Válvula Aórtica de Wheatley. O diferencial do dispositivo está na possibilidade de se dispensar o paciente de fazer tratamentos adicionais com anticoagulantes, usualmente adotados nestes casos após a inserção da prótese, via transplante. Pesquisadores da USP e Unicamp vinculados ao Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (Cemeai) trabalham no aprimoramento do projeto, que pode revolucionar a vida de milhões de pessoas afetadas pela doença.

Estenose

De acordo com a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), a estenose atinge de 2% a 5% da população mundial e é decorrente da degeneração da válvula aórtica, dificultando a saída do sangue do coração para a aorta – principal vaso sanguíneo do coração – e comprometendo a circulação. Sendo mais comum em idosos, o aumento no número de casos dessa condição tem sido elevado nos países subdesenvolvidos, onde as doenças cardíacas reumáticas são preponderantes.

Em quadros graves de estenose aórtica, a única alternativa viável para garantir uma melhoria na qualidade de vida do paciente é um transplante. Esta operação consiste em substituir a válvula natural disfuncional por uma artificial (ou prótese). Há vários tipos de próteses disponíveis, e a escolha vai depender do cenário vivido por cada paciente. Em geral, as poliméricas, feitas com polímeros, são aquelas que possuem maior vida útil. Porém, elas requerem tratamento com medicamentos anticoagulantes na fase pós-operatória.

Os anticoagulantes são utilizados para “afinar” o sangue, ou seja, impedem a formação de coágulos e facilitam a circulação sanguínea. Esse tipo de tratamento medicamentoso requer extremo cuidado e atenção do paciente, sobretudo com sangramentos, para evitar risco de complicações.

À frente do trabalho com a Válvula de Wheatley estão os pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP José Alberto Cuminato e Gustavo Buscaglia, com o auxílio de Hugo Luiz Oliveira, atualmente professor da Unicamp. Eles buscam desenvolver modelos matemáticos e simulações computacionais de maneira a aprimorar o dispositivo.

Hugo Luiz Oliveira desenvolveu pesquisas sobre modelos matemáticos e simulações computacionais de maneira a aprimorar a Válvula de Wheatley – Foto: Reprodução/Youtube

Entendendo a Válvula de Wheatley

A maior incidência da estenose na população idosa mundial estimulou o surgimento de técnicas de substituição de válvulas do corpo humano pelas artificiais desde a década de 1960. Porém, o procedimento é invasivo e o tratamento demanda elevados custos financeiros. Sendo assim, como oferecer uma alternativa mais viável economicamente sobretudo para países em desenvolvimento?

Foi pensando nesse contexto que o professor, pesquisador e cirurgião cardíaco escocês David J. Wheatley decidiu, em 2012, empenhar seus próprios recursos para custear os protótipos que iniciaram a criação de uma válvula polimérica com folhetos em forma “S”.

“Ao patentear este dispositivo, Wheatley pretendia proteger a válvula inovadora de interesses comerciais predatórios, o que desviaria o projeto de sua finalidade. O objetivo central é colocar à disposição da população um dispositivo aórtico altamente eficiente com custo reduzido, favorecendo, sobretudo, países de baixo e médio nível de desenvolvimento econômico”, explica Hugo Oliveira.

Ponte Europa – Brasil

Ilustração de coração com estetoscópio. O pesquisador aponta que para o funcionamento da válvula é necessário compatibilizar várias necessidades e funções disciplinares – Foto: rawpixel.com/Freepik

Após um longo período de dedicação ao estudo e ao tratamento de doenças em válvulas cardíacas em diferentes partes do mundo, Wheatley confeccionou protótipos de sua válvula inovadora e realizou testes laboratoriais preliminares. Entretanto, o britânico precisava aprofundar seus conhecimentos sobre o comportamento mecânico do dispositivo, problema intrinsicamente de matemática e engenharia, por isso acionou o colega Sean McKee, da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido.

Curiosamente, McKee foi orientador de doutorado de José Alberto Cuminato, em Oxford, e atualmente pertence ao corpo docente de Strathclyde. Daí o elo entre a universidade britânica e o Cemeai em prol do desenvolvimento da válvula de Wheatley. A ideia original era utilizar a modelagem matemática e a simulação computacional para oferecer ainda mais eficácia ao equipamento. Neste contexto, Oliveira embarcou no desafio e relata que os resultados têm sido satisfatórios.

