Pesquisa investiga impactos da radioterapia no cérebro de pacientes com câncer

Ressonância magnética revela alterações pós-radioterapia, como maior difusão de líquidos pelos tecidos; estudo não contraindica tratamento, mas achados podem orientar proteção de áreas sensíveis

Apesar de imprescindível para o tratamento de muitos tumores, a radioterapia pode lesar tecidos saudáveis. Preocupadas com a qualidade de vida daqueles que cada vez mais sobrevivem à doença, pesquisadoras da USP em Ribeirão Preto decidiram avaliar os impactos da radiação no cérebro e verificaram que, antes das perdas de volume e espessura cortical (camada que envolve o cérebro), há um aumento da difusão de líquidos entre os tecidos.

Para além de analisar como a radiação pode prejudicar tecidos saudáveis, uma vez que não se questiona a radioterapia como tratamento, o objetivo do estudo foi obter informações para proteger estruturas sensíveis, garante a pesquisadora Érika Joselyn Ludeña Maza, que trabalha sob orientação da professora Renata Ferranti Leoni do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Para as pesquisadoras, essa circulação mais fluida da água pelas regiões afetadas com a radiação pode ser útil ao planejamento da terapia.

Segundo Érika, já se conhecia a ação da radioterapia sobre a espessura cortical (camada que recobre o cérebro) e sobre o hipocampo (controle da aprendizagem, memória e emoções), obtida em pesquisa com carcinoma nasofaríngeo (região do nariz e da boca).

Assim, ela decidiu concentrar sua investigação em portadores de glioma (tumor que se origina nas células gliais, fundamentais para o sistema nervoso central) e analisar, além das estruturas cerebrais, como estava a difusão de líquidos entre os tecidos.

As pesquisadoras avaliaram imagens de ressonância magnética de 42 pessoas entre 19 e 66 anos em tratamento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP). Analisaram imagens anteriores à radioterapia pós-operatória e aquelas feitas até oito meses após a radiação, para um grupo de 25 pacientes (grupo A), e entre nove e 16 meses após a radioterapia para um grupo de 13 pacientes (grupo B). A diferença de tempo entre as imagens serviu para avaliar os efeitos a curto prazo da radiação no grupo A e os de longo prazo no grupo B.

“Se existe uma região com mais células, a difusão é mais restrita, se as células vão morrendo, existe mais espaço para a água se difundir”, afirma Renata, informando que o aumento da difusão da água nos tecidos cerebrais indica a perda das células, uma atrofia daquele local, o que significa que o volume dos tecidos saudáveis diminuiu.

A redução do volume das estruturas cerebrais é explicada pela perda de neurônios e, “acredita-se que essa perda seja efeito indireto da radiação que altera a permeabilidade dos vasos sanguíneos, favorecendo a chegada de toxinas e aumento da inflamação na região irradiada, continua a professora. Como a difusão da água depende da estrutura cerebral (axônios e neurônios), “se algo acontece a essas estruturas, o fluxo da água muda de direção”.

Mas essa alteração não foi observada em todos os pacientes do estudo. As pesquisadoras afirmam que “alguns pacientes vão ter uma atrofia maior e algumas regiões vão ter uma alteração na difusão de água maior que outras”. Esses aspectos, segundo Érika, são multifatoriais e sofrem influência da idade dos pacientes, “sugerindo que pessoas mais velhas podem ser mais suscetíveis”, da dosagem de radiação, pois “os danos são maiores quando a dose é maior em determinada região”, e do tempo entre a finalização da radioterapia e a realização da ressonância magnética.

Porém, ao analisarem os efeitos mais precoces e os mais tardios, viram que “algumas alterações aparecem primeiro e outras aparecem depois de meses ou anos”, comenta Érika, adiantando que a mudança na difusão da água foi observada antes do aparecimento da atrofia e da perda de volume cerebral. “Pode ser que esse seja um biomarcador precoce, algo para se olhar logo depois da radioterapia”, acrescenta a professora Renata.

Planejamento radioterápico para proteção de áreas sensíveis

Como forma de tentar mitigar os efeitos negativos da radiação nos tecidos saudáveis, equipes de saúde já realizam planejamento prévio e a proteção dessas regiões durante o procedimento. Com a evolução da radioterapia, “a primeira coisa a se pensar é o planejamento; se o médico, o radioterapeuta e o físico médico conseguem fazer um planejamento que consiga proteger essas regiões, já é interessante”, afirma Renata.

Quanto aos tratamentos de gliomas, a professora informa que, para alguns casos, já existe forma de proteção da região do hipocampo (sede da memória). “A nossa ideia foi ver se existem outras regiões que também seriam importantes, e vimos algumas próximas ao hipocampo, o que indica que a região do lobo temporal é crítica, então se o planejamento puder ser feito protegendo essas regiões é ótimo.”

As regiões mais sensíveis, de acordo com o estudo, são os lobos frontal e temporal (além do próprio hipocampo). São estruturas que sofrem naturalmente com atrofia, perda de volume e espessura cortical no envelhecimento saudável, podendo facilitar o desenvolvimento do Alzheimer na população idosa.

A pesquisa confirma que existem outras partes do cérebro, além do hipocampo, que precisam de um cuidado mais específico durante o planejamento radioterápico, pois os danos podem levar a uma piora na qualidade de vida dos pacientes após o tratamento do glioma. Porém, dependendo do grau da doença, “os pacientes podem ter sequelas por conta do tratamento”, dizem as pesquisadoras, adiantando que “em momento algum o estudo aponta a não realização da radioterapia”.

Estudos recentes sugerem que o uso de anti-inflamatórios pode minimizar os danos. “Se um dos efeitos da radiação é aumentar a neuroinflamação, então o uso de anti-inflamatórios específicos poderia prevenir esses impactos”, afirmam.

No entanto, a proteção não deve ser mais importante do que o tratamento. Tanto Érika quanto Renata enfatizam a necessidade de combater a doença, até porque na radioterapia existe o princípio de que “a radiação tem que ser tão baixa quanto razoavelmente possível”, lembra Érika, afirmando que dessa forma os pacientes não recebem quantidades desnecessárias de radiação.

Os resultados desse estudo podem ser conferidos no artigo publicado em março de 2025 na revista Journal of Neuro-Oncology.

Mais informações: leonirf@usp.br, com a professora Renata Leoni

*Estagiária sob supervisão de Rita Stella

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Tecnologia vestível assegura recuperação total de lesão de joelho

Lesões no joelho são comuns em atletas: os jogadores de futebol, por exemplo, frequentemente sofrem com a ruptura do ligamento cruzado anterior (LCA). O problema, como verificado agora, é que a recuperação da cirurgia de reconstrução deste ligamento não depende somente de tempo, mas do restabelecimento da capacidade biomecânica (habilidade de suportar forças e cargas sem sofrer danos) do movimento. O achado, publicado em abril deste ano em artigo da Knee Surgery, Sports Traumatology,  Arthroscopy, vem de estudos do educador físico João Belleboni Marques realizados durante o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Reabilitação e Desempenho Funcional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

Segundo o orientador da pesquisa, o professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) da USP Paulo Roberto Santiago, o ligamento cruzado anterior é uma estrutura essencial do joelho para a estabilidade, principalmente durante movimentos de giro e mudança de direção. A preocupação dos especialistas com a recuperação biomecânica desses movimentos se deve ao fato de que mudanças dessas estruturas podem causar lesões em outras, como os meniscos e a cartilagem.

Assim, os pesquisadores decidiram analisar a qualidade desses movimentos, o que só foi possível graças à tecnologia vestível, dispositivo capaz de rastrear frequência cardíaca, padrões de sono e atividade física.

Entre os resultados,  os pesquisadores verificaram que o atleta com o LCA operado consegue executar movimento de mudança de direção em tempo similar ao atleta que nunca passou pelo problema, mas com déficits biomecânicos (limitações do movimento) e estratégias de movimentos compensatórios (ajustes ao realizar um padrão de movimento).

