O primeiro transplante de olho do mundo

Cirurgiões de Nova York realizaram o primeiro transplante de olho do mundo. Antes desse procedimento pioneiro, os médicos haviam se concentrado apenas em transplantes de córnea – a camada frontal transparente do olho. Mario Luiz Monteiro, médico do Departamento de Neuroftalmologia da Faculdade de Medicina da USP, explica o avanço realizado pelos médicos.

O procedimento 

O paciente sofreu um choque elétrico grave e o objetivo da equipe era preencher o olho e realizar uma reconstrução facial. De acordo com Monteiro, cirurgiões plásticos já realizavam transplantes faciais há algum tempo, até nas regiões subcutâneas. A vantagem desse procedimento é que a nutrição preexistente da face permite que os novos enxertos recebam uma irrigação.

Entretanto, o órgão da visão é mais complicado que a pele. “O olho, além de enxergar, precisa formar a imagem focada na retina e transmitir essa imagem para o cérebro. Mas ele precisa de irrigação para que esteja vivo. Ou seja, a retina precisa de sangue para se manter viva; é como o Sistema Nervoso Central, se fica sem sangue por alguns minutos, ela morre”, explica Monteiro. Além disso, o médico ainda comenta que a parte anterior do olho também precisa de sangue para que produza o humor aquoso, responsável por manter a tonicidade do órgão.

Monteiro ressalta que o transplante realizado não foi apenas do órgão ocular: os profissionais também transplantaram parte da face e os tecidos que envolvem o olho – a órbita. “Com isso, eles levaram todas as estruturas, e o que fizeram de inovador foi provar que conseguem manter o olho viável; ou seja, separaram uma artéria da têmpora do paciente e antes que encaixassem o enxerto no receptor, eles ligaram essa artéria temporal na artéria que nutre o olho”, aponta.

A artéria responsável pela nutrição do órgão, da retina e do nervo óptico está localizada no fundo da órbita e é chamada de artéria oftálmica. Quando o olho lesionado é retirado, perde-se a irrigação. Dessa forma, o médico explica que, no momento em que outro órgão fosse implantado, ele morreria. O pioneirismo do procedimento, portanto, está na novidade da ligação com a artéria da têmpora, o que manteve o olho nutrido e viável.

Segundo Monteiro, o olho transplantado funciona como uma prótese biológica, mas ainda não é capaz de formar e transmitir imagens. “A imagem é formada na retina e é transmitida pelo nervo óptico – que são fios que partem da retina e estão conectados ao cérebro”, discorre. No caso do paciente, esses fios não estão conectados, porque a tecnologia para realizar essa ligação ainda não está disponível.

Recuperação 

Existem outras linhas de pesquisa que buscam recuperar a visão de olhos cegos, como a inserção de eletrodos no córtex. “A parte posterior do cérebro é a parte que de fato enxerga. Então, você coloca os eletrodos, passa um fio no subcutâneo e coloca uma câmera, que se liga com o eletrodo debaixo da pele próximo à orelha. O estímulo visual que essa câmera capta vai direto para o eletrodo que está no cérebro”, exemplifica o médico. Esse procedimento, de acordo com Monteiro, diz respeito à resolução das questões motoras. Na parte visual, entretanto, a complexidade é imensa, por conta da quantidade de informações necessárias para produzir cores, contrastes e formas.

FONTE: Jornal da USP

Melhora de anemia fatal após transplante de células-tronco

A anemia falciforme é uma doença genética que causa alterações nos glóbulos vermelhos do sangue (hemácias) e está entre as mais prevalentes no Brasil e no mundo. Um dos tratamentos possíveis é o transplante de células-tronco hematopoiéticas – capazes de se diferenciar em todas as células do sangue – retiradas da medula óssea de um doador saudável. Apesar de o transplante ser atualmente o único tratamento curativo para a doença, pouco se sabe sobre o que acontece com o sistema imune desses pacientes após o procedimento.

Descobertas recentes sobre o tema foram divulgadas por pesquisadores da USP na revista Clinical & Translational Immunology. O artigo tem como foco o sistema imune adaptativo (a imunidade adquirida após o contato com patógenos), particularmente os linfócitos do tipo B (envolvidos na produção de anticorpos) e T (responsáveis pela imunidade celular). Entre os autores estão cientistas do Centro de Terapia Celular (CTC) e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, além de colaboradores da França.

Segundo o artigo, após o reset do sistema imunológico promovido pelo transplante, as células B e T se restauraram normalmente. Houve, ainda, um aumento de células B-reguladoras, que podem contribuir para melhorar a regulação imunológica e o equilíbrio da imunidade após o transplante. Também se observou aumento de um subtipo de célula B de memória conhecida como IgM+ (por apresentar a proteína IgM em sua superfície), que é importante para o enfrentamento de infecções.

“Um aspecto muito triste da doença são as diversas complicações clínicas. Uma delas é que os pacientes têm infecções recorrentes, que são a maior causa de morbidade, principalmente entre crianças. Não é raro uma criança diagnosticada com anemia falciforme pegar uma infecção e morrer [sendo o maior problema as infecções bacterianas]. Sabe-se que, além da inflamação crônica acompanhada de episódios de dor, os pacientes têm uma desregulação do sistema imunológico. Mas essa é uma questão ainda muito negligenciada na anemia falciforme”, resume Kelen Cristina Ribeiro Malmegrim, coautora do trabalho. Segundo ela, o sistema imune inato dos pacientes falciformes é bem conhecido, o que não acontece com o sistema imune adaptativo, que inclui as células T e B.

O objetivo da pesquisa foi investigar se o transplante de células-tronco hematopoiéticas poderia melhorar as disfunções imunológicas nos pacientes com anemia falciforme.

“Avaliando os pacientes antes e depois do transplante, vimos que algumas disfunções são corrigidas, mas outras não. Por outro lado, descobrimos que a reconstituição do sistema imune adaptativo após o transplante promove um aumento de células que ajudam a controlar a inflamação crônica, confirmando que o transplante é um recurso terapêutico com resultados excelentes”, explica.

Entendendo a doença

A anemia falciforme é resultado de uma mutação no gene que codifica a hemoglobina – proteína que confere a cor vermelha ao sangue e é responsável pelo transporte de oxigênio. Em portadores da doença, as hemácias assumem a forma de foice depois que o oxigênio é liberado aos tecidos. Em baixas tensões de oxigênio, as células se tornam deformadas, rígidas e propensas a se agregar, ou seja, a formar uma massa celular que adere ao endotélio e dificulta a circulação sanguínea. Nos pacientes falciformes, as hemácias também têm um tempo de vida menor, causando o quadro de anemia.

Os tratamentos convencionais incluem a transfusão sanguínea esporádica (quando os pacientes estão com anemia muito intensa ou em crise) e as transfusões crônicas de hemácias a cada 15 dias em casos muito graves. Outro recurso é um fármaco chamado hidroxiureia, usado também contra outras doenças, como leucemias e outros cânceres. “A hidroxiureia diminui a proliferação celular e aumenta a hemoglobina fetal nas hemácias”, diz.

Quando nascemos, a hemoglobina fetal é predominante nas hemácias e, com o passar dos anos, ela vai dando lugar à hemoglobina tipo A. No caso dos pacientes com anemia falciforme, ela é substituída pela hemoglobina tipo S.

“Ao aumentar a concentração de hemoglobina fetal na hemácia, a hidroxiureia reduz a hemoglobina tipo S. É como uma compensação. Entretanto, os tratamentos convencionais não corrigem as disfunções no sistema imune.”

O estudo foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio de bolsas de doutorado no Brasil e no exterior concedidas à farmacêutica Luciana Ribeiro Jarduli-Maciel, primeira autora do artigo. Além das bolsas, o CTC é apoiado no âmbito do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids).

