Fibrodisplasia Ossificante Progressiva: você sabe quais são os sintomas?

O projeto de Lei 3448/2023, da deputada Amália Barros (PL-MT), busca estabelecer o dia 23 de abril como o Dia Nacional de Conscientização sobre a Fibrodisplasia Ossificante Progressiva (FOP). Nesse mesmo dia, no ano de 2006, foi anunciada a descoberta do  ACVR1, gene da doença. A fibrodisplasia ossificante progressiva é uma doença influenciada por padrão genético e que se desenvolve na formação embriológica.

Thadeu Rocha da Costa, pesquisador de Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP, explica que “possivelmente, por ser um problema relacionado a distúrbios autossômicos dominantes, esse tecido conjuntivo é prejudicado desde a fase da embriologia, onde algumas dessas enzimas principais estão desinibidas, favorecendo a formação óssea no futuro”. Uma das principais manifestações desses distúrbios autossômicos são as formações indevidas de ossos: “Tanto músculo quanto ligamentos e todo o tecido conjuntivo podem correr risco de se transformar em osso”.

Doença rara

Pouco conhecida popularmente e no meio médico, a FOP precisa ser visibilizada para aumentar a atenção multiprofissional sobre essa condição. “As iniciativas de todos os nossos governantes, deputados e profissionais da área envolvidos nesse cuidado são cruciais para limitar as dificuldades que esses pacientes vão enfrentar no restante da vida. Na maioria dos casos, eles infelizmente acabam nos deixando por múltiplas complicações, tanto ventilatórias quanto cardíacas, tendo uma vida muito restrita do ponto de vista funcional”, explica o pesquisador.

A FOP também não está associada a fatores ambientais. “Não necessariamente tem relação com os grupos étnicos, mesmo sabendo que a maioria dos estudos são em pacientes caucasianos. Também pode atingir de maneira igual em ambos os sexos”, complementa. A incidência da doença é de um a cada 2 milhões de nascidos vivos.

Principais consequências 

Com a formação óssea comprometida, as funções corporais do paciente são prejudicadas, afetando sua mobilidade e outros aspectos de sua saúde. “O paciente pode correr riscos de dificuldade respiratória, porque a caixa torácica pode ficar restrita, dificultando a ventilação.” Os ossos do paciente também podem inflamar e causar ardência, sendo necessária a aplicação de anti-inflamatórios.

 

Foto: Carol Garcia/Agecom via Fotos Públicas CC

Tratar um paciente com fibrodisplasia ossificante progressiva é estar a todo tempo atento a ele. Atividades físicas de alta intensidade, bem como quedas, aplicação de injeções quaisquer e procedimentos cirúrgicos podem formar novos ossos com esse tecido conjuntivo que foi afetado, comprometendo mais a sua condição. Rocha explica: “É um efeito cascata de formação de osso com repercussão deletéria para esses pacientes. Lembro ainda que tudo isso é ativado como se fosse um efeito gatilho, pois as células ativam essas enzimas de formação óssea do tecido conjuntivo e o corpo não consegue inibir o processo, formando o osso naquelas peculiaridades, naquelas situações onde houve atrito ou contato”.

O trabalho de uma equipe multiprofissional é fundamental para cuidar de todos esses aspectos e o tratamento é feito a partir dos sintomas. “Uma proposta curativa é um pouco mais difícil, então a gente ainda segue com pesquisas clínicas e principalmente objetivo medicamentoso, que consiga inibir a ativação dessa proteína que produz osso em tecido conjuntivo, tamanha a dificuldade de um tratamento curativo.” Também é comum o uso de remédios para ajudar na respiração.

Teste do pezinho

O projeto de lei 5090/2020, de Marcelo Aro (PP-MG), prevê a “realização obrigatória de exame clínico para identificar a FOP”, que consiste em inserir um procedimento de checagem na triagem neonatal: observar os dedos dos pés do recém-nascido. O procedimento tem como objetivo identificar alguma má-formação óssea nessa região, que pode ser um indício da doença.

Outra possibilidade são os testes genéticos realizados para encontrar as características de proteínas ósseas. “A maneira com que o teste do pezinho pode contribuir para diagnóstico e principalmente detecção mais breve desse cenário é fazendo teste genético com avaliação da proteína óssea morfogenética BMP tipo 1. Essa proteína tem padrões relacionados ao gene ACVR1, que pode inclusive codificar alguns tipos de receptores que otimizam o funcionamento dessa proteína, como Activina A e Activina-like”, aponta Rocha.

*Sob orientação de Marcia Avanza

FONTE: Jornal da USP

HC zerou mortalidade materna por tromboembolismo venoso

O tromboembolismo venoso (TEV), problema que atinge muitas mulheres gestantes e no pós-parto, acontece quando a trombose venosa (formação de coágulo nos vasos) é combinada à embolia pulmonar, com o coágulo atingindo a circulação dos pulmões. Como parte de um estudo, o setor de Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) adotou um protocolo baseado em grau de risco que foi capaz de zerar a mortalidade materna por TEV. O método foi descrito em artigo científico e premiado pela International Society for Thrombosis and Haemostasis no Canadá.

Risco

Primeira autora do estudo, a médica Venina Isabel Leme de Barros é obstetra do HCFMUSP e pesquisadora do Laboratório de Fisiologia Obstétrica (LIM 57). Ela explica que o risco de ocorrência do TEV aumenta dez vezes em mulheres durante a gestação e 30 vezes em mulheres no pós-parto. Além do ganho de peso que ocorre durante a gestação favorecer o TEV, os níveis de coagulação aumentam para evitar hemorragias após o parto, elevando o risco de formação de coágulos e, consequentemente, de trombose venosa.

“Trombose é um entupimento das veias de ocorrência mais comum na perna esquerda e, além da sequela ao membro em si, esse trombo pode migrar para o pulmão e levar à embolia pulmonar, que é letal em até 30% da vezes”, explica Venina Barros. Ela também diz que os períodos de maior risco se estabelecem durante a hospitalização e em até três meses após o parto.

Segundo a obstetra, o aumento da obesidade no Brasil e uma tendência nacional e mundial das mulheres engravidarem mais velhas impactaram diretamente a alta de casos relacionados à trombose na gravidez. Assim, a comunidade médica notou a necessidade de implantar um protocolo de prevenção.

Outro fator mencionado por Venina é o crescimento do risco de câncer de mama na população jovem – entre 20 e 40 anos –, que influencia diretamente na incidência de trombose por conta da quimioterapia. Além disso, a médica alerta que em dez anos a doença se tornou a quinta maior causa de mortes de gestantes.

Protocolo

O método desenvolvido para a prevenção foi aplicado a mais de 10 mil pacientes, das quais 15% apresentavam alto risco de tromboembolismo venoso. O protocolo baseia-se na triagem das grávidas em níveis de risco para trombose, momento em que é feita uma avaliação. Venina ressalta que, apesar de o risco ser maior no pós-parto, a análise deve ser feita em qualquer ocorrência de hospitalização.

“Você teve o parto e esteve internada. A primeira conduta é deambulação, ou seja, levantar e fazer exercício, mexer as pernas. Essa orientação é universal para todas as gestantes e para qualquer paciente hospitalizado”, pontua a obstetra. Por outro lado, nos casos de alto risco, o recomendado é prevenção com uso de heparinas de baixo peso molecular entre 8 a 12 horas após o parto.

Nos casos em que a paciente também possa ter um sangramento aumentado, é feita opção pelos métodos mecânicos, como as meias elásticas e o compressor vascular, que ajuda o retorno sanguíneo, acrescenta a pesquisadora.

É necessário que seja mantido um acompanhamento por três meses após o parto, uma vez que o risco permanece. Nesse sentido, a médica chama a atenção para casos de alto risco em que a medicação persiste por 15 dias e, em casos de altíssimo risco, com histórico de trombose, em que a medicação continua por 30 dias.

FONTE: Jornal da USP

Cirurgia robótica traz avanços na medicina e já é utilizada no Brasil

A primeira cirurgia robótica realizada no Brasil aconteceu há 15 anos e desde então o ramo vem crescendo, especialmente, com a chegada de novos fabricantes no País. Mesmo que a longo prazo, a expectativa de especialistas é de que, com uma produção independente de tecnologias, as cirurgias robóticas tenham seus custos reduzidos.

Maria José Carmona, professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), membro da Comissão de Inovação (InovaHC) e diretora da Divisão de Anestesiologia do Hospital das Clínicas da FMUSP, esclarece que a atual dependência brasileira de tecnologias importadas torna essas cirurgias muito caras.

Avanço

A maior precisão dos movimentos proporcionada pela tecnologia é apontada pela professora como um significativo avanço, tendo em vista que existe a possibilidade de realizar procedimentos mais sensíveis e delicados. A partir de um filtro dos pequenos tremores da mão do cirurgião, há um refinamento dos movimentos, de acordo com Maria José.

“Há uma evolução, um incremento de uma tecnologia que começou com as cirurgias por escopias. Apenas colocar pinça dentro de uma cavidade manipulada pelo cirurgião e, agora, nessa outra fase que já começou há uns 20 anos da cirurgia robótica, com a capacidade de manipular a distância a partir de um robô”, esclarece.

No contexto atual, o crescimento no número de cirurgias auxiliadas por robôs foi significativo com a chegada de novos fabricantes. Porém, na visão da professora, esse processo, no caso específico do Brasil, deve ser considerado como uma incorporação tecnológica. “Acho que nós temos que entender isso, porque o Brasil é um país dependente nessa área, ou seja, dependente da importação desses robôs”, justifica.

Prática

Em paralelo à incorporação tecnológica das cirurgias robóticas há um programa de educação continuada e de simulação de diversos estágios para o treinamento das equipes participantes. Dessa forma, Maria José ressalta que há duas frentes de investimento: a de tecnologia e a da equipe responsável pelo cuidado do paciente.

No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) e no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), a professora menciona a utilização de robôs para a realização das operações urológicas e torácicas, por exemplo. “Essa incorporação tecnológica é importante, uma vez que é, atualmente, considerado um procedimento padrão para alguns tipos de cirurgias. No entanto, é limitado pelo custo”, pondera.

Desafios

Maria José enfatiza a necessidade de um plano de independência tecnológica no Brasil, uma vez que, a cada cirurgia robótica realizada, o País está pagando royalties para aquele que produziu a tecnologia. Por exemplo, a professora cita as políticas governamentais da Coreia do Sul com incentivos a esse desenvolvimento, enquanto o Brasil ainda apresenta investimentos muito tímidos, em sua opinião.

