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Uma válvula com design inovador, projetada para pacientes com estenose aórtica, ficou mundialmente conhecida como Válvula Aórtica de Wheatley. O diferencial do dispositivo está na possibilidade de se dispensar o paciente de fazer tratamentos adicionais com anticoagulantes, usualmente adotados nestes casos após a inserção da prótese, via transplante. Pesquisadores da USP e Unicamp vinculados ao Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (Cemeai) trabalham no aprimoramento do projeto, que pode revolucionar a vida de milhões de pessoas afetadas pela doença.
Estenose
De acordo com a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista (SBHCI), a estenose atinge de 2% a 5% da população mundial e é decorrente da degeneração da válvula aórtica, dificultando a saída do sangue do coração para a aorta – principal vaso sanguíneo do coração – e comprometendo a circulação. Sendo mais comum em idosos, o aumento no número de casos dessa condição tem sido elevado nos países subdesenvolvidos, onde as doenças cardíacas reumáticas são preponderantes.
Em quadros graves de estenose aórtica, a única alternativa viável para garantir uma melhoria na qualidade de vida do paciente é um transplante. Esta operação consiste em substituir a válvula natural disfuncional por uma artificial (ou prótese). Há vários tipos de próteses disponíveis, e a escolha vai depender do cenário vivido por cada paciente. Em geral, as poliméricas, feitas com polímeros, são aquelas que possuem maior vida útil. Porém, elas requerem tratamento com medicamentos anticoagulantes na fase pós-operatória.
Os anticoagulantes são utilizados para “afinar” o sangue, ou seja, impedem a formação de coágulos e facilitam a circulação sanguínea. Esse tipo de tratamento medicamentoso requer extremo cuidado e atenção do paciente, sobretudo com sangramentos, para evitar risco de complicações.
À frente do trabalho com a Válvula de Wheatley estão os pesquisadores do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP José Alberto Cuminato e Gustavo Buscaglia, com o auxílio de Hugo Luiz Oliveira, atualmente professor da Unicamp. Eles buscam desenvolver modelos matemáticos e simulações computacionais de maneira a aprimorar o dispositivo.
Entendendo a Válvula de Wheatley
A maior incidência da estenose na população idosa mundial estimulou o surgimento de técnicas de substituição de válvulas do corpo humano pelas artificiais desde a década de 1960. Porém, o procedimento é invasivo e o tratamento demanda elevados custos financeiros. Sendo assim, como oferecer uma alternativa mais viável economicamente sobretudo para países em desenvolvimento?
Foi pensando nesse contexto que o professor, pesquisador e cirurgião cardíaco escocês David J. Wheatley decidiu, em 2012, empenhar seus próprios recursos para custear os protótipos que iniciaram a criação de uma válvula polimérica com folhetos em forma “S”.
“Ao patentear este dispositivo, Wheatley pretendia proteger a válvula inovadora de interesses comerciais predatórios, o que desviaria o projeto de sua finalidade. O objetivo central é colocar à disposição da população um dispositivo aórtico altamente eficiente com custo reduzido, favorecendo, sobretudo, países de baixo e médio nível de desenvolvimento econômico”, explica Hugo Oliveira.
Ponte Europa – Brasil
Após um longo período de dedicação ao estudo e ao tratamento de doenças em válvulas cardíacas em diferentes partes do mundo, Wheatley confeccionou protótipos de sua válvula inovadora e realizou testes laboratoriais preliminares. Entretanto, o britânico precisava aprofundar seus conhecimentos sobre o comportamento mecânico do dispositivo, problema intrinsicamente de matemática e engenharia, por isso acionou o colega Sean McKee, da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido.
Curiosamente, McKee foi orientador de doutorado de José Alberto Cuminato, em Oxford, e atualmente pertence ao corpo docente de Strathclyde. Daí o elo entre a universidade britânica e o Cemeai em prol do desenvolvimento da válvula de Wheatley. A ideia original era utilizar a modelagem matemática e a simulação computacional para oferecer ainda mais eficácia ao equipamento. Neste contexto, Oliveira embarcou no desafio e relata que os resultados têm sido satisfatórios.
“Trata-se de um modelo matemático bastante complicado de se fazer. É necessário compatibilizar várias necessidades e funções disciplinares. David Wheatley, como cirurgião cardíaco, possui uma experiência fisiológica, cirúrgica, funcional do dispositivo. A válvula se abre quando o sangue emerge do ventrículo esquerdo (quando o coração contrai) e se fecha para evitar que o sangue retorne da aorta quando o coração relaxa. Estas observações da realidade precisam ser traduzidas em equações matemáticas passíveis de serem resolvidas por um computador”, conta Oliveira.
Ele explica que a dinâmica do movimento envolve conceitos da Mecânica dos Sólidos, Mecânica dos Fluídos, métodos numéricos não lineares, técnicas de remalhamento automático, contato de corpos flexíveis e computação de alto desempenho. “Mesmo com todas essas complexidades envolvidas, nós conseguimos implementar um modelo que está em fase operacional, inclusive, sendo capaz de reproduzir com fidelidade os dados observados experimentalmente.”
Dessa forma, o Cemeai está à frente de um projeto único no Hemisfério Sul – como o próprio Oliveira narra – de modelagem matemática e simulação computacional de forma a testar melhorias na evolução tecnológica da válvula muito antes de se avançar para testes clínicos, economizando tempo e recursos.
Dispor de um modelo computacional de alta fidelidade reduz não apenas o tempo empregado na concepção da válvula e de seus mecanismos intrínsecos, como também os custos envolvidos na produção física de protótipos e testes experimentais.
Etapas do processo
Por exemplo, os pacientes com estenose aórtica na atualidade têm três alternativas de tratamento: com válvulas mecânicas, válvulas poliméricas e os dispositivos com componentes biológicos. No último caso, não há a necessidade de medicamentos anticoagulantes.
Entretanto, a contrapartida é a obrigação de se trocar a válvula, em média, a cada dez anos. “Se o paciente recebe uma válvula que tenha componentes biológicos, ele não precisa tomar o anticoagulante. O problema é que a válvula precisa ser substituída ao longo do tempo. Ou seja, será necessário fazer uma nova operação para a troca assumindo todos os todos os inconvenientes e os riscos de uma cirurgia convencional”, completa Oliveira.
A equipe do Cemeai se propôs a realizar a modelagem computacional da Válvula de Wheatley a fim de reproduzir o seu comportamento mecânico em condições de serviço. Esta ação permite que quaisquer melhoramentos eventualmente apontados possam ser testados virtualmente, sem a necessidade de produção de novas peças a cada alteração proposta.
Para alcançar o resultado proposto, Oliveira e a equipe do Cemeai testaram vários softwares. A opção que melhor se adequou foi o solver (software para resolução matemática) LS-DYNA, que permitiu reproduzir fielmente no computador o desempenho mecânico e fluidodinâmico que a Válvula Aórtica de Wheatley apresenta em condições controladas de vazão e pressão.
Desde 2019, o LS-DYNA faz parte do pacote tecnológico da ANSYS, empresa líder mundial no ramo de simulações de softwares de engenharia. O solver foi escolhido pelo grupo do Cemeai por sua capacidade de simular com precisão e eficiência os fenômenos físicos não lineares necessários para descrever o comportamento da válvula.
Exposição do projeto chegou à Câmara
A sessão ocorreu no último dia 4 de outubro, apresentada pela deputada Sílvia Cristina Chagas (PL) com a presença de membros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) e do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa em Saúde (Conep). Durante a sessão na Câmara, Oliveira debateu os desafios e as propostas revolucionárias de seu projeto matemático e a importância de um parecer da principal autoridade nacional na área para dar continuidade ao projeto.
“Pudemos estar presentes em Brasília e relatar que tal tecnologia está madura o suficiente e a estamos aplicando na realidade”, reforça Oliveira.
Na sessão aberta, o engenheiro expôs os resultados de sua pesquisa também na presença da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia em Saúde (Abimed) e da Avicenna Alliance, uma associação global com o objetivo de tornar a medicina in silico (baseada em simulações computacionais) uma prática padrão no setor de saúde.
“O encontro foi muito positivo. Nós conseguimos estabelecer um diálogo muito importante junto à Anvisa, que se mostrou interessada nas abordagens in silico. Os próximos passos caminham na direção de agências reguladoras da Europa e Estados Unidos, ou seja, traçar diretrizes para auxiliar a confecção e a apresentação de estudos in silico para fins de homologação”, opina Oliveira.
“A pesquisa desenvolvida no Cemeai está em linha com os melhores e mais exigentes padrões de qualidade internacionais. Para nós, brasileiros, participar de um projeto desta amplitude significa poder impactar positivamente a vida de milhares de pessoas, trazendo melhoria de qualidade de vida, reduzindo custos, ampliando o acesso a dispositivos cardíacos de alta eficiência. Em última instância, trata-se de um projeto de extrema relevância pública, em que a ciência de ponta é colocada em prol do benefício de todos”, conclui o pesquisador.
O projeto foi protagonista do Prêmio Pós-Doc USP, honraria concedida pela instituição na Escola Politécnica (Poli) da USP em outubro deste ano. A Modelagem Matemática e Simulação Numérica da Válvula Aórtica de Wheatley, título do trabalho, recebeu o prêmio na Área de Ciências Exatas e da Terra.
*Da Assessoria de Comunicação do Cemeai, com edição de Luiza Caires
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
FONTE: Jornal da USP