O achado, afirma o professor Santiago, traz mudança fundamental na análise da recuperação de um atleta com esse tipo de lesão, pois, “além do tempo de recuperação pós-cirúrgico, outros fatores como a avaliação biomecânica do movimento são igualmente ou mais importantes”.

Quanto ao uso da tecnologia vestível, o pesquisador acredita que os sensores e dispositivos acoplados ao corpo podem revolucionar os parâmetros de avaliação da saúde e do desempenho de atletas, já que conseguem “identificar padrões e tendências imperceptíveis ao olho humano, permitindo intervenções preventivas, antes que lesões ocorram”.

Teste de mudança de direção em “L”, realizado com os sensores vestíveis, mede, além do tempo, as estratégias de compensação e força aplicadas pelos atletas – Foto: Reprodução/ Artigo

Reaprendizagem motora eficiente para evitar lesões

A pesquisa contou com a participação 26 atletas profissionais de futebol masculino que atuam na Qatar Stars League, primeira divisão do futebol catari. Dez desses jogadores possuíam histórico de reconstrução cirúrgica do LCA, enquanto os outros 16 atletas não possuíam lesão nos membros inferiores no momento do estudo, e portanto, foram designados como grupo controle.

Para avaliar a qualidade do movimento de cada atleta foi solicitado que realizassem uma corrida de 20 metros e uma mudança abrupta de direção em 90°, ou seja, em “L”, utilizando trajes com sensores na pelve, laterais das coxas, canelas e no pé, apropriados para medir os ângulos de flexão das articulações do quadril, joelho e tornozelo. Além disso, os jogadores usaram palmilhas capazes de identificar a força vertical aplicada durante a atividade.

Com a experimentação, verificaram que a diferença na performance dos dois grupos de atletas não foi o tempo de execução do movimento e sim a mudança na angulação do tornozelo e do joelho, caracterizados como déficits biomecânicos, e na força aplicada nos membros inferiores daqueles que tinham o LCA operado.

O professor Santiago explica que a mecânica do movimento é fundamental para avaliar a recuperação de um atleta, que não deve ficar apenas na capacidade de realizar o exercício. “O verdadeiro desafio reside na capacidade do atleta de realizar uma reaprendizagem motora eficiente, adaptando-se à sua nova realidade estrutural.”

O risco dos déficits mecânicos observados nos atletas após a recuperação inicial e a cicatrização do tecido é que, em resposta, “o corpo desenvolve estratégias de movimento compensatório, ou seja, adaptações que permitem a continuidade funcional apesar das limitações”, afirma o pesquisador. A situação é problemática por aumentar a probabilidade de novas lesões, já que propiciam transferência de carga para o lado não lesionado, gerando maior estresse nas estruturas, exigem maior gasto energético, provocando fadiga precoce, além de reduzir a estabilização em movimentos rápidos e inesperados.

Atletas que operaram o joelho utilizam estratégias compensatórias para manter o mesmo tempo de execução de corrida em “L” – Foto: Reprodução/ Artigo

Fronteira da medicina esportiva e reabilitação

A tecnologia vestível funciona como uma ferramenta informativa, capaz de colher dados do indivíduo analisado. A possibilidade de uma análise mais precisa e completa do desempenho de um atleta “tem potencial para revolucionar a análise de performance esportiva, é substancial e já começa a se materializar”, afirma o professor.

Dispositivos de tecnologia vestível mais sofisticados são encontrados apenas em experimentação científica. “A transição destes recursos avançados do laboratório para a clínica representa uma das fronteiras mais promissoras na medicina esportiva moderna e ciências da reabilitação”, assegura Santiago.

Nesse contexto, as perspectivas de futuro são promissoras para a área. “A conexão entre tecnologia vestível e inteligência artificial é animadora, pois ilustra um sistema que não apenas coleta dados, mas os interpreta e fornece orientações práticas em tempo real”, finaliza Santiago.

Mais informações: e-mail paulosantiago@usp.br, com o professor Paulo Roberto Pereira Santiago

*Estagiário sob orientação de Rita Stella

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Pesquisa estima quanto tempo de vida saudável perdemos comendo mal

O consumo contínuo de cerca de 115 gramas de bolachas recheadas – menos de um pacote – está associado à perda média de 39 minutos de vida saudável. O dado integra uma avaliação inédita de impacto combinado para a saúde humana e o meio ambiente dos principais alimentos consumidos no País.

estudo foi publicado nesta sexta-feira (9) na revista científica International Journal of Environmental Research and Public Health e se ancora no Índice Nutricional de Saúde (Heni) – um sistema de pontuação sobre o impacto da alimentação à saúde em anos de vida saudável (sem incapacidades). O índice utiliza dados epidemiológicos para classificar e avaliar alimentos e dietas conforme as características nutricionais dos itens.

A pesquisa analisou os 33 alimentos que mais contribuem para a ingestão energética dos brasileiros usando o índice. Além disso, os cientistas calcularam o impacto ambiental das porções em emissão de gases de efeito estufa (CO₂ equivalente) e volume de água utilizado. O trabalho é assinado por pesquisadores da USP, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Técnica da Dinamarca (DTU).

No geral, produtos derivados de animais, particularmente carne vermelha, tiveram os maiores custos ambientais. Já alimentos de origem vegetal, como feijão e frutas, tiveram melhores pontuações no Heni e menores impactos ambientais. Ao Jornal da USP, a professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP Aline Martins de Carvalho explica que a quantidade de minutos de vida perdidos está associada aos hábitos de consumo.

 “Não se trata do consumo de uma única bolacha, nem de uma única vez na vida, mas sim um consumo contínuo dessa porção de bolachas. Se a pessoa consome por muitos anos e de forma diária, esse hábito irá reduzir o tempo de vida saudável dela” – Aline Martins de Carvalho

De acordo com a pesquisa, o Índice Nutricional de Saúde médio no Brasil foi de -5,89 minutos, variando de -39,69 minutos para bolachas recheadas a +17,22 minutos para o consumo de peixes de água doce. Entre os piores colocados também estão a carne suína (-36,09 minutos), margarina com ou sem sal (-24,76 minutos), carne bovina (-21,86 minutos) e biscoitos salgados (-19,48 minutos). Por outro lado, alimentos in natura como peixes de água doce (+17,22 minutos), banana (+8,08 minutos), feijão (+6,53 minutos); e arroz com feijão (+2,11 minutos ) mostraram bom desempenho tanto para a saúde humana quanto para a sustentabilidade do planeta.

A pizza de muçarela se destacou negativamente com o uso de mais de 306 litros de água para uma porção média de 280 gramas. Além do impacto negativo para a saúde, um prato de carne bovina emite mais de 21 kg de CO₂ equivalente, enquanto a banana tem emissão de apenas 0,1 kg de CO₂ equivalente e utiliza 14,8 litros de água por porção.

“Nossas descobertas fornecem entendimentos valiosos sobre as consequências reais das escolhas alimentares individuais e institucionais, demonstrando seus impactos mensuráveis na saúde e no meio ambiente”, informam os pesquisadores no artigo.

Na avaliação dos impactos ambientais, a pizza de muçarela se destacou negativamente pelo consumo excessivo de água na produção – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Monotonia in natura

O levantamento avaliou o consumo dos alimentos em quatro agrupamentos regionais. Em comum entre as regiões brasileiras, está a dieta centrada em arroz, feijão, carnes bovina, suína e de frango. De forma geral, os pesquisadores também identificaram monotonia alimentar e consumo reduzido de alimentos nativos e biodiversos — essenciais para melhorar tanto a nutrição quanto a sustentabilidade.

Porém, o artigo identifica as piores médias do índice nos dois agrupamentos regionais que correspondem ao Nordeste e a parte da região Norte. Nessas regiões, a variação foi de -61,15 minutos para o consumo de carne seca até +41,43 minutos para o consumo de açaí com granola.

“Esses achados reforçam que a melhoria dos sistemas alimentares exige ações que vão além da promoção de informações sobre escolhas saudáveis e sustentáveis: é necessário garantir acesso real, contínuo e economicamente viável a esses alimentos, especialmente para populações em situação de vulnerabilidade”, afirma Marhya Júlia Silva Leite, primeira autora do estudo.