A professora esclarece que, apesar do procedimento já ser considerado padrão em alguns casos, em decorrência da importação, ele tende a continuar com preços muito altos e com um acesso limitado, especialmente no Sistema Único de Saúde. “Acredito que devemos utilizar as tecnologias, mas também devemos estar alertas para termos, em algum momento, independência, uma produção interna e pesquisa voltada para essas tecnologias de ponta na área de saúde”, declara Maria José, acreditando no potencial de investimento de empresas brasileiras no ramo.

FONTE: Jornal da USP

Doença de Behçet: quais os sintomas e quando procurar ajuda

A síndrome de Behçet é uma doença rara, inflamatória crônica e autoimune que surge inicialmente com aftas e úlceras recorrentes na boca e partes genitais causando muito incômodo.  Por ser desconhecida, muitas vezes a pessoa não dá atenção aos sintomas que podem se agravar e atingir artérias, articulações, sistema neurológico e os olhos, conforme conta o reumatologista Rafael Alves Cordeiro, médico assistente do ambulatório de Doença de Behçet do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP).

“Dor e inflamação nas articulações, lesões de pele que podem ser semelhantes a acne e também envolvimento dos olhos, inflamação dos vasos sanguíneos da retina. Alguns pacientes podem apresentar trombose, podem apresentar aneurismas, podem ter inflamação no intestino e até mesmo inflamação no sistema nervoso. Boa parte desses envolvimentos acontece por conta de inflamação dos vasos sanguíneos, que é o que nós chamamos de vasculite. A doença de Behçet tem a peculiaridade de poder inflamar desde vasos sanguíneos muito pequenos até vasos sanguíneos médios e grandes”,  explica o reumatologista.

Sintomas e diagnóstico

As queixas de doença de Behçet geralmente começam muitos anos antes do diagnóstico com aftas bastante dolorosas. O aparecimento de úlceras acomete cerca de 80% dos pacientes. Já as  manifestações oculares atingem cerca de 50% dos quadros.  Como  as aftas podem aparecer em outras doenças como AIDS,  lúpus e doença de Crohn,  é importante a investigação.  A doença vai ficando cada vez mais fraca com o passar das décadas. Não há cura,  mas existe tratamento.

O diagnóstico de doença de Behçet é clínico, baseado nas manifestações apresentadas pelo paciente e analisadas pelo médico. Não há exame de laboratório que determine o diagnóstico.  A causa da doença é desconhecida e afeta diretamente o sistema imunológico.  Na maioria das vezes, o reumatologista necessita do auxílio do oftalmologista para saber se há inflamação no olho e qual estrutura está comprometida.

Evolução da doença

Homens jovens, entre 20 e 40 anos, apresentam uma evolução pior da doença do que as mulheres que têm um quadro mais leve. Já em crianças os casos são raros. A doença de Behçet é bastante comum em países que fazem parte da antiga rota da seda, que se estende da Ásia ao Mediterrâneo, afetando principalmente gregos, turcos, árabes e israelenses, além de coreanos, chineses e japoneses. Atualmente, todos os continentes têm casos da doença, inclusive o Brasil.

Como  as aftas podem aparecer em outras doenças como AIDS,  lúpus e doença de Crohn,  é importante a investigação. A doença vai ficando cada vez mais fraca. Não há cura,  mas tratamento.  “Nós não falamos exatamente em cura para a doença de Behçet. O que nós sabemos é que a doença tende a ficar mais leve  com o passar das décadas  e muitos pacientes podem ficar assintomáticos conforme envelhecem. O tratamento tem o objetivo de melhorar a qualidade de vida e também de impedir o acúmulo de danos que a doença pode provocar. Em casos mais graves, nós temos como usar medicações imunossupressoras, que são medicações que bloqueiam inflamações provocadas pelo sistema imunológico, com o objetivo não só de controlar a doença, mas também de diminuir as recaídas que a doença pode provocar”, explica Cordeiro.

FONTE: Jornal da USP

Casos de remissão do HIV podem auxiliar com novas pesquisas

Um paciente suíço teve a remissão do vírus do HIV após a realização de um transplante de medula óssea para o tratamento de uma grave leucemia. O paciente de Genebra, apelido atribuído ao indivíduo, pode ser a sexta pessoa a ser efetivamente curada do vírus da imunodeficiência humana. A comunicação foi feita durante a Conferência IAS sobre Ciência do HIV, ocorrida neste mês, na Alemanha.

Jorge Simão Casseb, professor e coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo, explica que a continuidade do tratamento segue sendo um dos caminhos essenciais para a remissão da doença.

Caso 

Entre os diferentes casos de pacientes curados, é possível observar uma importante semelhança: todos apresentavam leucemia — câncer que ocorre na formação das células sanguíneas —, e se beneficiaram do transplante de células-tronco. O especialista explica que, normalmente, o HIV infecta células que apresentam receptores do tipo CD4, e que uma diferença do caso mais recente para os anteriores é o fato de que, durante o transplante dos outros cinco pacientes, foi inserida uma célula que não apresentava um coreceptor, o CCR5. Assim, o ciclo viral não conseguia ser completado.

No caso atual, houve somente o tratamento em si e não a modificação do vírus. Mas Casseb chama a atenção para o fato de que não se pode afirmar que se trata da cura: “Como nós temos previamente mostrado, nos casos em que você para de tomar o medicamento, o vírus volta a se multiplicar e, neste caso, até o momento não voltou”.

O professor destaca ainda que a ciência e a saúde pública vêm trilhando bons caminhos na busca de uma solução para a questão, mas o Brasil segue com 1 milhão de pessoas que são portadoras da doença e, mesmo com um bom aparato que é referência no mundo, temos 40 mil casos e 11 mil mortos todos os anos. Grande parte desses casos estão associados à falta de adesão ao tratamento, diagnóstico tardio e falta de procura de ajuda.

“O grande problema é que o vírus fica escondido no nosso sistema imunológico, no sistema nervoso central, no nosso intestino. Então, uma vez que o indivíduo para de tomar o medicamento, o vírus volta a aparecer”, explica o especialista. As novas estratégias de tratamento mais avançadas procuram utilizar medicamentos injetáveis a cada dois meses, facilitando a continuidade do tratamento.

Potencial 

Outro aspecto a ser analisado sobre o caso é o seu potencial para influenciar novas pesquisas sobre o tema. Assim, o especialista reforça mais uma vez que os pacientes que tomam a medicação corretamente apresentam a carga viral controlada. “Do ponto de vista prático, você tem um tratamento eficiente que custa muito caro, mas que do ponto de vista de saúde pública e individualmente funciona.”

As pesquisas que tentam produzir vacinas seguem acontecendo, mas nenhuma funcionou até o momento em decorrência da dificuldade de combater o vírus. Atualmente, o foco é utilizar o tratamento para evitar o avanço do vírus. Além disso, o grande desafio na busca por uma cura é encontrar o vírus nos reservatórios — local em que o vírus não se multiplica — , assim ele fica integrado ao genoma humano e os anos passam com a carga viral zerada.

FONTE: Jornal da USP

Regeneração óssea com colágeno e açúcar de algas

Estudo conduzido na USP revela que um novo biomaterial, produzido com colágeno e carragenana (substância extraída de algas), pode estimular localmente respostas mineralizantes de células ósseas in vitro, demonstrando potencial para substituir com sucesso ossos naturais em implantes realizados para tratar traumas ou patologias, como osteossarcoma. O novo biomaterial, descrito recentemente em artigo na revista Biomacromolecules, foi desenvolvido por pesquisadores do Laboratório de Físico-Química de Superfícies e Coloides da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Atualmente, o padrão-ouro para implantes ósseos é a utilização de materiais autógenos, ou seja, retirados do corpo do próprio paciente. Esse processo, no entanto, carrega dificuldades: requer uma cirurgia adicional, com o risco de infecções, e nem sempre pode ser utilizado em grandes áreas. A principal tendência para superar esses problemas é o desenvolvimento de materiais artificiais que repliquem com similaridade, segurança e eficiência a complexidade da estrutura óssea, como este composto de colágeno tipo 1 (proteína mais abundante na matriz óssea) proveniente de bovinos ou suínos e de carragenana. Essa última substância se assemelha ao sulfato de condroitina, que é um dos compostos presentes nos ossos naturais e tem a função de organizar e mineralizar a matriz óssea e promover a adesão celular.

Para testar sua viabilidade e potencial, cientistas cultivaram em laboratório osteoblastos (células responsáveis pela formação da matriz óssea mineralizada) de duas formas: apenas com colágeno e com colágeno e carragenana. Imagens de microscópio da cultura de osteoblastos com colágeno e carragenana revelaram a presença de uma rede densa e uniforme de fibrilas entrelaçadas em sua superfície e fibrilas de colágeno com alinhamento semelhante aos tecidos conjuntivos densos. Os pesquisadores observaram ainda aumento na expressão de genes codificadores de proteínas relacionadas à mineralização óssea, como fosfatase alcalina (Alp), sialoproteína óssea (Bsp), osteocalcina (Oc) e osteopontina (Opn).

Viabilidade

“Nossos resultados mostraram que a combinação de carragenana e colágeno estimulou melhor as respostas mineralizantes das células do que apenas o colágeno, validando in vitro a hipótese de que a presença de um componente semelhante quimicamente e estruturalmente a um dos compostos encontrados nos ossos junto com o colágeno é fundamental no processo”, afirma Ana Paula Ramos, professora do Departamento de Química da FFCLRP e coordenadora do estudo. “A ideia agora é realizar testes in vivo para avaliar a possibilidade e a segurança de preencher qualquer tipo de defeito ósseo com esse biomaterial.”

Entre as principais vantagens do polissacarídeo extraído de algas, que já é usado com frequência na indústria alimentícia e de cosméticos como estabilizante, Ramos destaca sua abundância, seu baixo custo (em contraste ao alto custo comercial do sulfato de condroitina) e o fato de ser um material de fonte renovável, garantindo sua compatibilidade com o conceito de química verde, ramo da química que busca reduzir o uso de substâncias poluentes ou que possam comprometer o meio ambiente.

“Além do desenvolvimento do biomaterial a ser usado em implantes ósseos, vale destacar que, ao criar uma matriz biomimética do zero e misturá-la ao tecido natural, abrimos espaço para a realização de estudos básicos”, afirma Lucas Fabrício Bahia Nogueira, pesquisador do Departamento de Química da FFCLRP e autor do estudo.