“Trata-se de um modelo matemático bastante complicado de se fazer. É necessário compatibilizar várias necessidades e funções disciplinares. David Wheatley, como cirurgião cardíaco, possui uma experiência fisiológica, cirúrgica, funcional do dispositivo. A válvula se abre quando o sangue emerge do ventrículo esquerdo (quando o coração contrai) e se fecha para evitar que o sangue retorne da aorta quando o coração relaxa. Estas observações da realidade precisam ser traduzidas em equações matemáticas passíveis de serem resolvidas por um computador”, conta Oliveira.

Ele explica que a dinâmica do movimento envolve conceitos da Mecânica dos Sólidos, Mecânica dos Fluídos, métodos numéricos não lineares, técnicas de remalhamento automático, contato de corpos flexíveis e computação de alto desempenho. “Mesmo com todas essas complexidades envolvidas, nós conseguimos implementar um modelo que está em fase operacional, inclusive, sendo capaz de reproduzir com fidelidade os dados observados experimentalmente.”

Dessa forma, o Cemeai está à frente de um projeto único no Hemisfério Sul – como o próprio Oliveira narra – de modelagem matemática e simulação computacional de forma a testar melhorias na evolução tecnológica da válvula muito antes de se avançar para testes clínicos, economizando tempo e recursos.

Dispor de um modelo computacional de alta fidelidade reduz não apenas o tempo empregado na concepção da válvula e de seus mecanismos intrínsecos, como também os custos envolvidos na produção física de protótipos e testes experimentais.

Etapas do processo

Para conseguir a aprovação dos mais importantes órgãos reguladores de saúde no planeta, há diversas etapas a serem cumpridas. Oliveira lembra que antecipar situações adversas futuras da válvula pode ser muito importante para os pacientes.

Por exemplo, os pacientes com estenose aórtica na atualidade têm três alternativas de tratamento: com válvulas mecânicas, válvulas poliméricas e os dispositivos com componentes biológicos. No último caso, não há a necessidade de medicamentos anticoagulantes.

Entretanto, a contrapartida é a obrigação de se trocar a válvula, em média, a cada dez anos. “Se o paciente recebe uma válvula que tenha componentes biológicos, ele não precisa tomar o anticoagulante. O problema é que a válvula precisa ser substituída ao longo do tempo. Ou seja, será necessário fazer uma nova operação para a troca assumindo todos os todos os inconvenientes e os riscos de uma cirurgia convencional”, completa Oliveira.

A equipe do Cemeai se propôs a realizar a modelagem computacional da Válvula de Wheatley a fim de reproduzir o seu comportamento mecânico em condições de serviço. Esta ação permite que quaisquer melhoramentos eventualmente apontados possam ser testados virtualmente, sem a necessidade de produção de novas peças a cada alteração proposta.

Um exemplo de prótese biológica de válvula – Imagem: Reprodução/ Robertolyra/English Wikipedia via Wikimedia Commons

Os experimentos vão no sentido de garantir que a válvula abra e feche rapidamente e que a tensão de cisalhamento (forças em sentidos opostos, mas na mesma direção) no fluxo sanguíneo esteja sempre acima de um limite crítico. Com isso, o sistema evita a formação de trombos (coágulos, que podem originar trombose) e garante uma vida útil maior do que a válvula convencional.

Testes de simulação computadorizada para aperfeiçoar a Válvula Aórtica de Wheatley – Imagem: Divulgação /Hugo Oliveira

Para alcançar o resultado proposto, Oliveira e a equipe do Cemeai testaram vários softwares. A opção que melhor se adequou foi o solver (software para resolução matemática) LS-DYNA, que permitiu reproduzir fielmente no computador o desempenho mecânico e fluidodinâmico que a Válvula Aórtica de Wheatley apresenta em condições controladas de vazão e pressão.

Desde 2019, o LS-DYNA faz parte do pacote tecnológico da ANSYS, empresa líder mundial no ramo de simulações de softwares de engenharia. O solver foi escolhido pelo grupo do Cemeai por sua capacidade de simular com precisão e eficiência os fenômenos físicos não lineares necessários para descrever o comportamento da válvula.

Exposição do projeto chegou à Câmara

O trabalho atraiu olhares no Brasil e no exterior. A ANSYS convidou Oliveira para uma sessão pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde foi discutido o papel vital dos experimentos com simulação computacional para impulsionar a inovação em tratamentos e dispositivos.

A sessão ocorreu no último dia 4 de outubro, apresentada pela deputada Sílvia Cristina Chagas (PL) com a presença de membros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) e do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa em Saúde (Conep). Durante a sessão na Câmara, Oliveira debateu os desafios e as propostas revolucionárias de seu projeto matemático e a importância de um parecer da principal autoridade nacional na área para dar continuidade ao projeto.

“Pudemos estar presentes em Brasília e relatar que tal tecnologia está madura o suficiente e a estamos aplicando na realidade”, reforça Oliveira.

Na sessão aberta, o engenheiro expôs os resultados de sua pesquisa também na presença da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia em Saúde (Abimed) e da Avicenna Alliance, uma associação global com o objetivo de tornar a medicina in silico (baseada em simulações computacionais) uma prática padrão no setor de saúde.

“O encontro foi muito positivo. Nós conseguimos estabelecer um diálogo muito importante junto à Anvisa, que se mostrou interessada nas abordagens in silico. Os próximos passos caminham na direção de agências reguladoras da Europa e Estados Unidos, ou seja, traçar diretrizes para auxiliar a confecção e a apresentação de estudos in silico para fins de homologação”, opina Oliveira.

Detalhe de apresentação de Oliveira na Câmara dos Deputados, em Brasília – Foto: Reprodução/TV Câmara

“A pesquisa desenvolvida no Cemeai está em linha com os melhores e mais exigentes padrões de qualidade internacionais. Para nós, brasileiros, participar de um projeto desta amplitude significa poder impactar positivamente a vida de milhares de pessoas, trazendo melhoria de qualidade de vida, reduzindo custos, ampliando o acesso a dispositivos cardíacos de alta eficiência. Em última instância, trata-se de um projeto de extrema relevância pública, em que a ciência de ponta é colocada em prol do benefício de todos”, conclui o pesquisador.

O projeto foi protagonista do Prêmio Pós-Doc USP, honraria concedida pela instituição na Escola Politécnica (Poli) da USP em outubro deste ano. A Modelagem Matemática e Simulação Numérica da Válvula Aórtica de Wheatley, título do trabalho, recebeu o prêmio na Área de Ciências Exatas e da Terra.

*Da Assessoria de Comunicação do Cemeai, com edição de Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Rede colaborativa busca reabilitar pessoas com doenças genéticas

A Faculdade de Medicina (FM) da USP lançou o Centro Integrado de Doenças Genéticas (Cigen), uma rede colaborativa formada por oito institutos do Hospital das Clínicas (HC) e duas instituições parceiras. Um dos institutos referência na área é o Departamento de Genética do Instituto de Biociências (IB) da USP.

Magda Carneiro Sampaio, professora titular do Departamento de Pediatria da FM da USP e presidente do conselho diretor do Instituto da Criança e do Adolescente (ICr) do HC, explica que a rede integra serviços clínicos, serviços multiprofissionais e laboratórios.

Principais objetivos 

Tendo em vista que as doenças genéticas, em sua maioria, não apresentam tratamento visando à cura, as principais medidas concentram-se na reabilitação dos pacientes. “O principal objetivo do Cigen é oferecer e expandir o tratamento diagnóstico e, eventualmente, tratamento e reabilitação para pessoas com doenças genéticas”, informa a professora Magda.

Outros aspectos também abordados pelo centro são a capacitação de profissionais médicos e não médicos, incentivo à pesquisa e elaboração de políticas públicas voltadas para a área de doenças genéticas, raras ou não.

Avanços na área 

A professora comenta que os avanços no âmbito da genética e genômica humana enfrentam desafios para baixar os custos de recursos, como o exoma completo – maior exame do genoma humano disponível para analisar a hereditariedade. “Também temos a ideia de formar um biobanco com todo material que já existe”, acrescenta Magda.

O biobanco, dessa forma, irá unir tanto dados genéticos quanto as informações clínicas dos respectivos casos. Essa ação poderá contribuir, segundo a especialista, para diversos segmentos, por exemplo, na discussão de doenças de alto custo e na judicialização de casos.

Especialidades envolvidas

A pediatria ocupa um lugar de destaque no estudo da área, na medida em que as enfermidades genéticas aparecem desde muito cedo nos indivíduos. Além da clínica médica e imunologia.

Apesar de áreas mais frequentes que outras, as doenças genéticas se envolvem com inúmeras especialidades, que podem contribuir no seu estudo de diversas maneiras. Assim, a formulação do Cigen, a partir de uma óptica de rede colaborativa, apresenta um grande potencial.

FONTE: Jornal da USP

Mapeamento do cérebro ajuda a identificar e prever consequências de doença que afeta idosos

Ao envelhecer, nosso desempenho intelectual e alguns aspectos do nosso comportamento se alteram. Um dos fatores que levam a esse processo é a doença cerebral de pequenos vasos (DCPV). A chance de ter a condição aumenta com a idade, afetando 5% das pessoas com 50 anos e, teoricamente, a grande maioria das pessoas com mais de 80 anos.

