Nova abordagem acelera o diagnóstico de demência em hospitais
- By: Jornal da USP
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A princípio, fala-se em esquecimentos sutis: palavras que escapam à memória, compromissos esquecidos e tarefas inacabadas. Com o tempo, afazeres do dia a dia — como vestir-se, preparar refeições ou transitar pela cidade — tornam-se inviáveis. É assim que, pouco a pouco, manifesta-se a demência, termo genérico usado para caracterizar a perda progressiva do desempenho cognitivo e comportamental, causada por doenças degenerativas como o Alzheimer.
Essas doenças, porém, nem sempre são fáceis de identificar, especialmente no ambiente hospitalar onde pode haver fatores confundidores. Em busca de métodos que contornem a lacuna nos diagnósticos, pesquisadores do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) quiseram medir a eficiência de técnicas existentes para a detecção de demência no ambiente hospitalar.
A Escala Clínica de Avaliação de Demência — ou Clinical Dementia Rating (CDR), em inglês — é objeto de foco na pesquisa, mas desta vez repaginada. Comumente feito através de entrevistas com ambos os pacientes e informantes (sejam familiares, cuidadores ou pessoas próximas), o instrumento passou por um processo de validação baseado somente neste último, ou seja, diagnosticar a doença tendo como apoio apenas aqueles próximos do enfermo. Em entrevista ao Jornal da USP, Márlon Aliberti, pós-doutorando da FMUSP e um dos autores do artigo, indica que, além de qualificar a precisão, parte do objetivo era comparar sua performance ao padrão de diagnóstico da condição.
Os desafios
O Ministério da Saúde estima que, somente no Brasil, sejam cerca de 2,78 milhões de pessoas com 60 anos ou mais vivendo com demência. À medida que o País envelhece, a realidade aflige: apesar de estudos indicarem que a região da América Latina e Caribe é a de maior prevalência da doença no globo, grande parte desses casos não é diagnosticada.
Em um cenário ideal, a avaliação do estado cognitivo que comprova o quadro clínico de demência envolve uma série de etapas. Aliberti explica que, em clínicas, o médico de referência tem acesso a uma gama completa de informações sobre o paciente para atestar o declínio neurológico. Entre anamneses, conversas com informantes e exames neurológicos, o ambiente clínico dispõe de uma ferramenta a qual hospitais não têm: tempo.
O senso de emergência é maior quando o idoso dá entrada na ala do pronto-socorro. Como muitos não são diagnosticados, diferenciar o que é manifestação do problema agudo do que é demência se torna uma tarefa complexa. “Na hora que eu vou fazer os testes de memória, o paciente pode ir mal tanto porque ele está com dor, com infecção ou pela demência”, revela o pesquisador.
O processo ainda sofre de outros dilemas, como o risco de pessoas com 60 anos ou mais desenvolverem delirium. Segundo ele, a síndrome “é um estado de confusão mental aguda que causa mudança repentina na consciência” e é ocasionada por infecções, doenças graves e até mesmo desidratação. Sendo ela um efeito colateral que se apresenta mais em idosos, as possibilidades de diagnósticos se tornam múltiplas.
Como resposta, a solução foi pensar em táticas que retirassem os pacientes da equação. O novo modelo da Escala Clínica de Avaliação de Demência, baseado apenas em informantes, foi adotado em 43 hospitais no Brasil, Angola, Chile, Colômbia e Portugal, todos envolvidos com o Projeto Change. A iniciativa, que aborda novos modelos de cuidado para o idoso, avaliou a condição de pacientes com mais de 65 anos entre outubro e dezembro de 2023. No entanto, dos 43, apenas cinco hospitais foram usados na amostra da pesquisa — com um total de 65 pacientes.

À semelhança das diretrizes originais foram aferidos os níveis de memória, orientação, resolução de problemas, assuntos comunitários, passatempos e cuidados pessoais.
Alternativa diagnóstica
O método provou ser preciso na identificação de problemas cognitivos em idosos hospitalizados. Antes de ser aplicado, 70% das ocorrências não estavam documentadas nos registros médicos. O estudo também confirmou que a escala poderia reduzir pela metade o número de casos não diagnosticados, com falsos positivos mínimos (1%).
“Ninguém tinha percebido [os sintomas de demência]. A família não sabia, o médico e a equipe médica não sabiam. O que confirma a nossa preocupação original de que esse trabalho é importante” – Márlon Aliberti
Aliberti expressa que, por isso, é possível entendê-lo como uma boa alternativa ao modelo padrão de diagnóstico, o IQCODE-16 — um questionário de 16 perguntas respondidas por informantes. Segundo ele, apesar de ser este o parâmetro mais confiável na detecção de demência, o recurso tem a fraqueza de não graduá-la. “Demência não é uma só questão de ter ou não. Fala-se, principalmente, em estágios, o leve, o moderado e o grave”, comenta.
Um ganho da escala CDR é a capacidade de avaliar em qual etapa se encontra a doença. Ideal para diagnosticar casos precoces, a ferramenta mostrou um cuidado hospitalar mais direcionado e, em particular, conciso. Enquanto o questionário IQCODE-16 leva 90 minutos para ser aplicado, o objeto da pesquisa demora, em média, 15 a 20 minutos. Ainda que não seja o tempo ideal para ocasiões de emergência, ele representa uma redução significativa quando comparada ao método de referência.
Para Aliberti, no entanto, a real limitação da técnica se encontra na rigidez no perfil dos informantes. “Não pode ser qualquer um. Tem que ser um acompanhante que conheça bem o paciente, que convive diariamente com ele há pelo menos seis meses.” Foram esses os critérios usados pelo grupo — e recomendados por especialistas — que resultaram em um sistema um pouco melhor que o IQCODE-16.
Ganhos concretos
Os resultados do estudo trazem à tona a importância do diagnóstico precoce e eficaz. O tratamento muda com a descoberta da demência. “A maneira que você trata alguém com, por exemplo, pneumonia e demência é diferente, porque essa pessoa não pode ter alta e ir sozinha para casa”, enfatiza o médico. A perda da memória desencadeia desafios no cuidado, uma vez que é difícil que eles se lembrem de tarefas como tomar os remédios ou seguir as instruções dadas pelo médico.
Em tempos de crescimento de casos na América Latina, Aliberti considera o cuidado humanizado um ganho ainda mais expressivo.“[Isso abre espaço para] discutir com a família até que ponto intervir, se vale a pena ir para a UTI ou não. Quer dizer, é a oportunidade de você ter um diálogo melhor com o familiar e com seu paciente”, destaca.
O artigo Pulling Back the Curtain on Hospital Dementia Detection: Validation of the Informant-Based Clinical Dementia Rating descrevendo os resultados pode ser acessado neste link.
Mais informações: maliberti@usp.br, com Márlon Romero Aliberti
*Estagiária com orientação de Luiza Caires
**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado
Fonte: Jornal da USP