“Isso permite que pesquisadores de diferentes áreas possam entender e observar a interação dessas células com o microambiente e os mecanismos de formação do tecido mineralizado e apliquem o conhecimento também em estudos que abordam a mineralização em outras doenças, como as cardiovasculares e renais”, acrescenta Nogueira. O estudo interdisciplinar foi realizado em colaboração com o Laboratório de Nanobiotecnologia Aplicada da FFCLRP, coordenado pelo professor Pietro Ciancaglini. O artigo Collagen/κ-Carrageenan-Based Scaffolds as Biomimetic Constructs for In Vitro Bone Mineralization Studies pode ser lido aqui.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui

*Da Agência Fapesp, com edição de Júlio Bernardes

FONTE: Jornal da USP

O açúcar é vital para o organismo, mas o exagero pode provocar complicações na saúde

Uma revisão de estudos publicada recentemente aponta para a relação entre o consumo de açúcar e a incidência de câncer. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera seguro um consumo de açúcar equivalente a 5% ou 10% das calorias diárias. Isso representa uma quantidade em torno de 6 a 12 colheres de chá de açúcar por dia. A quantidade não é baixa, mas o alerta permanece, uma vez que boa parte do açúcar consumido no dia a dia está escondido nos alimentos em forma de sucrose e frutose, sobretudo em alimentos industrializados.

Vale ressaltar que o açúcar é vital para o funcionamento do organismo humano, mas o exagero em seu uso e complicações de saúde decorrentes disso podem facilitar o aparecimento de cânceres.

Relação açúcar e câncer

Segundo Maria Del Pilar Estevez Diz, médica oncologista e diretora do Corpo Clínico do Instituto do Câncer do Estado de SP (Icesp), a relação entre consumo de açúcar e aparecimento de câncer é indireta. “O aumento do consumo de açúcar está associado com outras doenças que estão diretamente relacionadas ao câncer, como a obesidade e diabete. Existem alguns estudos experimentais mostrando que o consumo excessivo de açúcar em animais de laboratório pode levar a um estado inflamatório e isso facilitaria o advento de câncer, mas a gente não tem isso de uma maneira tão clara, o açúcar em si não é um carcinógeno.”

Nesse mesmo princípio, diversos cânceres podem surgir devido a esse processo inflamatório. “A gente tem uma série de câncer relacionada a essa condição clínica e que está muito associada também ao estilo de vida, como o câncer de mama, o câncer de próstata, colorretal, rim, fígado, pâncreas, câncer uterino e ovário”, diz Maria Del Pilar.

Aspartame

O uso de adoçantes, que são muito comuns em produtos industrializados, também deve ser ponto de atenção. Maria Del Pilar explica que não é proibido usar essas substâncias, mas que elas estão potencialmente ligadas ao câncer e devem ser evitadas, com destaque para o aspartame, incluído recentemente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como substância “possivelmente cancerígena”. “Hoje o que está sendo considerado seguro é equivalente a no máximo 40 mg por quilo por dia, o que daria cerca de nove latinhas de refrigerantes por dia. Isso não é pouco. É que esses adoçantes não estão presentes só no refrigerante, eles estão presentes numa série de produtos alimentares. Então, às vezes a pessoa pode estar consumindo muito adoçante sem saber. A orientação geral é: sempre que possível não consuma. É uma mudança de hábito mesmo”, enfatiza.

Dieta durante tratamento

Para uma pessoa que está se tratando de um câncer, as recomendações dadas à população geral se mantêm. “O paciente com câncer precisa ter uma dieta variada, que ofereça carboidratos numa quantidade razoável, que ofereça um pouco de gordura, que ofereça proteínas e que ofereça muitas fibras”, orienta a oncologista. Nesses casos, os alimentos industrializados também devem ser evitados. “Eles [industrializados] costumam ter uma quantidade excessiva de sal e excessiva de açúcar, sem que a gente consiga perceber”, acrescenta.

A médica também aponta para ações preventivas, como uma dieta equilibrada e o exercício físico constante. “Eles diminuem o estado inflamatório do organismo, então isso acaba reduzindo o risco de câncer e acaba reduzindo o risco de muitas outras doenças crônicas.”

FONTE: Jornal da USP

Leite materno corrige alterações na microbiota intestinal de bebês

Pesquisadores da USP identificaram que o parto não é um fator determinante para a construção da microbiota da criança, ao contrário do que apontava a literatura científica. Resultados primários do Projeto Germina, que acompanha o desenvolvimento de 500 crianças nos primeiros mil dias, mostram que, nos primeiros três meses, o leite materno pode corrigir as eventuais complicações intestinais.

Definida como o conjunto de microrganismos que habitam o intestino, a microbiota está relacionada com diversas doenças autoimunes, diabetes, obesidade, desnutrição, alergias alimentares na pele e doenças inflamatórias intestinais, como a doença de Crohn. Em crianças prematuras, por exemplo, uma microbiota muito desregulada, com grande número de bactérias disbióticas, que favorecem o desequilíbrio da cadeia de microrganismos, pode resultar em um quadro de sepse, infecções que figuram como uma das principais causas de mortalidade infantil.

“Observamos que o leite materno carrega uma carga de bactérias benéficas que se sobrepõe às bactérias maléficas e assim consegue dar resiliência à microbiota. Com isso, o fato de o bebê ter nascido de parto normal ou cesárea, prematuro ou nascido de nove meses tem pouco impacto na modulação da microbiota. O principal fator de modulação é o leite”, afirmou a coordenadora do estudo, professora Carla Taddei, docente colaboradora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, à Assessoria de Imprensa do ICB.

Em contrapartida, o leite de fórmula se mostrou incapaz de produzir o mesmo grau de modulações positivas. “O que irá determinar como será a microbiota são, principalmente, as interações das bactérias com o ambiente do intestino, além da genética familiar e dos diversos eventos que acontecem nesses primeiros dias, como o parto, os medicamentos que a criança recebe [principalmente antibióticos] e o tipo de dieta”, explica a professora.

Pouca diferença faz também se o leite materno é oriundo da mãe ou de bancos de leite. Isso porque um estudo anterior conduzido pela FCF no Hospital Universitário, e coordenado pela docente, identificou que, apesar das diferenças nutricionais proporcionadas pela pasteurização, os resultados na modulação da microbiota são os mesmos.

O projeto mais recente, Evolução da microbiota fecal de recém-nascidos prematuros submetidos a colostroterapia durante o período de internação em uma unidade de terapia intensiva neonatal, coordenado por Carla Taddei, tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Equilíbrio de longa duração

A formação da microbiota nos primeiros dois anos define como ela será durante o resto da vida, já que é nesse momento que se constrói a microbiota basal, que permanecerá, independentemente dos hábitos alimentares e questões de saúde.

“Após esse período, o que modula a microbiota é o ambiente e a dieta. No entanto, por mais que a microbiota sofra alterações, a qualquer momento ela pode retornar a ser como era nos primeiros dois anos. Por exemplo, se um adulto se tornar vegano, sua microbiota será alterada. Mas se ele abandonar o veganismo, ela voltará à forma basal”, pontua Taddei.

Para as mães que não podem amamentar, a melhor solução é, portanto, adquirir o leite materno de bancos de leite. “Nos hospitais, os leites passam por diversas avaliações que garantem uma segurança microbiológica e identificam suas propriedades nutricionais. Com isso, os hospitais Amigos da Criança selecionam os leites que mais se adequam às propriedades que cada bebê precisa, de acordo, por exemplo, com seu peso e seus índices de cálcio no sangue”, detalha a docente.

Sequenciamento do DNA

Os resultados da pesquisa foram obtidos por meio de sequenciamento de dados do DNA dos 500 voluntários. Esse procedimento é realizado por meio de uma tecnologia inovadora no país, chamada de “shotgun”, que permite analisar milhões de informações das amostras em um curto período.

“Com essa tecnologia, conseguimos analisar 5 milhões de sequências de DNA por criança. Enquanto com as máquinas convencionais conseguimos algo em torno de 100 a 200 mil. Ao final desses mil dias, teremos um contingente de dados que poderão ainda ser analisados por mais de dez anos”, comenta Taddei.

O recurso e o projeto são fruto de um financiamento de US$ 2,8 milhões da Wellcome Leap, organização britânica sem fins lucrativos. Com isso, sete grupos de pesquisadores da USP, de diferentes instituições, se reuniram no Projeto Germina para analisar com detalhes o que é considerado um desenvolvimento saudável de uma criança de até três anos, do ponto de vista da genética, microbiologia, nutrição, fonoaudiologia, pediatria, psicologia, psiquiatria de crianças e neurociência do desenvolvimento.

“Esperamos fazer um modelo que possa prever, nos primeiros três meses, como a criança estará com três anos, e assim orientar tratamentos personalizados”, conclui a professora.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

*Da Agência Fapesp, editado por Fabiana Mariz
**Sob supervisão de Moisés Dorado e Simone Gomes

FONTE: Jornal da USP

Desigualdade de gênero pode afetar estrutura cerebral de mulheres

Um novo estudo encontrou evidências de diferenças significativas na espessura do córtex cerebral entre homens e mulheres em populações com grande desigualdade de gênero. Nas regiões do cérebro onde foi identificada, a variação é interpretada pelos pesquisadores como maior vulnerabilidade em termos de saúde mental – e pode indicar que as mulheres estiveram mais expostas a situações adversas desde o início da vida.

Quando comparadas, imagens de ressonância de homens e mulheres mostraram diferenças nas seguintes regiões: giro cingulado anterior caudal direito, giro orbitofrontal direito e córtex occipital lateral esquerdo. Nesta população, os homens possuíam uma espessura cortical maior em relação às mulheres nessas áreas. Ainda não há como determinar as consequências destas diferenças na prática, mas sabe-se que estas regiões são responsáveis pelo gerenciamento das emoções, pela resiliência em situações adversas e na regulação dos sentimentos negativos. Também são associadas ao processamento de memória, à avaliação de riscos e à modulação do medo e ansiedade.

O índice de desigualdade de gênero foi estabelecido pelo Fórum Econômico Mundial em 2006. Desde então, é avaliado anualmente em 156 países do mundo e abrange quatro dimensões: participação e oportunidade econômica, acesso à educação, empoderamento político, saúde e sobrevivência. Os dados são colhidos localmente e se traduzem em uma comparação das informações para compor um indicativo da diferença entre homens e mulheres, considerados a partir de sexo biológico somente, sem levar em conta as identidade de gênero. No artigo, os pesquisadores reconhecem que esta é uma limitação dos dados com que trabalharam, já que não há sobreposição entre sexo biológico e identidade de gênero.