A DCPV causa 25% dos acidentes vasculares cerebrais e contribui para 45% dos casos de demência. Além disso, o quadro cria pequenas lesões que levam a microsangramentos e infartos cerebrais silenciosos, entre outras alterações.

“Ao longo da juventude até chegar ao envelhecimento, é possível promover modificações do nosso estilo de vida de tal forma a evitar que ela ocorra ou, pelo menos, retardar o aparecimento da doença e o comprometimento da saúde cerebral”, avalia o pesquisador Pedro Henrique Rodrigues da Silva, do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

Ele ganhou o Prêmio Capes de Tese 2023 na área de Medicina II em razão de uma pesquisa que ajuda a entender melhor a relação das redes cerebrais com a cognição e os efeitos causados pela DCPV. O prêmio, concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), reconhece os trabalhos de doutorado mais originais e relevantes de cada ano.

As lesões pontuais podem ser vistas através de neuroimagens e, portanto, normalmente são associadas à região do cérebro onde ela se encontra. “No entanto, pesquisadores começaram a perceber que o mesmo grupo de pacientes, com a mesma idade, mesmo grau de lesão e no mesmo local apresentava desfechos diferentes, afetando regiões distantes do cérebro”, conta Pedro da Silva.

Isso levou o físico a fazer uma avaliação interdisciplinar dos efeitos desses danos não apenas através das estruturas que conectam os neurônios, os axônios, mas também por conexões previstas por modelos matemáticos, conhecidas como redes funcionais. Além da física e da medicina, o cientista trabalhou com conceitos avançados da química, da computação, da estatística, da psicologia e da biologia.

Conexões entre redes estruturais e redes funcionais do cérebro – Imagem: Reprodução/Brain Connectivity/Artigo de Renata Ferranti Leoni e Pedro Henrique Rodrigues da Silva

A ideia foi costurar essas informações e usar a neuroimagem para mapear como uma lesão local, a hiperintensidade de substância branca, afetaria outras áreas do cérebro, como conta o pesquisador. “Enquanto físico médico com foco em neuroimagem, a minha maior contribuição é fazer o melhor uso das ferramentas para mapear e compreender as alterações cerebrais, a sua associação com o desfecho de um grupo de pacientes para, a partir disso, começar a delinear fenótipos e acompanhar intervenções a partir dos marcadores estabelecidos com essas análises.”

Na prática, isso significaria facilitar o diagnóstico, prever o que pode acontecer com um paciente e criar um tratamento mais personalizado.

O pesquisador classifica a DCPV como uma síndrome de desconexão. Isso significa que ela pode afetar diferentes regiões cerebrais ao invés de uma única, onde o pequeno machucado foi encontrado. A perda da ligação entre essas áreas cerebrais pode resultar em problemas de memória e dificuldade no processamento de informações.

Renata Ferranti Leoni, professora do InBrain Lab da FFCLRP que orientou o projeto, esclarece que mais doenças como essa estão aparecendo porque as pessoas hoje vivem mais. “Antigamente não se falava muito desse tipo de doença, como o Alzheimer, porque a nossa expectativa de vida era menor. Então, entender como o cérebro funciona pode ajudar nas prevenções, para que outras pessoas não cheguem a desenvolver essas doenças.”

O tráfego de informações na nossa cabeça

A comunicação entre os neurônios é a base dos nossos pensamentos e comportamentos. Porém, há uma contradição entre as regiões do cérebro que são vistas trabalhando ao realizar uma tarefa e as conexões feitas pelos axônios. “Há regiões que, mesmo não tendo uma ligação estrutural, estão trabalhando sincronizadamente. Elas podem estar trabalhando juntas sem necessariamente estarem ligadas diretamente por axônios”, sugere a professora.

Segundo os modelos matemáticos funcionais, as diferentes áreas do cérebro trabalham em conjunto para processar informações mais rapidamente, como detalha Pedro. “A rede de velocidade de processamento de informação seria composta de oito regiões do cérebro que têm um padrão de conectividade funcional, seja na execução da tarefa ou em repouso. Esses padrões se correlacionam, até certo ponto, com os padrões de conectividade estrutural, porém não totalmente.”

Mapas cerebrais de desconexão associados a velocidade psicomotora ajustados para idades, sexos, escolaridade e sintomas depressivos. Imagem: Brain Topography.Mapas cerebrais de desconexão associados a velocidade psicomotora ajustados para idades, sexos, escolaridade e sintomas depressivos – Imagem: Reprodução/Brain Topography/Artigo de Renata Ferranti Leoni e Pedro Henrique Rodrigues da Silva

No início de um aprendizado, como a alfabetização e aulas de piano, o cérebro parece uma árvore de Natal. São muitas regiões do cérebro “acesas”, trabalhando muito e gastando bastante energia e, logicamente, demorando para concluir uma tarefa. “Após o aprendizado, essa rede se reorganiza, se especializa e se torna mais eficiente para executar aquela mesma tarefa. Então, não necessariamente a diminuição da atividade é pior”, explica Pedro.

A velocidade é prejudicada com a DCPV porque, ao danificar um ponto específico do cérebro, toda uma rede é afetada. Assim, os padrões funcionais precisam se reorganizar para conseguir voltar a performar a mesma atividade já aprendida.

Desconexão

Nos últimos anos, pesquisadores perceberam que identificar as lesões nos axônios não era suficiente para prever as perdas cognitivas em pacientes.

Enquanto um poderia não apresentar sintomas, outro poderia ter um déficit gravíssimo. O desfecho pode variar de acordo com a estratégia adotada em cada cérebro para compensar uma mesma obstrução.

“Às vezes o cérebro tenta recompensar um condição, mas faz isso de maneira errada, que é negativa. A pessoa até faz, mas sempre tem uns ‘brancos’ ou acontecem coisas inesperadas. Até que chega um ponto em que o cérebro ‘joga a toalha’, porque o esforço foi muito intenso”, complementa o físico.

O pesquisador defende uma mudança de olhar nesses diagnósticos. “Precisamos ir por camadas: identificar a lesão, como ela afeta as redes estruturais, as redes funcionais e como essas redes estão associadas aos testes neuropsicológicos ou testes clínicos aplicados.”

Atualmente, são também consideradas doenças de desconexão a depressão, a ansiedade, a demência e a esquizofrenia. Porém, seriam necessários testes similares aos da pesquisa para confirmar se elas se enquadram nessa classificação pelos mesmos motivos.

Segundo Pedro, estamos no período das “grandes navegações” no cérebro e entender essa organização ajuda a propor tratamentos mais eficazes.

Redes cerebrais

As redes estruturais navegam através das fibras dos axônios, que ligam diferentes regiões do cérebro. Já as redes funcionais viajam por regiões distintas no espaço cerebral, podem ser monitoradas através do fluxo sanguíneo e não correspondem completamente às redes estruturais.

Pedro conta que a rede funcional é um modelo matemático que explica melhor algumas execuções de tarefas e condições clínicas. “A priori, acreditava-se que, ao mapear a estrutura cerebral, ou seja, as fibras de substância branca, seria possível entender o funcionamento do cérebro, correlacionar com as várias medidas de testes neuropsicológicos e associar com as diversas condições clínicas, mas começou-se a perceber que, pelo menos com a neuroimagem que nós temos, esse mapeamento não explicava todos os desfechos clínicos e cognitivos dos pacientes.”

Há uma divergência entre a rede funcional e as conexões estruturais de neurônios. Por isso podemos dizer que a estrutura coloca limites às redes funcionais, mas não as determina completamente.

Entender como uma região influencia ou causa atividade em outra durante uma atividade é interessante para o estudo da DCPV pois pode abrir caminhos para a elaboração de melhores estratégias de diagnóstico, de tratamento e de melhoria na qualidade de vida dos pacientes.

Testes

Na sua pesquisa, Pedro avaliou a conectividade das regiões cerebrais em indivíduos saudáveis e comparou com trabalhos anteriores, realizados com pessoas com DCPV pela Universidade Radboud de Nimega, nos Países Baixos.

Esses estudos indicavam que a quantidade de tempo necessária para processar um conjunto de informações pode ser medida com a aplicação de um teste de substituição de letras por dígitos. “Esses testes conseguem identificar déficits de velocidade de processamento da informação no início da doença”, comenta Renata.

Como as letras e os dígitos são previamente conhecidos, o teste não depende de processos visuais e de memória complexos. Ou seja, isola melhor a velocidade de processamento de outros fatores como a memória e a atenção.

Nesses experimentos, a rede funcional foi observada por ressonância magnética através do fluxo sanguíneo. Quando estimulados a realizar uma tarefa, demandando energia, os neurônios fazem aumentar o fluxo de oxigênio fornecido pelos vasos.

Além da colaboração dos neerlandeses, o pesquisador contou com a colaboração de radiologistas e neuropsicólogos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP).

Mais informações: e-mails pedrojoanabrit@usp.br, com Pedro Henrique Rodrigues da Silva, e leonirf@usp.br, com Renata Ferranti Leoni

*Estagiário sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiárias sob supervisão de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP