“Solidão não é, necessariamente, sinal de sofrimento”

“Solidão não é, necessariamente, sinal de sofrimento”

Um levantamento realizado pela associação Meta-Gallup mostrou que quase 1/4 das pessoas ao redor do mundo sentem solidão. A pesquisa foi conduzida em 142 países e não consultou a China – segundo país mais populoso do globo, o que poderia evidenciar um número ainda mais elevado. Quando perguntados o quão sozinhos os entrevistados geralmente se sentiam, 24% se classificaram como “muito”, 27% como “um pouco” e 49% como “nem um pouco”.

Os resultados mostraram que as taxas mais baixas de solidão foram relatadas por pessoas acima de 65 anos (17%), enquanto as taxas mais altas foram reportadas por jovens adultos, faixa etária que engloba dos 19 aos 29 anos (25%). Antônio de Pádua Serafim, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP, explica que a elevada porcentagem de jovens adultos que se sentem sozinhos pode ser explicada pelo processo de desenvolvimento biológico vivenciado por esse grupo.

“São aquelas pessoas que estão em um período de identificação, de definição, de transição, de buscas, de consolidação pessoal e profissional, muitas vezes acadêmica, e até relações interpessoais”, exemplifica o professor. Além disso, são indivíduos que planejam perspectivas de projeções futuras, e esse momento de transição pode gerar inseguranças.

Serafim pontua que existem evidências que mostram que, atualmente, parte da população mais jovem possui poucas habilidades nas interações sociais. “São pessoas com a configuração de mais insegurança e mais dificuldade de interagir, de se sentir confortável e mais confiante”, completa. Atualmente, para o professor, é como se houvesse um nível de exigência e aprovação elevados, o que pode gerar inseguranças e provocar um isolamento.

O que é solidão? 

De acordo com o professor, ao estudar o comportamento humano, pressupõe-se que existem relações de troca entre as pessoas. Do ponto de vista da psicologia, a solidão configura um comportamento em que o indivíduo está inserido em um contexto no qual não há uma relação ativa – presencial ou a distância – de interações interpessoais.

Além disso, a solidão pode acontecer através de um processo natural, em função da localização, como também pode ser uma escolha. “Solidão não é necessariamente sinal de sofrimento, mas você pode ter a solidão fruto da exclusão do ambiente, ou da própria autoexclusão – quando a pessoa se coloca nesse posicionamento”, explica Serafim.

Vivian Loietes de Oliveira Prado, pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP, define a solidão – dentro de uma perspectiva psicológica – como uma resposta emocional sentida quando existe uma diferença entre a qualidade das relações obtidas e a qualidade que se deseja obter. “Em outras palavras, poderíamos pensar em solidão como uma indicadora de parâmetros insuficientes. Então, a solidão pode sinalizar a necessidade de formar conexões mais significativas e mais duradouras”, exemplifica.

De acordo com Vivian, os seres humanos são essencialmente sociais, o que cria uma necessidade inata de pertencimento e de se relacionar para estabelecer conexões – que acontecem através das interações. Pessoas que apresentam dificuldades de formar ou manter relações interpessoais satisfatórias, segundo a pesquisadora, podem se sentir mais propensas a vivenciarem a solidão, justamente por não terem suas necessidades psicológicas atendidas.

Perigos da solidão 

Segundo Serafim, a percepção do “estar só” gera um processo de análise cognitiva dessa condição – em que o indivíduo pode pensar, por exemplo, “por que estou sozinho?”, “não agrado ninguém?”, “não sou interessante?”, “não me sinto competente para realizar determinadas ações”, “acredito que tenho características que não serão aceitas por grupos sociais”. Esse fluxo de pensamento configura uma série de respostas emocionais que podem gerar conclusões negativas e, consequentemente, um conjunto de fatores negativos, como rebaixamento da autoestima e confiança.

O professor acredita que esse processo danifica a configuração de identidade do indivíduo e abre espaço para alterações no humor – classificadas por Serafim como os principais problemas psicológicos causados pela solidão. “Essas pessoas começam a se sentir cada vez mais desprestigiadas, desvalorizadas, e isso culmina com a redução do humor, surgindo a questão da depressão. Nesses aspectos, podem surgir outras comorbidades, como o uso de álcool, o uso de medicações excessivas para lidar com essa sensação, além de problemas de sono e problemas alimentares”, aponta.

Os altos índices de pessoas que se sentem sozinhas – evidenciados pela pesquisa conduzida pela associação Meta-Gallup – são motivo de preocupação e merecem atenção. “Quando você usa o próprio termo ‘1/4 da população se sente só’, está dizendo que ela se percebe sozinha, isso não está dizendo que elas estão bem sozinhas. Quando eu digo que ‘me sinto só’, estou dizendo, em outras palavras, que eu não tenho pessoas e que eu gostaria de estar próximo”, explica o professor. Dessa forma, é preciso entender quais são os fatores e condições que estão provocando esse sentimento nas pessoas.

Entretanto, a questão do “viver sozinho”, para Serafim, depende da configuração psíquica de cada um. Em alguns casos, pessoas apresentam formas de viver e estabelecer relações com elas mesmas, em que não depositam ou não dependem de troca com outras pessoas para nutrir a imagem de suficiência e de se bastarem. Dessa forma, “o estar sozinho” não indica, necessariamente, alguma problemática.

Medidas 

Em 2018, o governo do Reino Unido anunciou a criação de um ministério para tratar a solidão e suas possíveis consequências. Uma pesquisa, conduzida em 2017, que motivou a criação do órgão, mostrou que 9 milhões de britânicos sentiam-se sozinhos com certa frequência. Para Vivian, os impactos causados pela solidão na saúde emocional precisam ser pensados coletivamente, por meio da promoção de programas que visem à diminuição da solidão como uma questão dentro da saúde pública.

A pesquisadora acredita que a solidão também precisa ser pensada individualmente, e que o entendimento desse sentimento é importante para conseguir gerenciá-lo de forma mais saudável. “Para isso, você pode, por exemplo, investir melhor na sua rede de apoio e entender o que pode ser feito e oferecido para as pessoas que estão à sua volta. É através da intimidade e companheirismo que se criam conexões fortes e duradouras e, através disso, a gente alcança situações do dia a dia onde você pode se envolver mais, mostrando e recebendo um suporte mútuo recíproco”, exemplifica.

Vivian ainda ressalta a importância de aprender a viver melhor a solitude – definida por ela como uma capacidade pessoal de se estar sozinho e conseguir sustentar o próprio selfie, sempre com o objetivo de autoconhecimento, de saber reconhecer melhor os próprios sentimentos, as vontades, e fortalecer os aspectos da identidade. “E, se for preciso, busque um bom profissional de saúde mental que possa te ajudar e te guiar nessa busca de viver a solitude de uma forma saudável e te ajudar nessas habilidades de criar e manter relacionamentos saudáveis, de conexões que façam sentido, que atendam às suas necessidades afetivas, e que ao mesmo tempo te oferecem uma companhia qualificada”, explica.

Para Serafim, a criação de um órgão responsável apenas por propor ações, sem investigar profundamente o fenômeno, não ajuda a reduzir efetivamente a questão. “Por mais que se crie qualquer órgão, qualquer aspecto que vai pautar isso, desde que a base de atuação dele seja identificar os fatores de vulnerabilidade para que as pessoas se sintam só, aí eu entendo que é viável”, pontua.

De acordo com o professor, é normal que, em relações comportamentais, sejam criadas propostas sobre a demanda – muitas vezes intangíveis – sem entender efetivamente suas causas. Por isso, Serafim acredita que é preciso compreender o fenômeno em questão, entender o que mantém a condição analisada, para só depois se pensar em quais ações são mais efetivas para reduzir o cenário.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

FONTE: Jornal da USP