Com essas informações, foi possível correlacionar situações de vida menos favoráveis das mulheres com o desenvolvimento neuronal. Assim, menos escolaridade, menos cuidados na infância, e maior mortalidade materna parecem ter impacto não só psicológico, mas também na estrutura do cérebro.

O que torna o estudo especialmente relevante é a utilização de diferentes populações combinadas e uma amostra grande, trazendo uma nova perspectiva sobre essas diferenças cerebrais. Foram colhidas e analisadas por um grupo internacional de cientistas imagens de ressonância magnética de 7876 adultos, entre 18 e 40 anos de idade, de 79 países.

O médico Pedro Gomes Rosa, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) que participou da pesquisa, destaca alguns pontos importantes para compreender os resultados obtidos:

Quando nascemos, existem diferenças entre os cérebros de bebês do sexo masculino e feminino. No entanto, as semelhanças entre eles são muito maiores, sem que sejam percebidas diferenças na região cortical. Os resultados da pesquisa não são explicados pela biologia somente, mas considerando uma variável social específica, a desigualdade de gênero, que pode ter impacto ao longo do crescimento. As variáveis sociais são difíceis de serem estudadas de forma isolada. Este estudo é pioneiro nesse sentido, pois conseguimos mostrar uma relação entre essa variável e modificações na espessura cortical.”

O pesquisador explica que as diferenças documentadas no estudo podem ser compreendidas como um reflexo do que aconteceu ao longo da vida, particularmente em alguns momentos da infância e adolescência. “Há dois momentos dramáticos em termos de neurodesenvolvimento – os chamados primeiros mil dias, que englobam a gestação e os dois primeiros anos de vida, além da puberdade. As meninas iniciam a puberdade antes dos meninos muitas vezes em um contexto de estresse, o que tem reflexos na saúde mental”, disse ao Jornal da USP.

No Brasil, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, as meninas de 13 a 17 anos se sentem mais tristes, sofrem mais violência doméstica e abuso sexual e possuem uma maior insatisfação com o próprio corpo em relação aos meninos. Esses dados justificam um quadro menos favorável em termos de bem-estar psicológico.

Para o neurocientista Raymundo Machado de Azevedo Neto, assistente de pesquisa no Instituto de Cérebro no Hospital Albert Einstein, o trabalho apresentou resultados coerentes com o que ele tem se deparado em diversos estudos. “Maiores diferenças de espessura cortical e volume de hipocampo entre homens e mulheres em populações com maior desigualdade social eram esperadas por conta dos estudos prévios. O que esse estudo tem de novidade é a possibilidade de verificar essas diferenças combinando diferentes populações e com uma amostra robusta.”

As imagens foram feitas em diferentes países (veja mapa). Uma das preocupações dos pesquisadores foi verificar se havia a possibilidade de distorções locais, isto é, alguns dos países apresentavam resultados destoantes do resultado mais amplo. Entretanto, de acordo com os autores, os testes estatísticos mostraram que o resultado permanece constante nos diferentes países, sem apresentar variações de uma localidade a outra, ou mesmo entre regiões diferentes, o que reforça a possibilidade de um fenômeno que vai além dos aspectos culturais locais.

 

Mapa mostra regiões que entraram na pesquisa. No estudo, quanto maior o nível de desigualdade de gênero em um país, maior foi a diferença média encontrada na espessura cortical entre mulheres e homens – Imagem do artigo/PNAS Psychological and Cognitive Sciences

Ressalvas

Bruna Velasques, psicóloga e neurocientista especializada em desenvolvimento infantil, vê os resultados com ressalvas: “o fato da pesquisa ter sido realizada em diversas culturas não significa que a cultura não possa ter promovido esse efeito. O neocórtex e as áreas subcorticais são estruturas dependentes do ambiente. Quando falamos em neurodesenvolvimento estamos falando de estruturas que estão em formação durante o contato da criança com o mundo que a cerca. E a maior parte das culturas têm essa oposição de homem versus mulher. Estudos que tentam identificar as diferenças de gênero e os efeitos da pobreza são sensíveis, já que é difícil isolar essas variáveis.” Ela acrescenta ainda que o fato de se verificar as diferenças estruturais cerebrais entre os gêneros não implica em saber o que essas diferenças significam efetivamente.

É nessa direção que Pedro Gomes Barbosa conclui: “o estudo traz novas perguntas em vez de responder a questões que gostaríamos. As variáveis precisarão ser melhor compreendidas. Por exemplo, como pensar a prevalência de depressão entre as mulheres? Ou o abuso de substâncias entre os homens?”

artigo foi liderado pelo pesquisador Nicolas Crossley, professor visitante da Universidade de Oxford, Reino Unido e por André Zugman, pesquisador do National Institute of Mental Health, nos Estados Unidos, que completou seu doutorado na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). Contou ainda com a colaboração dos professores do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) e dos pesquisadores do Laboratório de Neuroimagem em Psiquiatria da FMUSP.

Mais informações: e-mail pedrogomesrosa@gmail.com, com Pedro Gomes Rosa

*Pesquisadora colaboradora da FMUSP, com edição de Luiza Caires e Valéria Dias
**Sob supervisão de Moisés Dorado e Simone Gomes de Sá

FONTE: Jornal da USP

Por dentro do coração: pesquisa busca entender recusa familiar na doação de órgãos

Estigma, falta de preparo da equipe médica e o processo de luto dos familiares podem ser fatores que dificultam a doação de órgãos

De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), a fila de espera por um órgão no Brasil ultrapassa 50 mil pessoas. O dado é preocupante, principalmente quando alinhado ao aumento do percentual de recusas em doar, que atingiu 47% em 2022. Frente a isso, pesquisa da Escola de Enfermagem (EE) da USP analisa o contexto envolvido na recusa familiar, o que pode ajudar a traçar estratégias para reverter o quadro.

No artigo Family Refusal of Heart Valve Donation, publicado na revista Transplantation Proceedings, foi estudada especificamente a recusa do donativo das válvulas cardíacas – responsáveis por controlar o fluxo de sangue e participar do seu processo de bombeamento para o corpo. Para a pesquisa, foi consultado um banco de dados do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) com termos de autorização familiares de doação de órgãos e tecidos.

Entre os anos de 2001 a 2020, 236 pessoas (9,65% do total apurado) recusaram doar as válvulas cardíacas de seus entes queridos. “Nós buscamos investigar se a idade, o tipo da instituição e a razão do óbito eram fatores influentes na decisão da família e se existe uma relação entre os períodos de tempo. Para isso, realizamos alguns testes estatísticos para avaliar o aumento ou a redução da recusa ao longo dos  anos”, explica Rafael Pimentel, doutorando em Gerenciamento de Enfermagem na EEUSP,  ao Jornal da USP.

Os pesquisadores apontaram um perfil entre o grupo de recusa: a maioria dos pacientes tinha entre 41 a 59 anos e estava em instituições privadas. Baseado em relatos que ouviu das famílias, o pesquisador acredita que o simbolismo social do coração e o apego da família ao corpo podem ser possíveis motivos por trás das negativas. “Pode ser que os familiares tenham algum desejo de preservação do corpo, além do próprio significado do órgão. Com a remoção da válvula o coração seria ‘violado’, sendo que o lugar é vinculado ao amor e ao afeto.”

Abordagem médica

A doação de órgãos pode ser feita em vida ou após o diagnóstico de morte encefálica – quando ocorre a ausência de funções neurológicas e o quadro se torna irreversível. No último caso, a escolha de quais órgãos serão doados fica a cargo da família ou cônjuge do paciente. Ou seja, é possível escolher o que será doado e o que não será. Nesse caso, Pimentel frisa a importância de uma equipe médica bem preparada para lidar com delicadeza e conversar com os familiares.

“Essa perspectiva de ‘violação’ é muito baseada nessa representação social por falta de conhecimento sobre o funcionamento do processo, até mesmo por um déficit de informações que o profissional deveria fornecer no momento da entrevista familiar. Essa deve ser uma conversa de esclarecimento e oferecimento da oportunidade de lidar com o luto”, propõe o pesquisador. Atualmente, não existem protocolos oficiais para a abordagem dos familiares do paciente.

Contudo, há uma legislação reguladora, que orienta o trabalho da equipe médica e do ambiente hospitalar: conhecida como a “Lei dos Transplantes”, de 18 de outubro de 2017. Além disso, existe o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), administrado pelo Ministério da Saúde, que é considerado o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo.

Considerando a atuação do programa concisa, Pimentel avalia que seria preciso expandir o programa para diferentes áreas e traçar estratégias para melhorar cada vez mais o atendimento médico. “Melhorar a entrevista implicaria em menos familiares dizendo ‘não’. Nós precisamos investir em um plano nacional de capacitação desses profissionais o quanto antes.”

O projeto de lei (PL) 2839/2019, intitulado Lei Tatiane, busca a inserção de matérias e programas de ensino sobre a doação e o Transplante de Órgãos na grade curricular escolar e universitária. O PL, que aguarda por votação no Senado, leva o nome de Tatiane Penhalosa, que faleceu aos 32 anos esperando por um transplante de coração. Ela permaneceu na fila por dois anos, mas não resistiu à espera.

A fila de espera por transplantes no Brasil cresceu 30,45% após o período pandêmico, segundo dados da ABTO. A doação de órgãos é uma ação fundamental para o sistema de saúde: um doador pode beneficiar múltiplas pessoas, que por sua vez, podem retomar suas vidas. Muitas doenças crônicas podem ser tratadas apenas por meio de um transplante, esgotadas todas as opções de tratamento. Podem ser transplantados rins, fígado, coração, pâncreas e pulmões, além de tecidos como as córneas, válvulas cardíacas, vasos sanguíneos, e até mesmo segmentos de osso.

“Agora é preciso retomar os esforços para reduzir essa fila de espera, otimizando os recursos de saúde. Se otimizarmos o processo de doação nós reduzimos os recursos familiares gastos com o paciente em morte encefálica e aumentamos a qualidade no cuidado com o paciente”, afirma o pesquisador.

Pimentel ainda destaca que o processo de doação pode ser uma alternativa para a família enfrentar o luto e ressignificar a vivência da perda de seu ente querido. “O mais importante não é só doar ou não doar, mas a família entender que aquilo é uma oportunidade de transformação. Hoje a gente ainda não tem uma cultura doadora fortalecida no País, já que ainda existe um estigma muito grande e uma dificuldade em lidar com a morte. Porém, essa conversa é muito importante e precisa adentrar os lares brasileiros.”

Mais informações: e-mail rafaelpimentel@usp.br, com Rafael Rodrigo da Silva Pimentel

*Sob supervisão de Fabiana Mariz e Luiza Caires

FONTE: Jornal da USP