A pesquisa também chama a atenção para o contraste entre agricultura familiar e agronegócio, um desafio para a promoção de dietas saudáveis e sustentáveis.

“Em termos ambientais, o agronegócio é responsável por 70,45% do consumo de água no País, especialmente no que diz respeito à carne bovina, que é o alimento mais intensivo em recursos e está associado a minutos perdidos por incapacidade. Por outro lado, a produção de alimentos como feijão, mandioca, frutas e hortaliças está intimamente ligada à agricultura familiar que, apesar de ocupar uma parcela menor de terra em comparação ao agronegócio, desempenha papel fundamental no fornecimento de alimentos para consumo doméstico e na promoção da segurança alimentar”, alertam os cientistas.

“Políticas que incentivem a produção local e diversificada e o acesso a alimentos saudáveis podem ser orientadas por esses achados, promovendo sistemas alimentares mais resilientes, justos e sustentáveis. Também é uma oportunidade para valorizar a sociobiodiversidade brasileira, com estímulo ao cultivo e consumo de alimentos nativos que hoje são pouco explorados e consumidos em algumas regiões”, conclui a pesquisadora.

Vida saudável em números

Para calcular a carga benéfica ou prejudicial à saúde, os cientistas determinaram o índice em termos de minutos de vida saudável vinculados ao tamanho médio das porções dos alimentos mais consumidos no Brasil, considerando as características demográficas e as condições de saúde da população brasileira. A pesquisa utilizou informações do banco de dados de consumo alimentar da população brasileira derivadas da Pesquisa de Orçamentos Familiares – Pesquisa Nacional de Alimentação (INA 2017-2018) da Classificação Nova de processamento de alimentos, da classificação dos sistemas alimentares regionais brasileiros identificados pelo Índice Multidimensional de Sistemas Alimentares Sustentáveis Revisado para o Brasil (MISFS-R), além de parâmetros ambientais.

Cada fator de risco alimentar foi multiplicado pela quantidade do respectivo componente de risco (em gramas) presente no tamanho médio da porção do alimento analisado – por exemplo, o teor de sódio em uma porção média de arroz. Em seguida, os riscos foram agregados e a estimativa líquida foi convertida de μDALYs (do inglês Disability-Adjusted Life Year, refere-se a um ano de vida saudável perdido) para minutos de vida saudável.

A pesquisa não abordou o consumo excessivo de açúcar como fator de risco para a saúde humana, dado ausente nas análises da Carga Global de Doenças, nem a influência de fatores como estilo de vida e predisposição genéticaO artigo está disponível aqui.

*Com informações da Agência Bori

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

FONTE: Jornal da USP

Sarcobesidade desafia a saúde global com envelhecimento da população

A sarcobesidade ou obesidade sarcopênica é a combinação de acúmulo de gordura e sarcopenia (perda de massa muscular) e acomete principalmente idosos. A condição está associada ao risco de desenvolvimento outras doenças, como as cardiovasculares, respiratórias, osteomusculares, psiquiátricas e câncer, e representa um desafio para a ciência e para a saúde: relatório da OMS prevê que o número de pessoas acima de 65 anos deve dobrar até 2050, chegando a 1,6 bilhão.

O enfrentamento da sarcobesidade, no entanto, mesmo com o envelhecimento, pode não depender de procedimentos avançados e produção em massa de medicamentos. Resultados de um estudo recém-publicado indicam que mudanças no estilo de vida e acesso a uma rotina saudável podem prevenir e até tratar a doença. Trata-se de uma revisão bibliográfica com os principais achados científicos sobre a doença das últimas décadas. Os estudos evidenciam ainda falta de critérios diagnósticos e de definição da própria sarcobesidade, além da complexidade do tratamento.

Coordenadora da pesquisa, a professora Ellen Cristini de Freitas, da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP) da USP, ressalta o distúrbio metabólico da sarcobesidade, agravada pelo envelhecimento, para afirmar que novas abordagens terapêuticas são necessárias na redução da patologia, razão pela qual seu time procurou pelas abordagens com potencial para o controle da doença e identificou três estratégias não farmacológicas: a suplementação com taurina (aminoácido importante no bom funcionamento do organismo), o manejo da microbiota intestinal e a prática de atividade física.

Prevalência em idosos

“O declínio acentuado e progressivo da massa e força muscular, caracterizado como sarcopenia, é uma condição prevalente em pessoas com 65 anos ou mais”, informa Ellen. A doença aumenta os riscos de incapacidades físicas, quedas, fraturas e hospitalização, limitando a qualidade de vida dos idosos. Quando associada ao aumento da gordura corporal, acrescenta a professora, há uma piora do prognóstico e se transforma na sarcobesidade.

Ellen informa ainda que, apesar de ser mais comum em idosos, os jovens não estão isentos da sarcobesidade. A população mais jovem com obesidade e sedentária ou que enfrenta alterações hormonais e metabólicas, câncer e quadro pós-cirurgia bariátrica sem cuidados nutricionais adequados também podem desenvolver a patologia.

Mas são os idosos o principal grupo de risco, pois perdem progressivamente massa muscular e ficam mais propensos à sarcobesidade. Mesmo com a dificuldade diagnóstica, informa a pesquisadora, estudos utilizando o método chamado DXA (Absorciometria de Raios X de Dupla Energia – técnica que avalia massa óssea, muscular e gordura) mostraram prevalência de 15% da sarcobesidade entre pessoas de 60 a 69 anos, e 40% entre os com 80 anos ou mais. Como a tendência é de envelhecimento, a preocupação com a sarcobesidade deve aumentar.

Suplemento de taurina na regulação metabólica

 

Infográfico mostra como o comportamento sedentário contribui para a sarcobesidade – a combinação entre obesidade e perda de massa muscular – e destaca os benefícios dos exercícios aeróbicos e de força na prevenção e controle da condição – Foto: Reprodução do artigo

 

As alterações fisiológicas próprias do envelhecimento associadas a hábitos de vida, como o sedentarismo e as mudanças alimentares, resultam “na redistribuição de gordura corporal do depósito subcutâneo para o visceral e pela redução da força e massa muscular”, informa a professora. Esta redistribuição de gordura contribui para a diminuição da massa e força muscular, a redução do gasto energético basal e a dificuldade de realizar atividade física, favorecendo o acúmulo de gordura. Por sua vez, o excesso de gordura corporal promove inflamação sistêmica e o acúmulo de gordura intramuscular com efeitos ruins na força e massa muscular. Segundo Ellen, esse é o quadro que explica o risco da obesidade e da sarcopenia coexistirem no mesmo indivíduo.

Ao falar em inflamação, a professor lembra que a sarcobesidade também representa risco para outras complicações crônicas baseadas em inflamação, como a resistência anabólica, a resistência à insulina, as doenças cardiovasculares e a diabetes. É aí que entram alternativas como a suplementação com taurina (um aminoácido produzido pelo corpo humano e presente em alimentos de origem animal) que, afirma a professora, tem mostrado respostas importantes para controlar a sarcobesidade.

Alguns estudos vêm confirmando as principais propriedades da taurina contra problemas de saúde relacionados ao envelhecimento. “Efeitos anti-inflamatórios, antioxidantes e capacidade de regular o metabolismo são algumas dessas boas respostas da taurina.” Ellen cita uma pesquisa realizada em seu laboratório que avaliou a suplementação com 3g de taurina/dia em mulheres com obesidade obtendo aumento da produção de adiponectina – proteína que desempenha um papel importante na regulação do metabolismo e na sensibilidade à insulina. Os resultados reforçam o papel da taurina no controle da inflamação.

Mesmo com os efeitos potenciais, a pesquisadora lembra que os benefícios da taurina devem ser mais explorados, já que “a maior parte das evidências vem de estudos com modelos animais e os efeitos da taurina em humanos, particularmente em indivíduos com sarcobesidade, ainda não estão completamente esclarecidos”.

Alimentação, envelhecimento e microbiota intestinal

Outro destaque da pesquisa para o controle da sarcobesidade é a microbiota intestinal. Trata-se do conjunto de microrganismos que compõem o sistema digestivo, em especial o intestino, numa comunidade de bilhões de bactérias que desempenham funções cruciais no organismo, principalmente na digestão, absorção dos nutrientes e eliminação de resíduos.

