Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em conjunto com o Instituto Çarê, apontou que, entre os anos de 2010 e 2021, as pessoas negras foram as que mais sofreram algum tipo de racismo e incidentes durante procedimentos médicos. Esses incidentes são caracterizados como condições hospitalares adquiridas de forma indesejável e não intencional durante a internação do paciente.
Com base no recorte étnico-racial, o Boletim Çarê-IEPS apontou a queda no número geral desses acontecimentos ao longo dos anos, o que pode indicar melhorias na gestão e prevenção ou, então, um aumento na subnotificação. Por conta de desigualdades nas taxas, é destacada a necessidade de maior atuação de políticas públicas promovidas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), a fim de tratar das disparidades e promover o acesso equitativo à saúde — independentemente de raça ou cor.
Mônica Mendes Gonçalves, doutoranda na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo, afirma que o racismo na medicina é realizado a partir de um conjunto de normas e regras burocráticas, que não dizem respeitar à raça, mas que incidem sobre esses grupos sociais em situação de vulnerabilidade.
O racismo velado
Segundo Mônica, a identificação de casos de racismo na medicina é realizada a partir da junção de duas ferramentas, uma quantitativa e outra qualitativa. A primeira se dá por meio do advento da epidemiologia — análise da distribuição e dos fatores determinantes das enfermidades — que com as estatísticas das populações, cruzadas com as estatísticas em saúde, permite entender quais indivíduos adoecem mais e os motivos para tal.
Por exemplo, durante a pandemia da covid-19 no Brasil, a taxa de letalidade da doença nos negros foi de 55%, enquanto nos brancos foi de 38%. Outro dado que evidencia esse cenário é o que indica que o risco de uma pessoa negra apresentar quadro de depressão no País é praticamente o dobro de uma pessoa branca.
Já as produções qualitativas, desenvolve a doutoranda, são um conjunto de ferramentas e de narrativas que investigam os itinerários em saúde — o caminho percorrido pelo indivíduo durante o tratamento, desde a identificação da enfermidade. “Quando soma-se esse conjunto de ferramentas e de evidências, que vem desses dois tipos de pesquisas, tem-se muitas evidências que mostram que o racismo é um dos determinantes primordiais da saúde das populações, não só no Brasil, mas no mundo todo”, discorre.
Na opinião dela, o erro médico é um evento racial e a pessoa submetida a isso tem dificuldade em conseguir argumentar o contrário. Ela diz que o sujeito pobre, da periferia, que não possui direitos trabalhistas, costuma ser atendido por profissionais que não esclarecem a sua condição clínica e é o racismo que determina essa realidade.
A médica utiliza, como exemplo, um caso de seu doutorado, sobre um jovem da zona norte de São Paulo, que teve seus dedos amputados por conta de um acidente no local de trabalho: “O rapaz vai para um hospital, depois de uma hora o médico diz que não pode fazer nada, porque não tem raio X. Vai para outro, em que ocorre a mesma coisa de não ter o aparelho. Por fim, ele vai para um terceiro, em que aí ele é acolhido e fazem pela primeira vez um curativo nele”. No entanto, ela complementa que, neste último hospital, havia pessoas esperando por cirurgias a meses e, diante desse cenário, o jovem fugiu.
A especialista ainda comenta sobre relatos que apontam que pessoas negras não conseguem mobilizar cuidados na saúde da mesma forma que as brancas conseguem. Ela discorre sobre pesquisas que evidenciam o cenário em que, ao realizar um diagnóstico psiquiátrico de um indivíduo, de modo geral o negro é dirigido para um serviço substitutivo de atenção à saúde mental e, para o não negro, apenas são receitados medicamentos – mesmo que possuam o mesmo diagnóstico.
Mudanças no paradigma
“Acho que é correto dizer que uma das principais vias a partir da quais as políticas raciais se estruturam na saúde é a omissão.” Mônica explica que isso ocorre pelo fato de não existir um olhar privilegiado às populações periféricas e vulneráveis nos processos de distribuição de saúde. Ela cita o maior investimento na atenção hospitalar em detrimento da atenção básica, que propicia a precarização desse serviço no qual a maior parte dos indivíduos pobres possui acesso.
Segundo a doutoranda, é uma burocracia estabelecida que inviabiliza que a maioria dos trabalhadores pretos e pobres tenha acesso à saúde. Isso se dá desde o trato interpessoal até os arranjos institucionais — horário de funcionamento dos serviços, trâmite para realização de exames, arranjos políticos, localização de pronto-socorro, presença de maquinário, tudo isso é em benefício da população branca elitizada.
“O que significa que 80% dos transplantados no Brasil sejam homens brancos? Contrário ao fato de que, por exemplo, transplante de coração ocorre, basicamente, só nesses indivíduos, mas as pessoas que mais sofrem de doenças do coração são os homens negros”, questiona a médica.
Na visão de Mônica, para mudar o racismo na saúde é necessário mudar todas as esferas sociais em todo o mundo, visto que, assim como no Brasil, essas condições também são identificadas nos Estados Unidos, África do Sul, na América Latina e em outros continentes. Além disso, outras populações, como os povos originários, também estão presentes nessa desigualdade racial, inserida na educação e no mercado de trabalho, igualmente.
De acordo com ela, deve ser implementado um conjunto de políticas públicas que direcione saúde para essas populações e pense a sua lógica a partir dos territórios vulnerabilizados. No Brasil, nas regiões Norte e Nordeste, menos de 40% da sociedade possui saneamento básico — item necessário para a qualidade de vida de um indivíduo.
“Se a gente investe em um hospital de verdade, não em um hospital enorme que por dentro não tem nada, e coloca equipamento dentro desse local, essa população negra consegue ser assistida”, garante a doutoranda, que ressalta que o racismo tem o caráter de englobar um aglomerado de setores, portanto, as ações devem ser articuladas; “por exemplo, a saúde não funciona sem educação”.
Aliança estrutural
O racismo institucional, de acordo com a especialista, funciona a partir da aliança entre a população branca, na qual o monopólio de poder ocupa todas as instâncias sociais — um pacto social coletivo – para exclusão dos negros. Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina apontou que somente 3% dos médicos no Brasil são negros. “Vão sendo instituídos para que isso funcione como mecanismo de exclusão, porque, se um deles começa a falhar, a arquitetura toda se abala. Então, não é tão desimportante assim que esses profissionais sejam brancos e muito racistas”, afirma.
A médica utiliza o termo “buraco negro” ao se referir a casos nos quais o indivíduo, por conta dos trâmites que não são explicados a ele, perdura por determinado tempo estagnado no tratamento e muitas vezes não consegue realizar o exame que lhe é necessário. Diante disso, a pessoa desiste do procedimento e adoece cada vez mais.
“Do ponto de vista da comprovação desse fenômeno, isso já está absolutamente confirmado e ratificado. Se tiver um mínimo conhecimento de crença nas perspectivas científicas e estiver minimamente atento ao mundo, já tem isso confirmado, não nos faltam dados política, estatística e cientificamente fundamentados para entender”, desenvolve Mônica.
Por fim, ela disserta que o racismo está sendo construído, fomentado e rearticulado há cinco séculos, por meio do conjunto de tecnologias sociais implementadas em diferentes lugares do mundo, com o objetivo de subordinar e dominar as populações negras: “A gente deve pensar nisso como uma transformação global, que precisa levar tempo e precisa de muita ação política, radical e incansável direcionada para isso”.
*Estagiário sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
FONTE: Jornal da USP