Disfunções

Segundo Malmegrim, as disfunções no sistema imune dos portadores de anemia falciforme podem ter causas variadas. Algumas podem ser decorrentes da inflamação crônica dos vasos sanguíneos provocada pela doença, que desregula o sistema imune. Porém, outras podem ser causadas por disfunções intrínsecas do sistema imune desses pacientes.

“Uma hemácia contém milhões de moléculas de hemoglobina. Nesses pacientes, quando a hemoglobina libera oxigênio, ela forma polímeros dentro da célula e a hemácia assume a forma de foice. Isso acontece milhares de vezes durante a vida da hemácia e, em algum momento, ela não volta mais à forma original. Essas hemácias em forma de foice entopem os vasos sanguíneos, aglomeram-se e vão se juntando com plaquetas e leucócitos ativados. Elas interagem com outras células, ativam o endotélio, promovendo uma inflamação crônica. E isso pode entupir o vaso e interromper a circulação naquele trecho, provocando isquemia e dor.”

Sabe-se que portadores da anemia falciforme podem ter polimorfismos (variações na sequência do DNA) em outros genes, alguns deles relacionados ao sistema imune, que contribuem para que desenvolvam formas mais graves da doença.

“Uma das disfunções está relacionada à produção excessiva de célula B naive, que são aquelas que não tiveram contato com o antígeno e não carregam a informação sobre o que tem de ser feito [e acabam tomando o espaço das células de memória, que já tiveram contato com o antígeno]. E o transplante melhorou esse aspecto, as células B naive diminuíram e as células B de memória aumentaram. Mas o transplante não corrigiu esse excesso de produção de novas células B naive pela medula óssea dos pacientes. Isso significa que temos de estudar mais detalhadamente esse mecanismo”, explica Malmegrim.

Malmegrim revela que a equipe esperava encontrar alguma disfunção na produção das células T, mas observou que estas são produzidas e exportadas normalmente pelo timo, glândula que fica perto do coração e participa da regulação do sistema imune adaptativo. Somente quando as células T vão para a circulação periférica e encontram moléculas inflamatórias é que sofrem alterações. Entretanto, os pesquisadores suspeitam que alguma alteração acontece no desenvolvimento das células B na medula óssea dos pacientes falciformes.

Estudo clínico

A equipe estudou a reconstituição do sistema imune de 29 pacientes submetidos ao transplante na Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. A idade média do grupo foi 19 anos. Um grupo-controle com 16 pessoas saudáveis também foi acompanhado.

Amostras de sangue periférico foram coletadas dos pacientes antes do transplante e de três em três meses após o procedimento durante dois anos. Os pacientes foram avaliados ainda pelo tamanho do baço (um dos órgãos mais comprometidos pela doença), por análise de prontuários e laudos de ultrassonografia abdominal.

“Todos eles passaram por transplantes alogênicos nos quais a medula do doador era totalmente compatível. E, depois do transplante, estudamos a reconstituição hematopoiética e imunológica”, explica Malmegrim.

Como resume o artigo, o transplante corrige a alteração genética e melhora muito a qualidade de vida dos pacientes, que podem ainda precisar de tratamento para as complicações inflamatórias e imunológicas. Na avaliação de Malmegrim, é muito importante que o procedimento continue sendo feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), onde ocorre desde 2015.

Entretanto, a pesquisadora ressalta que nem todo paciente pode ser transplantado. “Pode não haver doador compatível, por isso transplantes haploidênticos [com células-tronco coletadas do pai, da mãe ou outro membro da família, cuja compatibilidade gira em torno de 50%] já estão sendo realizados mundialmente. Geralmente são pacientes jovens e, quando se trata de uma criança, o transplante é uma decisão difícil para os pais”, explica.

O artigo Allogeneic haematopoietic stem cell transplantation resets T- and B-cell compartments in sickle cell disease patients pode ser acessado em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/cti2.1389.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

FONTE: Jornal da USP

Homem desafia expectativas e comemora 50 anos de transplante renal

A maior expectativa de quem se submete a um transplante é conseguir viver bem com o novo órgão e por muito tempo. Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, a expectativa de vida média dos rins transplantados varia de 15 a 25 anos, entretanto, alguns casos ousam contrariar essas estimativas. “Seu” Antônio Ferreira de Campos é um exemplo e prova viva de que um transplante bem sucedido pode proporcionar uma vida longa e com qualidade. No último dia 25 de outubro, ele comemorou 50 anos do seu transplante renal feito no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HCFMUSP), com um detalhe: o rim recebido é nove anos mais velho que ele. Em outubro, ele também fez outro aniversário, o de 73 anos de idade.

Economista aposentado, natural de Iacanga, na região de Bauru, e residente em Ribeirão Preto, “Seu” Antônio passou por um transplante de rins aos 23 anos, após sofrer com um caso de nefrite crônica que se manifestou na adolescência. “Mais ou menos em julho de 1972, meus rins pararam de vez e eu precisei ser internado no Hospital das Clínicas em São Paulo para fazer um tratamento com hemodiálise”. Classificada como uma inflamação, a nefrite ataca os glomérulos renais – estruturas dos rins responsáveis por eliminar as toxinas e outros componentes em excesso do organismo. A doença causa inchaço nas extremidades, além da dificuldade em urinar.

Em determinado momento, ele teve que travar outra batalha: a de encontrar um doador compatível. Mas esse foi o menor dos problemas.  “A minha irmã Olímpia, na época com 32 anos, logo se ofereceu para ser minha doadora. Fiquei internado três meses aguardando uma vaga para que a cirurgia pudesse ser efetuada”, afirma.

Nova vida no pós-operatório 

Apesar do sucesso na cirurgia, a rotina de cuidados continua constante. Alguns anos após a cirurgia, ele se mudou para Ribeirão Preto em função do trabalho e passou a ser acompanhado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP) da USP. “Durante os últimos 50 anos, minha dependência do ambulatório do HC foi muito intensa. Tenho exames de rotina de três em três meses, além dos remédios imunossupressores que são diários”, conta o aposentado.

Natação é uma das atividades que “Seu” Antonio passou a praticar depois do transplante – Foto: Vladimir Tasca/SCS Polo Ribeirão Preto

“Seu” Antônio conta que precisou mudar a rotina no pós-operatório. “Nos primeiros dias após o transplante, com meus 1,70 metros de altura, eu cheguei a pesar cerca de 45 kg. Após três meses da cirurgia, eu já pesava 90 kg. A bronca do médico foi imediata e eu precisei chegar aos 70 kg. Peso que mantenho até hoje.” Além da dieta alimentar e dos cuidados médicos, ele pratica natação e musculação com regularidade.

O médico e professor da Divisão de Nefrologia do HC-FMRP, Miguel Moyses Neto, acompanha de perto a rotina de cuidados de “Seu” Antônio e afirma que mesmo com todas as dificuldades atreladas à idade do paciente e ao tempo do transplante, ele conseguiu se cuidar muito bem. “Nós verificamos que, mesmo após tanto tempo, ele conseguiu superar todas as adversidades, foi privilegiado” afirma o professor.

Avanços no transplante de órgãos 

O professor afirma que uma das maiores mudanças que aconteceram durante esses 50 anos foi o desenvolvimento e a descoberta de novas drogas, menos nocivas para o organismo humano. Segundo ele, essas novas drogas permitiram uma queda considerável na taxa de rejeição dos órgãos transplantados, de 60% para menos de 10%, o que possibilita que o transplante dure mais. “As inovações que ocorreram nos exames feitos antes da cirurgia ser realizada, como de sangue e imagem, por exemplo,  são determinantes para promover maior eficiência e segurança para quem recebe o órgão transplantado”, assegura.

Os primeiros transplantes foram realizados na década de 1960. De lá para cá, o número de pessoas beneficiadas só tem aumentado. Hoje, o Brasil tem cerca de 37 mil pessoas que esperam receber um transplante de órgãos, sendo 34 mil na fila de espera por um rim, segundo dados do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do Ministério da Saúde.

Por Ferraz Jr

FONTE: Jornal da USP