“Vários estudos já demonstraram que tanto a obesidade quanto o envelhecimento alteram a composição da microbiota intestinal, acarretando mudanças no tipo de bactérias que colonizam o nosso intestino”, destaca a professora, lembrando que esses fatores estabelecem uma maior proporção de bactérias potencialmente inflamatórias (bactérias patobiontes) em detrimento das potencialmente benéficas (bactérias simbiontes).

Assim, Ellen afirma que vale a pena prestar mais atenção à alimentação. “Padrões alimentares ocidentalizados, pautados no consumo de ultraprocessados (ricos em açúcares e gordura saturada e pobres nutricionalmente), são um dos protagonistas de mudanças na microbiota intestinal, cenário que fica ainda mais grave quando se concentra na realidade de uma população idosa.”

Atividade física, ganho de massa muscular e perda de gordura

A prática de exercícios físicos é tratada como uma estratégia importante para a prevenção e o tratamento da obesidade sarcopênica, principalmente em pessoas acima de 65 anos. A recomendação do American College of Sports Medicine para esse grupo é a da prática de atividades físicas diversas que desenvolvam múltiplas capacidades corporais como o equilíbrio, a flexibilidade e a força.

Segundo os especialistas, a atividade física é um grande fator no combate da sarcobesidade devido à sua capacidade de recompor massa muscular e perder gordura, combatendo as duas condições clínicas que caracterizam a sarcobesidade. Na mesma linha, adiantam que os exercícios físicos também são fundamentais para um envelhecimento saudável não apenas na ótica da obesidade sarcopênica, pois trazem benefícios quanto à mobilidade, reduzindo o número de quedas e melhorando a capacidade neural.

Investimento em qualidade de vida

Para Ellen, além do avanço nas formas de prevenção e tratamento é preciso um suporte adequado das autoridades de saúde na divulgação de informações de qualidade e no combate à má alimentação e ao sedentarismo. Desta forma, afirma que o investimento no combate a essa doença não depende necessariamente de grandes infraestruturas ou da produção em massa de medicamentos, mas do acesso a uma rotina envolvendo comportamentos alimentares saudáveis e atividades físicas de qualidade.

“É preciso desenvolver projetos capazes de abranger o diagnóstico correto e precoce da sarcopenia, o tratamento amplificado da obesidade no contexto de saúde pública e aumentar o acesso a alimentos in natura e saudáveis”, finaliza.

Mais informações: ellenfreitas@usp.br com a professora Ellen Cristini de Freitas

*Estagiário com orientação de Rita Stella

FONTE: Jornal da USP

Consumo de álcool está associado a lesões cerebrais ligadas à demência, mostram autópsias

Estudos de neuroimagem sobre os possíveis efeitos da ingestão de álcool no cérebro são pouco conclusivos, e têm encontrado resultados contraditórios. Agora, um trabalho liderado por brasileiros traz uma evidência mais forte da relação entre consumo de bebida, lesões cerebrais e piora cognitiva.

pesquisa não comprova que o álcool causa esses problemas – relações de causalidade são complexas e demoradas de estabelecer. Mas a associação do álcool e danos que o estudo verificou é mais robusta porque as análises foram feitas diretamente em tecidos cerebrais após a morte. Além disso, foram utilizados cérebros de brasileiros, e são raros os estudos feitos em população de países de média e baixa renda – aquelas que, na prática, são as mais atingidas pela demência.

Os resultados apontaram que tanto o consumo moderado quanto o intenso (oito ou mais doses por semana), mesmo que prévio (na época da morte a pessoa já era ex-alcoolista), foram associados à arteriolosclerose hialina e aos emaranhados neurofibrilares de tau.

A arteriosclerose hialina é uma condição de endurecimento de vasos sanguíneos que dificulta a irrigação cerebral, pode danificar o cérebro e está ligada ao desenvolvimento de demência vascular. Já os emaranhados neurofibrilares são estruturas proteicas características da doença de Alzheimer.

Além disso, o consumo prévio intenso de álcool (ex-alcoolistas) foi associado à redução da massa cerebral e das capacidades cognitivas. Para não gerar distorções, o cálculo levou em conta a razão entre o peso do cérebro e a altura da pessoa. E as capacidades cognitivas foram aferidas por meio de um questionário feito com familiares ou pessoas próximas, capaz de indicar se o paciente apresentava declínio cognitivo e sinais de demência.

estudo foi publicado no início do mês na Neurology, periódico da Academia Americana de Neurologia, tendo como primeiro autor Alberto Justo, que realizou pós-doutorado com supervisão de Claudia Suemoto na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).

A declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2023, de que nenhum nível de consumo de álcool é isento de prejuízos, se referia especialmente ao fato do hábito aumentar o risco de vários tipos de câncer, e fortaleceu a tendência de se desmistificar a ideia dos “níveis seguros” – ou até benéficos em algum aspecto – da ingestão de álcool. O estudo da USP chega para fortalecer uma outra frente que também vem sendo investigada: os possíveis efeitos da bebida na saúde cerebral.

“O grande destaque do estudo, a meu ver, é que os marcadores, principalmente a arterioesclerose hialina, já estão presentes mesmo em quem consome álcool moderadamente”, diz Alberto Justo. Outro destaque, segundo ele, é que o declínio cognitivo foi verificado em todos os grupos de bebedores, tanto os que já tinham cessado antes da morte, quanto nos que ainda bebiam.

A pesquisa

As amostras analisadas vieram do Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP. Este banco coleta cérebros de pessoas que foram autopsiadas no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SOV), da USP, mas não de indivíduos que morreram de causas traumáticas, porque esses casos são tratados pelo Instituto Médico Legal (IML).

Foram incluídas 1.781 pessoas com mais de 50 anos (idade média de 75 anos) no momento da morte, cujos parentes mais próximos tiveram contato no mínimo semanal com o falecido durante os seis meses anteriores ao óbito.

Todas foram submetidas a autópsias cerebrais em busca de sinais de lesão, incluindo lesões associadas à demência vascular e doença de Alzheimer. Para garantir a qualidade, os participantes foram excluídos se os dados clínicos fossem inconsistentes ou se o tecido cerebral fosse incompatível com as análises neuropatológicas.

Os pesquisadores também verificaram o peso do cérebro e a altura de cada pessoa. Os familiares responderam a perguntas sobre o consumo de álcool dos participantes e outras questões que permitem avaliar se há perda cognitiva ou indicativos de demência – presentes numa escala validada denominada Clinical Dementia Rating (CDR).

A reserva cognitiva, medida em anos de educação formal, é um fator de proteção importante contra o desenvolvimento de demência – Arte sobre imagens rawpixel.com/Freepik e ManuelSchottdorf/Wikimedia Commons

Consumidores e ex-consumidores intensos de álcool (ex-alcoolistas) tinham maior risco de apresentar emaranhados tau, o biomarcador associado à doença de Alzheimer, com chances 41% maiores. Os ex-alcoolistas também tinham uma menor proporção de massa cerebral em comparação com a massa corporal, e capacidades cognitivas prejudicadas.

Não foi encontrada ligação entre o consumo moderado ou intenso três meses antes do óbito e a razão de massa cerebral ou habilidades cognitivas, mas apenas em ex-alcoolistas (consumo prévio intenso). Este achado parece contraditório, mas pode ter a ver com um viés da amostra de pacientes do estudo. Os participantes que bebiam muito no momento do óbito ainda não tinham desenvolvido outras complicações sérias associadas ao álcool que levariam à cessação do consumo. Um exemplo de complicação que poderia levar à interrupção do consumo é a cirrose hepática.

Reserva cognitiva

A reserva cognitiva se refere principalmente ao tempo de educação formal que uma pessoa teve. “Aqui na Alemanha [onde mora atualmente], por exemplo, dificilmente uma pessoa fala menos de dois ou três idiomas, ou é mais velha e não fez faculdade. Essa reserva, de uma certa forma, reforça as sinapses, as conexões cerebrais. Muitas vezes, mesmo com a presença de vários biomarcadores de demência, a pessoa não vai apresentar a doença clinicamente”, explica o pesquisador.

Estima-se que, nos próximos anos, dois terços da população com demência vão estar em países de baixa e média renda, informação importante no contexto do estudo sobre o álcool. Enquanto os estudos da América do Norte e Europa geralmente incluem participantes com 13 ou 14 anos de estudo, no Brasil, a média é de 4,8 anos de educação.

“Essas pessoas que a gente estudou fazem parte de uma população miscigenada e com baixa educação, que é uma coisa muito rara de encontrar em estudos do tipo. No biobanco temos amostras de pacientes que, epidemiologicamente, traduzem melhor a realidade de quem é mais atingido pela demência no Brasil”, conclui o cientista.

Mais informações: e-mail albertofojusto@gmail.com e cksuemoto@usp.br

FONTE: Jornal da USP

Obesidade feminina pode estar associada a baixas concentrações de cobalto no sangue

Níveis menores de cobalto no sangue de mulheres com obesidade sugerem que o mineral pode influenciar a regulação genética e o metabolismo, impactando o ganho de peso e doenças associadas

O cobalto é um componente da vitamina B12 (cobalamina) que pode ser encontrado em alguns alimentos como vegetais, chocolate e carnes. Este mineral também é um metal essencial para as tecnologias atuais, sendo amplamente utilizado em baterias de lítio. O que até então não se sabia, e está sendo revelado por pesquisas recentes, é sua possível relação com a obesidade em mulheres.

O estudo multicêntrico Concentração sérica de cobalto e assinaturas de metilação de DNA em mulheres com obesidade, publicado pela revista científica Obesities, observou diferenças significativas nos níveis sanguíneos de cobalto na comparação entre mulheres com e sem obesidade. Identificou também alterações genéticas associadas ao metal, sugerindo que o cobalto pode influenciar processos biológicos relacionados ao metabolismo e ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2. Os resultados destacam ainda a importância de considerar fatores ambientais e nutricionais na prevenção e tratamento da obesidade.

As investigações foram conduzidas por pesquisadores da USP, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em Portugal, que analisaram dados de 33 mulheres brasileiras: 16 com obesidade e 17 na faixa normal de IMC (Índice de Massa Corporal). Como principal achado, os cientistas verificaram que os níveis de cobalto no sangue das participantes com obesidade eram muito menores. A deficiência, segundo os pesquisadores, pode estar relacionada à dieta pobre em nutrientes e às alterações metabólicas associadas à obesidade.

O grupo também observou a relação do cobalto com a metilação do DNA, o fator epigenético mais caracterizado que controla a expressão dos genes. A epigenética envolve as alterações genéticas em resposta a estímulos ambientais ou estilo de vida, sem contudo modificar a sequência do DNA, mas que pode influenciar a regulação de um gene (ativando ou desativando a sua atividade) e afetando as funções metabólicas. As diferenças nos padrões de metilação do DNA entre os grupos estudados, adiantam os cientistas, indicam que o cobalto pode desempenhar um papel na regulação epigenética relacionada à progressão da obesidade.

No início da vida, a regulação epigenética é responsável pela diferenciação de células, possibilitando a formação de vários tecidos. Na vida adulta a epigenética tem muita relação com o estilo de vida, como nutrição, atividade física e qualidade do sono, que é capaz de modificar os padrões de metilação – um tipo de modificação química do DNA – seja pelo aumento ou pela diminuição. Esses mecanismos podem estar relacionados à manutenção da saúde e ao desenvolvimento de doenças como, por exemplo, o câncer, explica a professora Carla Barbosa Nonino, do Departamento de Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, responsável pela pesquisa.

Impacto do cobalto no organismo

Segundo Natália Yumi Noronha, doutoranda no Departamento de Clínica Médica da FMRP e orientanda da professora Carla, o cobalto é um mineral essencial para a produção de células do sangue e o funcionamento do sistema nervoso. “O cobalto pode influenciar processos metabólicos, uma vez que uma alimentação pobre em alimentos de origem animal, como carne, leite e ovos, pode acarretar redução do metal no organismo, afetando o metabolismo e possivelmente contribuindo para o ganho de peso e outros problemas de saúde”, afirma.

Ainda segundo Natália, a obesidade está associada a deficiências nutricionais já que, mesmo com um consumo calórico alto, a qualidade da alimentação pode ser inadequada, com baixa ingestão de vitaminas e minerais essenciais. “Os achados do estudo reforçam a importância de investigar não apenas a quantidade de alimentos consumidos pelos pacientes com obesidade, mas também a qualidade, para entender melhor os impactos da dieta na obesidade e na saúde em geral”, diz.

Padrões alimentares e metilação do DNA

Para a professora Carla, o cobalto pode ser considerado essencial ao organismo quando em quantidades adequadas. O excesso, por outro lado, se torna um contaminante. Assim, as causas da deficiência de cobalto na obesidade feminina precisam ser mais bem investigadas com acompanhamento nutricional e clínico. Quanto à epigenética, que explica como o ambiente e o estilo de vida podem alterar o funcionamento de nossos genes, Carla acredita que possa ser mais uma ferramenta para entender as vias metabólicas associadas à obesidade. Segundo a professora, essa ferramenta deve permitir a identificação de padrões alimentares interessantes na ativação e inativação de genes específicos, usando padrões de metilação modificáveis.

Esses resultados devem servir de base para os novos estudos da equipe, agora interessada nos aspectos da obesidade da miscigenada população brasileira. “São escassas as pesquisas sobre metilação do DNA em populações miscigenadas. Além disso, as novas pesquisas também incluirão mais indivíduos e com diferentes condições de saúde, não só a obesidade”, adianta a professora. Seu grupo atualmente trabalha em análises de bioinformática para identificação da ancestralidade. O objetivo é descobrir as origens geográficas e características específicas, “demonstrando como o ambiente pode impactar no desenvolvimento do indivíduo e, potencialmente, o de gerações futuras”, afirma.

O estudo sobre obesidade contou com a colaboração da equipe liderada pelo professor Fernando Barbosa Jr., da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, e foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), através do projeto de pesquisa Do biomonitoramento ao reconhecimento de assinaturas do exposoma humano visando antecipar riscos para uma saúde contínua. Participaram ainda os pesquisadores: Luísa Maria Diani (bolsista da Fapesp que compartilha a primeira autoria do projeto), Guilherme da Silva Rodrigues, Isabela Harumi Yonehara, Vanessa Aparecida Batista Pereira, Marcela Augusta de Souza Pinhel, Lígia Moriguchi Watanabe e Déborah Araújo Morais.

Mais informações: carla@fmrp.usp.br, com a professora Carla Barbosa Nonino

* Estagiário sob orientação de Rita Stella

FONTE: Jornal da USP

Células-tronco mostram potencial para tratar lesões ósseas em pessoas com osteoporose

Pesquisa realizada em células e animais revela como a terapia celular pode regenerar tecido ósseo, abrindo caminho para desenvolver tratamentos mais eficazes para a osteoporose

Uma pesquisa demonstrou que um tipo de célula-tronco encontrada em vários tecidos do corpo humano é capaz de reparar defeitos ósseos em animais com osteoporose. No estudo, foram analisadas as interações entre as células saudáveis e as células osteoporóticas tanto em experimentos in vitro (realizados em um ambiente controlado fora de um organismo vivo) quanto em animais com defeitos ósseos e osteoporose. Os resultados do trabalho da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP estão publicados em artigo na Life Sciences.

A capacidade das células-tronco multipotentes – que podem se diferenciar em vários tipos de tecidos – de induzir regeneração tecidual já é conhecida devido às suas propriedades de autorrenovação e diferenciação. Neste processo, células menos especializadas adquirem funções específicas, neste caso se especializam e se transformam em osteoblastos, que são responsáveis pela formação de tecido ósseo.

O uso de células-tronco mesenquimais no tratamento de lesões ósseas também já é conhecido e promissor, mas a utilização desse tratamento em condições de osteoporose ainda é desafiador. É que o tecido ósseo em condições saudáveis tem uma capacidade regenerativa adequada para restabelecer sua função normal após uma lesão, porém, em presença de osteoporose, o reparo ósseo é prejudicado.

A explicação, segundo especialistas, se deve ao fato de que a osteoporose enfraquece o tecido ósseo, tornando-o menos denso e mais poroso, aumentando o risco de fratura e dificultando o tratamento de lesões. Além disso, a literatura científica indica que a osteoporose afeta negativamente a função das células-tronco mesenquimais, prejudicando sua proliferação e sua capacidade de induzir formação de tecido ósseo.

Relevância da relação células saudáveis com osteoporóticas

Nos experimentos in vitro, as células foram mantidas em coculturas, o que significa que dois tipos de células foram cultivadas juntas em um mesmo ambiente. Neste caso, foi avaliada a interação entre células saudáveis e células osteoporóticas.

O professor da Forp e líder do grupo de pesquisa, Adalberto Luiz Rosa, afirma que avaliar as relações entre esses dois tipos de células é importante pois, no caso da terapia celular, “uma das interações relevantes para o sucesso do tratamento é a das células saudáveis, que são utilizadas como tratamento, sendo recepcionadas pelas células presentes em ambiente acometido pela doença”.

Entre as conclusões obtidas, a partir dos experimentos in vitro, o pesquisador informa que as células-tronco originadas de ratos com osteoporose têm sua capacidade de regeneração reduzida, que é parcialmente recuperada pela interação com células saudáveis. Da mesma maneira, o contrário também é verdade, já que células saudáveis têm seu potencial regenerativo reduzido quando em contato com células osteoporóticas.

Efeito de células-tronco mesenquimais de doadores saudáveis ​​(HE-MSCs) injetadas localmente na formação óssea em defeitos calvários de ratos submetidos à orquiectomia – Foto: Reprodução ScienceDirect

Terapia é mais desafiadora para diabéticos e hipertensos

Nos experimentos in vivo, ratos com osteoporose, nos quais foram criados defeitos ósseos, receberam aplicações de células-tronco mesenquimais, obtidas da medula óssea de ratos jovens saudáveis, diretamente na lesão óssea. O professor destaca que o diferencial da pesquisa foi criar os defeitos ósseos nos animais e aguardar duas semanas para realizar a terapia celular, “o que simula melhor o tratamento de defeitos preexistentes e aproxima nossa abordagem da realidade clínica”.

Como resultado, constataram que as células-tronco induziram a formação de tecido ósseo e, além disso, continuavam detectáveis até cinco dias após a injeção, em contraste com a permanência celular em locais saudáveis, onde permaneceram por até 14 dias. Outros estudos demonstram que o mesmo ocorre em ratos diabéticos e hipertensos, o que “nós atribuímos à presença das doenças, embora não tenhamos nos debruçado sobre os mecanismos envolvidos”, afirma o pesquisador.

Segundo o professor, esse fato indica o quanto o tratamento de defeitos ósseos em portadores de doenças sistêmicas é complexo: “Esses resultados ressaltam que o tratamento de defeitos ósseos pela terapia celular é ainda mais desafiador em pacientes acometidos por essas doenças (diabéticos e hipertensos), mas é viável, uma vez que bons resultados foram obtidos com a terapia celular em animais com osteoporose”.

Potencial para prevenir lesões ósseas

O professor ressalta que os resultados são interessantes, mas ainda devem ser aperfeiçoados: “Nosso estudo focou no tratamento de defeitos ósseos e constatamos que a terapia celular induz formação óssea, mas não regenerou por completo os defeitos”.

Rosa ainda explica que esse tratamento tem potencial para ser um método de prevenção de lesões, apesar de não ser o ideal para o tratamento da osteoporose sistêmica. “Há pesquisas sugerindo que ela poderia ser utilizada naqueles ossos que apresentam maior fragilidade e risco de fraturas”, adianta.

Esses resultados criam expectativas interessantes para um futuro tratamento de lesões ósseas em pessoas com osteoporose, “nossa perspectiva é que nossos resultados contribuam para que no futuro o tratamento de defeitos ósseos com células-tronco e seus derivados seja uma realidade clínica eficaz e acessível aos pacientes que dele necessitem”, finaliza Rosa.

*Estagiário sob orientação de Rita Stella

FONTE: Jornal da USP

Frutose de ultraprocessados em excesso pode alterar intestino, fígado e descontrolar glicose

Excesso de frutose, presente em alimentos ultraprocessados, causa alterações intestinais e está ligado a possível risco de diabetes tipo 2 e doenças no fígado; consumido em frutas, açúcar não gera problemas

Pesquisadores da Université Laval (Ulaval), do Canadá, e do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP descobriram que o consumo excessivo de frutose, comum em dietas com alto teor de alimentos ultraprocessados, modifica a forma como o intestino responde à glicose, aumentando a absorção desse açúcar e comprometendo o controle da glicemia. Esses efeitos precedem a intolerância à glicose e o acúmulo de gordura no fígado, dois fatores ligados ao desenvolvimento do diabetes tipo 2 e da Doença Hepática Gordurosa Associada à Disfunção Metabólica (MASLD, na sigla em inglês). O artigo que descreve o estudo, High fructose rewires gut glucose sensing via glucagon-like peptide 2 to impair metabolic regulation in mice, foi capa da edição de março da revista científica Molecular Metabolism.

A pesquisa, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi conduzida pelo pesquisador Paulo Evangelista Silva, doutorando do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Biologia Funcional e Molecular do ICB, em coautoria com Eya Sellami, pesquisadora da Ulaval, e Caio Jordão Teixeira, pós-doutorando do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB. O trabalho foi coordenado por Fernando Forato Anhê, professor assistente da Faculdade de Medicina da Université Laval e pesquisador do Institut Universitaire de Cardiologie et de Pneumologie de Québec (IUCPQ).

No estudo, camundongos foram alimentados durante sete semanas com uma dieta na qual 8,5% da energia vinha da frutose – proporção considerada elevada, mas ainda próxima do consumo humano médio. Em apenas três dias, os animais já apresentavam um aumento na capacidade do intestino de absorver glicose, antes mesmo do surgimento da intolerância à glicose. Após quatro semanas, a glicose já não era eficientemente removida do sangue, e ao fim do estudo, observou-se acúmulo de gordura no fígado, condição que pode evoluir para quadros mais graves, como a cirrose.

Curiosamente, mesmo com esses efeitos adversos, os camundongos não desenvolveram resistência à insulina nos músculos ou no tecido adiposo, indicando que o descontrole glicêmico inicial ocorre por alterações no intestino, e não por falha na resposta insulínica periférica. A explicação para esse fenômeno pode estar na ação de um hormônio chamado GLP-2, produzido por células do intestino. Os pesquisadores constataram que o consumo excessivo de frutose eleva os níveis circulantes de GLP-2, hormônio que estimula o crescimento da superfície intestinal e o aumento da absorção de nutrientes. Ao bloquear o receptor desse hormônio (Glp2r) com uma droga, foi possível impedir o aumento da absorção de glicose, evitando tanto a intolerância quanto o acúmulo de gordura no fígado.

Bloqueio
No entanto, a estratégia de bloqueio do Glp2r não é facilmente aplicável a humanos, pois esse mesmo receptor está envolvido na proteção da barreira intestinal contra infecções e inflamações. Isso reforça a complexidade do papel do GLP-2 na saúde metabólica. “Mostramos que o aumento da absorção de glicose pelo intestino ocorre antes da intolerância à glicose. Isso abre caminho para o uso desse mecanismo como um biomarcador precoce”, afirma o professor Anhê. “O teste de absorção intestinal de glicose é barato, seguro e já utilizado em humanos — bastaria aplicá-lo em um novo contexto.”

Uma nova fase da pesquisa, com apoio do Canadian Institutes of Health Research (CIHR), vai investigar como o microbioma intestinal pode ser manipulado para reduzir os efeitos nocivos do excesso de frutose. O pesquisador Evangelista Silva ressalta que os resultados do estudo se referem ao consumo de frutose adicionada a alimentos ultraprocessados. “Frutas in natura são ricas em fibras, que ajudam a retardar a absorção de glicose e aumentam a saciedade. Além disso, contêm nutrientes benéficos para a saúde intestinal e hepática”, explica.

A pobreza nutricional dos ultraprocessados, com baixo teor de fibras e altos níveis de açúcares adicionados – como o xarope de milho e o açúcar de cana –, sobrecarrega o organismo. Evangelista Silva recomenda priorizar alimentos in natura, conforme orienta o Guia Alimentar para a População Brasileira, desenvolvido pelo Ministério da Saúde com apoio da Opas/Brasil. O açúcar de cana-de-açúcar e o xarope de milho são exemplos de açucares ricos em frutose amplamente utilizados pela indústria em alimentos ultraprocessados.

Alimentos ultraprocessados com alta concentração de frutose incluem refrigerantes e sucos industrializados (mesmo os néctares “100% fruta”), cereais matinais e barras adoçadas, biscoitos recheados e doces industrializados, pães e bolos prontos (como bisnaguinhas e pão de forma), chás prontos e bebidas esportivas adoçadas, molhos industrializados (ketchup, barbecue etc.), iogurtes adoçados, sobremesas lácteas e geleias. O estudo teve apoio das agências Fonds de Recherche du Québec – Santé (FQRS), Fondation IUCPQ e Fapesp.

Da Assessoria de Comunicação do ICB

FONTE: Jornal da USP

Estimulação transcraniana proporciona alta taxa de melhora na depressão resistente

Quase metade das pessoas com depressão acaba desenvolvendo a forma resistente da doença, que não melhora após pelo menos dois tratamentos diferentes. Pesquisadores têm se engajado em fornecer uma resposta mais satisfatória a esses pacientes e seus familiares, que às vezes passam anos tentando diversas terapias e chegam a desistir, com custos individuais e coletivos. Uma nova gama de recursos vem sendo pesquisada, incluindo as chamadas terapias não farmacológicas.

Uma delas acaba de ganhar novo impulso após um estudo clínico feito na USP – a estimulação magnética transcraniana do tipo theta-burst. Por meio da técnica, grandes redes cerebrais são estimuladas com bobinas, em um protocolo que utiliza rajadas rápidas (theta-burst), mas em sessões de curta duração.

Enquanto pesquisas anteriores com esta terapia mostravam resultados promissores, porém preliminares, o protocolo empregado no estudo do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da  Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP) proporcionou melhora de quase 55% nos pacientes. Mais do que isso, na fase aberta do estudo (quando já se sabia que estavam sendo tratados e não recebendo placebo) os pacientes receberam sessões adicionais, e 85% dos que completaram o tratamento apresentaram melhora.

“A estimulação magnética transcraniana já tem 30 anos de uso, não é uma técnica experimental. Mas as taxas de resposta foram aumentando ao longo do tempo, com mudanças no protocolo de aplicação [intensidade, duração e frequência]”, conta ao Jornal da USP André Brunoni, professor associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP e coordenador do estudo publicado na Jama Psychiatry, tendo Matheus Rassi Ramos como primeiro autor.

“O tratamento em si é muito seguro, tolerável, não requer anestesia nem sedação, e praticamente não tem efeitos colaterais. A principal desvantagem é que o paciente precisa ir em uma clínica fazer a estimulação”, explica Brunoni.

Evolução da técnica

Nos primeiros anos do uso da estimulação magnética transcraniana, as taxas de resposta eram modestas e havia o complicador adicional das sessões demorarem muito, conta o pesquisador, o que deixava o tratamento acessível a poucos. “Eram feitas sessões de 40 minutos por dia e que duravam 30 dias, de segunda a sexta-feira”, lembra.

Um dos grandes avanços veio com um estudo em 2018, que mostrou que era possível fazer estimulação usando protocolos curtos, de três minutos de duração, ao invés dos usuais 40 minutos de sessão. Depois começaram a vir os protocolos acelerados, que envolviam fazer várias sessões rápidas por dia. E nesse meio tempo, também foi aumentando a taxa de resposta.

Em 2021, surgiu um estudo de um grupo da Universidade de Stanford que teve um grande impacto, ficando conhecido como o Stanford Neuromodulation Therapy (SNT). “Eles alcançaram uma grande eficácia usando um protocolo de 10 sessões por dia, por 5 dias, com intervalo de quase uma hora entre as sessões”, relata o pesquisador. O protocolo incluía a necessidade de fazer neuronavegação personalizada guiada por neuroimagem, um procedimento que tem um alto custo.

A neuroimagem era feita só na primeira sessão para achar a região alvo no cérebro. Mas a neuronavegação tinha que ser feita em todo tratamento, para mostrar onde colocar exatamente a bobina. Além dessa dificuldade, tratava-se de um estudo clínico pequeno, com apenas  29 pacientes. “Então ficou algo em aberto, porque era uma amostra pequena de pacientes, mas por outro lado houve uma grande resposta clínica.”

Nesse contexto, a equipe do IPq desenhou e desenvolveu o estudo atual, liderado pelo aluno de doutorado Matheus Ramos, com orientação de Brunoni.

A pesquisa da USP

O tratamento realizado no IPq, que não realizava neuronavegação e sim medidas com fita, consistia em três sessões por dia de estimulação rápida (theta-burst), com seis minutos de estimulação e 30 de intervalo entre elas. “Então, durava 78 minutos cada dia, durante 15 dias, de segunda a sexta-feira. E o desfecho primário [principal resultado investigado na pesquisa] era a melhora clínica avaliada na quinta semana”, detalha André Brunoni ao Jornal da USP.

Houve uma taxa de resposta maior no grupo ativo, que recebeu o tratamento, comparado ao grupo placebo, que recebia uma simulação da estimulação. 52% dos pacientes no grupo ativo apresentaram resposta clínica dos sintomas de transtorno depressivo, contra 22% no grupo em que o tratamento foi simulado.

Além da maior praticidade para a terapia, o rigor metodológico também é um ponto forte do estudo feito na USP: foram excluídos pacientes que apresentassem outros transtornos psiquiátricos, para evitar uma confusão nos resultados. E além de controlado (com o grupo que recebeu a simulação) o estudo foi randomizado (pacientes que receberam tratamento foram selecionados aleatoriamente) e triplo cego, o que significa que, durante a pesquisa, nem mesmo quem fazia as análises estatísticas sabia a qual grupo se referiam os números obtidos. “Isso é feito para garantir que não haja manipulação de dados, porque se o estatístico sabe os grupos, os pesquisadores podem ir pedindo para fazer uma análise a mais aqui, outra ali, o que pode influenciar nos resultados”, explica o psiquiatra.

Depressão resistente

A definição de depressão resistente ao tratamento varia um pouco na literatura científica, mas normalmente se considera que ocorre quando a pessoa não responde a dois tratamentos e está indo para o terceiro. “Metade dos casos de depressão são refratários de acordo com essa definição – ou seja, o segundo tratamento e o primeiro juntos têm uma eficácia acumulada de 50%”, diz Brunoni.

De acordo com o psiquiatra, muitas pessoas que passam por vários tratamentos acabam desistindo, a depressão tende a se cronificar, comprometendo a qualidade de vida.

“A depressão resistente tem um custo econômico e social bastante relevante. As pessoas começam a faltar mais ao trabalho ou acontece aquilo que é chamado de ‘presenteísmo’, quando a pessoa está oficialmente no local de trabalho, mas na prática não está produzindo.” A condição pode também levar a mais divórcios e, no caso de pais com filhos pequenos, aumentar o risco de depressão nas crianças. “Há uma série de consequências já verificadas.”

Ainda vem sendo estudado o que estaria por trás da resistência ao tratamento, mas uma hipótese com que os pesquisadores que atuam com a eletroestimulação trabalham está relacionada a determinados circuitos cerebrais funcionando mal, e a estimulação ajudaria e recuperar sua função.

“[A hipótese é que] haveria um mau funcionamento de certos neurocircuitos implicados na fisiopatologia da depressão, os principais sendo aqueles que fazem a comunicação do córtex pré-frontal, que é um corpo que fica mais externo, com o córtex cingulado anterior. Parece que há uma disfunção no processamento da informação entre essas duas áreas. E aí até temos a justificativa do uso da neuronavegação com neuroimagem, que é colocar a bobina da estimulação mais próxima dessa área”, detalha o médico ao Jornal da USP.

Apesar de o problema ainda ser desafiador, as perspectivas de novas terapias para a depressão resistente são animadoras. No IPq, a especialidade do grupo coordenado por André Brunoni é a psiquiatria intervencionista, que busca justamente a inovação, com tratamentos que são feitos em apenas poucos centros no mundo todo.

Além da magnética, eles trabalham com outros tipos de estimulação: elétrica por corrente contínua; elétrica por corrente alternada; de luz cintilante; e por laser, chamada de fotobiomodulação. “Temos também outra vertente, que é o uso da cetamina na forma intranasal ou endovenosa”, acrescenta.

Chamada para participação nos estudos

Os cientistas do grupo têm planos de ampliar a pesquisa com a estimulação magnética. “Estamos iniciando novos estudos piloto. E temos um em fase mais avançada, em que iremos randomizar os pacientes para serem tratados ou com navegação personalizada ou com o método tradicional – mas ambos recebendo o tratamento que já demonstra eficácia nesta pesquisa publicada agora”, prevê. Informações sobre participação no estudo no site redcap.link/lux; e pelo e-mail lux.ipq.sin@gmail.com.  A página do grupo no Instagram é @sin.ipq.

O artigo pode ser acessado neste link.

Mais informações: e-mail brunoni@usp.br, com André Brunoni

FONTE: Jornal da USP

Estudo revela caminho para tratar déficits respiratórios em pacientes com Parkinson

Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP descobriram um possível caminho para tratar déficits respiratórios em pacientes com Doença de Parkinson – um sintoma pouco estudado, mas que pode levar a complicações graves como a pneumonia, uma das principais causas de óbito nesses pacientes. Embora as dificuldades motoras sejam as manifestações mais conhecidas da doença, a pesquisa revelou que também ocorrem problemas respiratórios durante o sono – o que ainda não possui um tratamento eficaz. O estudo, publicado na revista iScience, mostrou que a estimulação seletiva de um núcleo cerebral foi capaz de reverter essas falhas respiratórias em camundongos, apontando para novas possibilidades terapêuticas.

“As complicações respiratórias no Parkinson geralmente surgem em estágios mais avançados da doença e, por isso, são menos exploradas. Mas elas têm um impacto significativo na qualidade de vida e na sobrevida dos pacientes”, explica a professora Ana Carolina Takakura, coordenadora do estudo. “Nosso objetivo foi entender quando essas alterações acontecem e se há uma forma de revertê-las. Descobrimos que elas ocorrem exclusivamente durante o sono, e conseguimos restaurar a função respiratória nos camundongos estimulando seletivamente um grupo específico de neurônios.”

Coordenado pela professora Takakura, do Departamento de Farmacologia do ICB-USP, o Laboratório Controle Neural Cardiorrespiratório dedica-se há mais de 10 anos ao estudo de problemas respiratórios causados pelo Parkinson. Sua prevalência está relacionada com os casos de pneumonia, uma das principais causas de óbito de pacientes. “Minha formação, desde o doutorado, tem sido voltada para o controle neural da respiração. Quando comecei a estudar o Parkinson, minha pergunta fundamental era: será que, além das regiões do cérebro responsáveis pelos movimentos, as áreas que controlam a respiração também se degeneram?”, explica a pesquisadora.

Ao longo dos anos, os resultados mostraram que sim: em animais — ratos e camundongos — submetidos ao modelo experimental da doença, há uma redução na frequência respiratória, além da degeneração de alguns núcleos específicos que controlam a respiração. O grande avanço do novo estudo, liderado pela pesquisadora Nicole Miranda, foi observar a relação de tudo isso com o sono.

“Apneias respiratórias são uma consequência comum da Doença de Parkinson: afetam, junto de outras alterações no sono, cerca de 70% dos pacientes. E, apesar de serem classificadas dentro de estudos do sono, as apneias também são um problema respiratório”, explica Takakura.

Foi dessa intersecção, notada por Miranda durante seu doutorado, que surgiu a ideia de investigar se as alterações respiratórias observadas nos estudos anteriores tinham alguma relação com o ciclo de sono. Antes, não se sabia se as mudanças na respiração aconteciam quando o animal estava acordado ou dormindo. Os camundongos estudados podiam dormir durante os registros, mas esse fator não era monitorado diretamente. “Foi algo que nunca havíamos medido antes. Com os novos experimentos, conseguimos finalmente estabelecer essa relação, o que abriu uma nova perspectiva para os estudos”, diz Takakura.

Sono e Parkinson: mesmo núcleo do cérebro

O primeiro passo de Miranda foi mapear, por meio de eletroencefalogramas e eletromiografias, as fases de sono dos camundongos e, paralelamente, observar a respiração dos animais. O estudo diferenciou as fases de sono REM (movimento rápido dos olhos) e não REM, que têm características distintas em termos de atividade cerebral e tônus muscular. O que foi constatado é que as alterações na respiração observadas em estudos anteriores não só eram mais expressivas durante o sono, como aconteciam exclusivamente nesse estado. Além disso, foi analisada a quantidade de episódios de apneia, que também foi maior enquanto os animais dormiam.

Com essa informação em mãos, o grupo buscou investigar possibilidades terapêuticas por meio do estímulo seletivo de algum núcleo do cérebro. “Escolhemos o núcleo tegmental látero-dorsal, também chamado de LDT, por ser um núcleo conhecido por sua correlação forte tanto com o sono quanto com a Doença de Parkinson. E, além disso, também se projeta para as regiões respiratórias”, explica a professora.

Para realizar esse estímulo, foi injetado um vírus no núcleo LDT, fazendo com que os neurônios desejados dessa região passassem a expressar um receptor — ou seja, deixando-os “capazes de serem estimulados seletivamente”. Depois, foi aplicado um fármaco, capaz de se ligar exclusivamente ao receptor e que foi responsável por provocar os estímulos nesses neurônios. Dessa forma, as alterações respiratórias foram revertidas, bem como o aumento na quantidade de apneias.

“O núcleo LDT também sofre perda de neurônios devido à Doença de Parkinson, mas vimos que mesmo o estímulo dos neurônios restantes foi suficiente para tratar problemas respiratórios”, diz Takakura. Ela aponta que o metabólito clozapina-N-oxide (CNO) – que é gerado a partir de uma substância injetada e atua ativando seletivamente os neurônios modificados no experimento – ainda precisa ser melhor estudado quanto à segurança e eficácia em humanos.

Denominado quimiogenética, o método ainda é pouco acessível e restrito às pesquisas clínicas, mas pode ser uma possibilidade futura para tratamentos. Segundo a professora, existem, atualmente, outras possibilidades terapêuticas de estímulo cerebral, mas que afetam regiões inteiras e não apenas tipos de neurônios específicos. “Não sabemos se uma estimulação geral teria o mesmo efeito, é algo a ser investigado. De qualquer forma, a estimulação seletiva é sempre melhor, pois elimina efeitos adversos. Existem estudos trabalhando para viabilizar uma estimulação seletiva, e quando isso acontecer, será um grande passo para o tratamento dos sintomas do Parkinson.”

Hoje, um dos tratamentos para o Parkinson é a estimulação cerebral profunda, utilizada para melhorar os sintomas motores da doença. No entanto, essa abordagem não trata diretamente as alterações respiratórias, que continuam sem uma solução terapêutica eficaz. Para o futuro, Takakura pretende caracterizar as alterações de sono em humanos, em uma parceria com o Instituto do Coração (InCor) e com o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP).

O artigo Sleep-related respiratory disruptions and laterodorsal tegmental nucleus in a mouse model of Parkinson’s disease está acessível neste link.

*Da Assessoria de Comunicação do ICB, adaptado para o Jornal da USP

FONTE: Jornal da USP