Preconceito é um problema em casos de câncer de mama na população trans

O câncer de mama é o tipo da doença que mais acomete as mulheres no mundo, presente tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer. A instituição ainda mostra que a doença ocupa a primeira posição em mortalidade por câncer entre as mulheres no Brasil. Diante dessa gravidade, a campanha de conscientização acerca dos cuidados necessários para um diagnóstico precoce recebe expressiva atenção durante o mês de outubro, em que se recomendam o autoteste e os exames para idades determinadas.

No entanto, ainda há uma falta de reflexão acerca dos perigos do câncer de mama voltados à população não cisgênero, ou seja, aquela que se identifica com o sexo com o qual nasceu. Homens trans, por exemplo, também apresentam chances de desenvolver câncer de mama, mesmo após a mastectomia, e precisam tomar os cuidados necessários, como autoteste, mamografia e exames rotineiros. Além dessa reflexão, Ana Amorim, professora do Programa de Atenção Primária à Saúde da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e presidente da Associação Brasileira Profissional para Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo (Abrasitti), aponta que a própria negligência e a dificuldade no acesso aos serviços de saúde por essa população também fazem parte da conscientização sobre o tema.

Barreiras do preconceito 

A própria exclusão social da população não cisgênero, principalmente das pessoas trans, atinge uma série de direitos essenciais, como o acesso à saúde. A professora destaca que essas barreiras não impactam apenas os diagnósticos precoces a partir de exames preventivos, como também afetam a manutenção básica da saúde. “As pessoas têm sintomas e elas tendem a demorar mais para buscar serviços de saúde por conta dessas barreiras sociais que são colocadas para as pessoas trans de uma maneira mais geral”, afirma.

As inúmeras barreiras a essa população se estabelecem no Brasil – país que mais mata pessoas trans no mundo desde 2008, de acordo com os relatórios Trans Murder Monitoring (TMM) da organização Transgender Europe (TGEU). José Roberto Filassi, professor da Faculdade de Medicina da USP e chefe do Setor de Mastologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, chama a atenção para a relação entre a transfobia e a falta de discussão sobre os perigos do câncer de mama nessa população: “Tendo em vista que o Brasil é o campeão mundial de assassinatos de pessoas trans e a expectativa de vida dessa população é de 35 anos, por isso, talvez, o câncer de mama não chame atenção, porque a preocupação começa a aparecer, com maiores chances, nas mulheres após os 40 anos”.

Além da violenta realidade enfrentada por essa parcela, Ana Amorim também alerta sobre as transfobias institucionalizadas nos serviços de saúde, em que se reproduzem negligência e desrespeito aos direitos das pessoas trans. A falta da opção de nome social em prontuários eletrônicos e a restrição de alguns exames de acordo com o sexo de registro da pessoa são exemplos muito comuns no serviço público, segundo a professora.

Essa violência e preconceito, mesmo quando não produzidos pelos agentes de saúde, Ana explica, permanecem presentes nos ambientes dos serviços na forma, na medida em que são alvo de desrespeitos e até mesmo olhares discriminatórios. “Isso também afasta as pessoas trans do serviço de saúde, uma vez que elas não se sentem seguras para estar no serviço e se sentem ainda mais vulnerabilizadas”, aponta a especialista.

Impactos do preconceito

Uma das principais preocupações mencionadas por Ana Amorim trata do atendimento ginecológico, isto é, aquele voltado para questões relacionadas à vulva, vagina, útero, ovários e mamas. Situações de gestação, por exemplo, muitas vezes são enquadradas apenas como um atendimento direcionado à mulher e não a qualquer indivíduo que possua um útero.

“É importante enfatizarmos que identidade de gênero é completamente diferente de características corporais, assim, não é porque uma pessoa tem certo corpo que ela tem certa identidade de gênero”, explica Ana. Assim, essa conduta deve se estender para além da população transexual e englobar qualquer outra identidade de gênero, a fim de promover um serviço de saúde voltado para a necessidade corporal específica de cada um sem vinculá-lo a uma categoria identitária de gênero.

Essa desorganização no momento de atender à população não cisgênero, conforme a professora, pode impactar muito negativamente na saúde mental dos pacientes. “É muito frequente que pessoas trans relatem que os atendimentos em serviços de saúde são grandes motivadores de sintomas ansiosos e de questões que geram problemas emocionais”, pontua.

Formação profissional

O preparo dos profissionais de saúde para atender não só à população trans, mas qualquer outra parcela mais vulnerabilizada da sociedade, se mostra essencial para um atendimento mais efetivo, na visão dos especialistas. O professor Filassi ressalta que o despreparo profissional, ao lado da sensação de insegurança dos pacientes, não será meramente solucionado por meio de decreto e um esforço de diversas frentes será fundamental.

Com tamanha agressão, o registro dessas ocorrências se faz necessário para um diagnóstico melhor do cenário e a possível elaboração de políticas públicas. A professora esclarece a dinâmica dos serviços de saúde e sua importância: “Espero que  as pessoas tenham acesso às informações, que reconheçam os seus direitos e saibam que as ouvidorias nos serviços de saúde são importantes, não só para que haja uma penalidade, caso algo aconteça, mas, principalmente, para que os serviços possam identificar os pontos de fragilidade e melhorar as suas condições”. Além disso, “profissionais de saúde devem tentar estar mais atentos de como podemos oferecer um cuidado não excludente que possibilite que todas as identidades e as populações também se sintam confortáveis em entrar no serviço”, avalia Ana.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP